postado em 29/03/2010 08:21
Com suas pernas emprestadas ele verá Cristo ressuscitar. Ele sempre quis estar ali, até o fim. E, como não via, imagina como devia ser. E dizia a si mesmo: ;Um dia eu verei;. Na próxima sexta-feira, ele verá. Mais que isso: será um dos apóstolos do filho de Deus. E, assim que assistir ao renascimento, terá a certeza de que milagres existem. Não só o de Jesus, mas o dele próprio. O rapaz dos ossos de vidro, na sua cadeira de rodas motorizada, percorrerá os 15km da via-sacra da Paróquia de São Vicente, em Sobradinho. Será a primeira vez que participará do espetáculo. Antes, conseguia apenas ver o começo, como espectador. Sua velha cadeira manual não lhe permitia peregrinar. O cansaço sempre o vencia.Empurrá-lo por tanto tempo era demasiadamente pesado para os outros. E ele voltava para casa, tentando compreender como Cristo subiu aos céus. Mas agora, enxergará tudo que um dia imaginou. Este é mais um capítulo da comovente história de Alexandre Ferreira Abade, o rapaz que venceu, mesmo diante da quase total impossibilidade de viver. Aos 31 anos, ele provou que nem os seus frágeis ossos lhe tirariam a força que possuía. Quebrou-se todo, em todas as partes. Desde o primeiro mês de vida, já em tratamento no Hospital Sarah do Aparelho Locomotor, essa mesma vida se tornou um desafio.
Alexandre é portador de osteogênese imperfeita, doença genética sem cura, em que os pacientes nascem sem uma proteína (colágeno) ou com a incapacidade de sintetizá-la. Sem ela, os ossos se tornam quebradiços. Quase sempre morrem nos primeiros meses ou anos de vida. As fraturas eram constantes. Foram mais de 320 até ele completar 17 anos. Passou a maior parte da vida com o corpo engessado.
Em 14 de agosto do ano passado, o Correio contou, com exclusividade, a vida de Alexandre. E a incrível superação que ele havia protagonizado no caminho que nem poderia ter existido. Dali a alguns dias, ele colaria grau em gestão de marketing, numa faculdade de Sobradinho. Mesmo sem nunca ter andado, nunca ter sentido os pés tocarem no chão. Vestido de beca, empurrado, sempre empurrado pelos outros (nunca conseguiu empurrar nem a própria cadeira de rodas), ele chegou à frente daquele auditório e discursou para uma plateia emocionada.
Agradeceu à mãe e ao incansável pai, que o levava todo dia à faculdade, mas que não viveu o suficiente para vê-lo ali, no meio daquela turma, naquela noite especial. Disse, com a voz embargada, que sempre acreditou que conseguiria transpor todas as graves limitações que a vida havia lhe imposto. E pediu às pessoas que fizessem o mesmo com suas vidas. Lágrimas escorreram na noite de festa.
Mas ainda faltava realizar um sonho. De família humilde, ele nunca havia tido condições de comprar uma cadeira de rodas motorizada, com a qual conseguiria ter um pouco mais de independência. Um mês depois da primeira reportagem, uma leitora, moradora da Asa Norte, lhe doou a cadeira de rodas motorizada. Comprou-a novinha e desembolsou R$ 8 mil. Não quis holofotes. Ajudou pela sublime vontade de ajudar. Visitou-o duas vezes, na sua casa modesta em Sobradinho. Tornaram-se amigos.
Apostolo Tiago
A vida do rapaz dos ossos de vidro mudaria com a velocidade de um carro de corrida. A partir da reportagem, ele passou a receber convites para protagonizar palestras sobre motivação e superação. Lotou igrejas, escolas públicas e particulares, empresas, hospitais, postos de saúde. Em todas, o homem que mede 1,20m e pesa menos de 30kg, levou as pessoas a olharem para si mesmas como nunca haviam feito. E quase sempre arrancava lágrimas de quem o ouvia.
O mundo de Alexandre se ampliou. Há cinco semanas, aos 31 anos, ele andou pela primeira vez com suas pernas emprestadas. ;É como se realmente eu andasse;, diz. E andou como nunca. Com o aperto de um botão, agora ele vai para onde deseja. Não precisa mais que ninguém o empurre. ;Ela (a cadeira) me trouxe a liberdade que nunca tinha sentido;, extasia-se. ;Ele não me dá mais sossego. Deixo ele na sala e, de repente, ele tá na cozinha. Quando vou ver já tá na rua;, fuxica, morta de felicidade, a mãe, Maria Ferreira, 56 anos, a mulher que viveu para ser as pernas e os braços do filho.
Católico praticante, devoto de Nossa Senhora, há quatro anos Alexandre entrou para o grupo de jovens Imago Dei (imagem de Deus), da Paróquia São Vicente, na Quadra 3 de Sobradinho. ;Quis me aprofundar na fé e no conhecimento da palavra de Deus;, explica. E é esse mesmo grupo que realiza a via-sacra da igreja. Em todos os anos, o rapaz dos ossos de vidro apenas assistia ao começo do espetáculo que percorre as ruas da cidade. ;A primeira vez que encontrei o grupo com a nova cadeira foi num retiro espiritual que fizemos em Brasilinha. Passamos dois dias lá. Todos ficaram emocionados quando me viram chegar ;andando; com minhas novas pernas;, conta, também emocionado.
Um dia, o coordenador da via-sacra, Richard Paixão, representante comercial de 36 anos, fez um convite a Alexandre que deixou suas pernas emprestadas bambas. ;Ele me convidou para ser um dos 30 atores do espetáculo;. diz. Sem hesitar, o rapaz cheio de limitações aceitou. E começaram os ensaios, sempre à noite, na paróquia. O papel que coube a ele foi o do apóstolo Tiago, um dos discípulos mais próximos de Jesus. E o convite realmente foi especial: Richard se transformará no filho de Deus na via-sacra.
Coração disparado
Alexandre surpreendeu os amigos nos ensaios da via-sacra. Decorou suas poucas falas. E comoveu-se por estar ali e fazer parte daquele espetáculo com o qual sempre sonhara. ;Agora, sim, vou ver Jesus ressuscitar;, diz, em estado de plenitude. ;A presença de Alexandre na via-sacra vai servir pra mostrar às pessoas que todos somos iguais. E ele é a capaz de fazer o que desejar;, elogia o coordenador da encenação da Paixão de Cristo de Sobradinho.
Ser igual. Esse é o longo caminho que Alexandre tenta seguir com suas pernas emborrachadas. ;A minha deficiência me deu força pra superar as dificuldades. Foi assim a vida toda. Virou o meu estímulo para me tornar como as outras pessoas. É o meu levantar diário;, reflete. E foi esse levantar diário que o manteve em pé, mesmo que nunca tivesse conseguido ficar assim.
Faltam quatro dias para Alexandre virar o apóstolo Tiago. A convite do Correio, ele se vestiu com o pedaço de pano que o cobrirá na encenação. Na porta da igreja, os olhos marejaram. A responsabilidade é grande, ele sabe disso. ;Quase não tenho dormido. A ansiedade é enorme e o meu coração tá acelerado. A emoção aumenta porque agora vou estar dentro do espetáculo;, avalia. A presença do rapaz provou que nem os ossos frágeis iriam detê-lo e tem deixado os componentes do grupo muitos emocionados. O amigo Rodrigo de Sousa, 22 anos, que fará também um dos discípulos, se espelha no exemplo de Alexandre. ;A gente se conhece há muito tempo. Aprendi a viver vendo a luta dele. Ele me levou à igreja. Nunca desistiu de mim;, agradece, com a voz embargada.
Eduardo Ferreira Abade, o irmão de 29 anos, mudou a própria vida convivendo com o rapaz que nunca mexeu braços e pernas. ;Foi ele quem me deu força pra fazer faculdade de administração. Disse que isso seria o meu futuro. Tô no primeiro semestre. As vitórias que ele consegue se espalham para todas as outras pessoas;, reflete.
Com pernas que não são suas, Alexandre anda. Nunca, em 31 anos, se sentiu tão livre. Não precisa mais que o empurrem. Vai se transformar em Tiago. E verá Cristo subir aos céus. Pergunto, no fim da entrevista, qual o sentido da Páscoa na sua vida. Firme como uma rocha, o homem de ossos tão delicados como cascas de ovos responde: ;É vida, é esperança, é fé em Deus. A fé que me fez chegar até aqui;. Não há nada mais a perguntar.
Boa causa
Alexandre aceita convites para palestras. Contato pelo telefone 9234-2167 ou pelo e-mail: aleximagem@hotmail.com