postado em 24/03/2010 07:00
Quando Brasília ainda era uma vaga promessa no cerrado, um pernambucano inquieto inventava modos de viver (e sobreviver) no vazio de uma cidade improvável. Manuel Mendes era chefe do almoxarifado das obras do Ipase, o Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado. Naquele fim de 1957, ainda não se sabia com que homens iria ser construída a nova capital. Não havia estradas para o Distrito Federal e os institutos de previdência tinham de catar operários nas redondezas para dar início a uma obra que parecia, nos primeiros meses de execução, destinada a virar ruína.;Onde é que é Brasília?;, perguntou Mendes a quem o recebeu na pista de pouso. O homem respondeu, apontando o dedo para o horizonte desmedido: ;Vai ser ali;. O pernambucano olhou adiante e o que viu foi um nada sem fim coberto de vegetação tímida e contraída. Do aeroporto saíam duas pistas: uma em direção à Novacap, na hoje Candangolândia, e outra, no rumo da Asa Sul. Funcionário público acostumado com o ritmo das obras públicas, Manuel Mendes imaginou, de pronto, que estava vindo participar de um projeto que já nascia fracassado.
Não pensou em voltar para o Rio de Janeiro, onde havia morado durante 12 anos. Sua mulher, seu filho, seus pais e seus cinco irmãos, todos mais novos, dependiam do salário dobrado que Manuel Mendes havia conseguido quando aceitou vir para Brasília. Um mês depois, o assustado almoxarife voltou ao Rio ; apenas para passar o Natal com a família. Foi quando a mulher, Ana, disse que queria vir com o marido para o sertão goiano, mesmo depois de ouvir o relato desolado do marido. Ela argumentava que o filho, Petrônio, de 10 meses, passava o dia procurando o pai pelos cantos da casa.
A pioneira
Mendes aceitou a ideia de trazer mulher e filho, mas tinha de pedir autorização ao engenheiro-chefe da obra em Brasília. ;Mas Manuel, ainda não temos nenhuma condição de trazer família. Não tem água nem luz. E tem uma complicação a mais: se ela não gostar e voltar para o Rio, vai contar que aqui é ruim, depois será muito difícil para os outros funcionários convencerem suas senhoras a virem;. O almoxarife contra-argumentou: Ana era uma mulher que gostava de acampar, que ia com ele para pescarias em Paquetá, que dormia em barracas e achava bom. O chefe cedeu.
Em 18 de janeiro de 1958, Ana, com o filho, chegava ao Plano Piloto. Era a primeira mulher a vir morar nos acampamentos, diz Mendes. A mudança de comportamento dos operários foi brusca: já não podiam mais tomar banho nus a céu aberto, menos ainda contar piadas insolentes na cantina. ;No primeiro dia de jantar, todos apareceram arrumadinhos e comportados;, conta o almoxarife que depois virou jornalista (e durante 28 anos assinou a coluna Mala Diplomática, no Correio Braziliense).
A chegada da mulher e do filho motivou Manuel a recuperar uma atividade que havia exercido no Rio, a de fotógrafo. Nasceria aí um precioso arquivo de fotografias e filmes da construção da cidade. Além das fotos da família (a mulher empurrando o filho num carrinho de mão é uma das mais conhecidas), Mendes começou a registrar as obras da SQS 208, a pedido do Ipase. Passou a filmar em 16 milímetros a rotina dos candangos. O resultado está condensado em 37 minutos de um DVD com cenas pouco vistas do cotidiano de um canteiro de obras das superquadras do Plano Piloto (e que pode ser visto no Arquivo Público do Distrito Federal).
Memória rica
O almoxarife que virou fotógrafo e documentarista das obras da cidade foi também projetista de filmes para os operários e funcionários do Ipase e editor de um jornal mimeografado, O Barbeiro, em papel ofício, semanal ou quase isso. Nele, Manuel Mendes publicava a programação dos filmes, dos jogos de futebol, as fofocas do acampamento, orientações médicas e pequenos artigos. O nome, O Barbeiro, vinha do inseto ao qual todos temiam e que era endêmico nesse pedaço de Goiás.
A memória de Manuel Mendes do tempo da construção está derramada em dois livros, Meu testemunho de Brasília e O cerrado de casaca, o primeiro com o relato da experiência da construção da cidade (Mendes recomenda a leitura do capítulo onde ele conta, hora a hora, os dois dias da festa da inauguração de Brasília). O segundo, a cobertura cotidiana da construção do Itamaraty e da complicada transferência do corpo diplomático para o chão nada cerimonioso do cerrado. (;Eles não queriam vir. Tocaram fogo nas obras duas vezes. Brasília foi inaugurada em 1960, mas o Itamaraty só veio 10 anos depois;).
O bravo candango de 83 anos lamenta não ter ficado rico e conta histórias de quem ficou milionário. Não comprou terrenos nas pontas de picolé, em prestações a longo prazo, porque não acreditava que um dia iriam valer tanto. Manuel Mendes mora numa casa do Lago Sul, desde 1969, com a filha, Patrícia. Parou de escrever em 1993, depois de ter perdido o filho de 37 anos. A mulher morreu no ano seguinte. Passa os dias envolvido pela memória da construção: fotos na parede da sala, prateleiras com condecorações, um escritório/sala de arquivo e uma preciosa garrafinha com poeira do cerrado. Ela ocupa o lugar mais importante do móvel.