postado em 27/03/2010 08:23
Dona Florinda é um pouco maior que uma roseira, porém mais forte que uma vitória-régia. Na certidão de nascimento, ela se chama Take Yabushita Ofugi, e Take quer dizer bambu. O nome em português nasceu de seu envolvimento com as flores. Dona Florinda é viúva do primeiro japonês a vir domar a acidez da terra a convite de Juscelino Kubitschek. O marido veio primeiro que ela, em 1956. Ichizo Kazumi Ofugi, que os brasileiros chamavam de João, trouxe a família dois anos depois. Desde então, os Ofugi moram na mesma chácara, no Núcleo Bandeirante.Quem chega à casa de dona Florinda pode não vê-la. É bastante provável que ela esteja misturada às centenas de mudas de flores e ervas medicinais que continua cultivando, aos 92 anos, dez depois de ter deixado a banca na Feira Permanente do Núcleo Bandeirante, a feirinha do coração da cidade. A casa de madeira ainda está lá, guardada como lembrança, mas dona Florinda não deixa que ela seja fotografada. ;Está feia;, ela diz, em seu português que se parece com o de uma criança aprendendo a falar.
É ela quem faz a própria comida, cuida da casa e das plantas. Quando algum filho sugere que contrate uma ajudante, ela diz que não quer ficar vigiando ninguém. ;Não gosto mandar empregada, empregada fica mole.; Quando não se encontra com as plantas ou cuidando da casa, dona Florinda está diante da televisão, assistindo ao canal japonês da tevê por assinatura. Desde que veio para o Brasil, aos nove anos, nunca mais voltou ao Japão, nem pensa em voltar. ;Vai lá, lembra tanta coisa, fica triste. Ir [ao] Japão é buscar tristeza;.
Começou assim a história da vinda da família Ofugi para Brasília: seu João morava em Goiânia com a família. Trabalhava no comércio de gado e de verdura e, jogador de turfe, frequentava o Jóquei Clube da cidade. Foi assim que conheceu os políticos importantes do estado na década de 50. E passou a se interessar pelo projeto mudancista. Conta o filho, Kazuo, que o pai esteve na região quando o marechal José Pessoa estudava a demarcação dos limites do Distrito Federal.
Primeiros contatos
O gosto pelo turfe levou seu João ao contato com o governador Juca Ludovico e daí ao encontro com o presidente da Novacap, Israel Pinheiro, que foi a Goiânia convidar a colônia japonesa lá instalada para vir aplacar a aridez da terra vermelha. Vem daí a lenda segundo a qual alguém teria reclamado da esterilidade do solo de Brasília, ao que Israel reagiu: ;Foi pra isso que trouxemos os japoneses;.
Dona Florinda enfrentou a má-vontade da terra do cerrado com a seguinte fórmula: plantou mamona (de fácil desenvolvimento nesta região) e esperou que as folhas caíssem para que, apodrecidas, adubassem o solo. Também misturava à terra cinzas de madeira, de gravetos e de folhas secas. ;Nunca comprei adubo;, conta a japonesa de nome que no latim significa florescente. Até hoje, ela vende ervas medicinais para quem bate no seu portão. Mas já não precisa mais trabalhar na feira. ;Meu filho traz meu dinheirinho mensal;, diz dona Florinda (ela adora um diminutivo), referindo-se à aposentadoria.
;Felicidade não precisa muito dinheiro;, diz a dona das flores. Mas é necessário algum para dar conta das necessidades básicas. ;Não gasto à toa. Tenho reserva no banco para caso filho precisar. Se adoece, pode gastar [o] da mamãe;. Dona Florinda pensa o tempo inteiro na família, nos filhos e netos, mesmo que eles estejam bem encaminhados. Dois deles moram na chácara, em casas próximas à da mãe. Dona Florinda diz que não tem medo da morte, mas que quer viver pelo menos mais dez anos para cuidar do neto que mora com ela.
[SAIBAMAIS]Contando com o fato de que ela trabalha até hoje, lá se vão mais de 80 anos de atividade pesada. Desde menina, Take trabalhava na lavoura, ajudando a mãe, uma japonesa que se casou quatro vezes. O primeiro casamento não deu certo e os outros três maridos morreram. Depois de tanto desgosto, a mãe de Florinda decidiu vir para o Brasil, na década de 1930. Aqui, no interior de São Paulo, ela escolheu o marido da filha caçula. ;Vi marido uma vez só e casei;. Todos os cinco filhos já haviam nascido quando João Ofugi veio fundar a Cooperativa Mista Agrícola de Brasília, com outras 16 famílias nipônicas.
Lembranças
Do tempo da construção, dona Florinda tem uma memória auditiva: ;Era noite e dia fazendo pan-pan-pan [faz o gesto de martelo batendo na parede], fazendo casinha. Uma noite faz casinha, noutro dia tem vizinho;, diz ela, reproduzindo o ritmo frenético das obras da nova capital. Enquanto o marido cuidava da cooperativa, ela construía cômodos de madeira ao lado da casa para ;dar pensão;. Alugava os quartos e servia almoço e jantar para os candangos. Depois, começou a plantar angélicas e lírios e montou a primeira floricultura de Brasília, na Cidade Livre.
A utopia, porém, cobrou caro da família de João Ofugi. A cooperativa rendeu mais trabalho (de desbravação e de preparo da terra) do que lucro. João cuidava da colônia nipônica e Florinda, dos filhos e de uma renda extra para ajudar no orçamento doméstico. Até que uma tragédia deixou os Ofugi atordoados: quando seguia para Jataí (Goiás), com o objetivo de comprar madeira para construir o templo budista da 115/116 Sul, João sofreu um acidente de carro e morreu. Dona Florinda teve de assumir a responsabilidade pela família. E utilizou, para isso, a chácara do Bandeirante e a banca na feira, na qual vendeu hortaliças até dez anos atrás.
A balança de metal e a bandeja estão na varanda de dona Florinda. Ao lado, as ferramentas. Adiante, as embalagens de leite e suco que ela lava, corta uma das extremidades e transforma em vasos para mudas. E dentro de uma caixa de papelão, o chapéu e o lenço de estopa, que ela usa para enfrentar os mosquitos e se envolver com as flores.