Cidades

Por uma nova vida

Ainda menina, a portenha Mercedes Urquiza se apaixonou pelo Brasil. Adolescente, se casou com outro apaixonado. Os dois decidiram largar a vida aristocrática de Buenos Aires e gastaram 49 dias para chegar a Brasília

postado em 03/04/2010 08:34
Mercedes no primeiro hotel contruído na nova capital, hoje restauradoÀs 9h de 1; de outubro de 1957, um casal ainda em lua de mel e se despediu dos amigos e entrou num velho jipe Land Rover, usado na Segunda Guerra Mundial, com um destino traçado no mapa: iriam começar a vida de casados em Brasília, a nova capital do Brasil que começava a ser construída. Levava, além de algum dinheiro, um baú de vime com roupas, talheres, máquina de escrever, um revólver e um pastor-alemão ainda bebê, Fleck.

A meia dúzia de amigos que apareceu para se despedir do casal fez uma aposta: eles voltariam do meio do caminho ou antes disso. A garota, Mercedes, tinha acabado de completar 18 anos. O marido, Hugo, estava com 20. Ela era filha da aristocracia argentina, tataraneta do general Justo José de Urquiza, primeiro presidente constitucional de Argentina. Ele era filho de um juiz renomado de Buenos Aires. A decisão de se casar havia sido acompanhada de outra, tão ou mais grave: os dois iriam começar a nova vida numa nova cidade no interior do Brasil.

;Você não vai levar a minha filha para a selva;, reagiu a mãe da noiva para um noivo determinado. ;Minha família, conta Mercedes Urquiza, era da alta sociedade. Cultivava tradições, mas eu não tinha simpatia pela maneira de ser dos argentinos em relação a isso. Essa coisa de ter que saber de onde a pessoa vem, de quem ela é filha. Era uma sociedade muito discriminada por faixa social.; Um recorte de jornal, com a notícia de que o Brasil começava a construir a nova capital, foi uma ;revelação; para Mercedes e Hugo. Desde então, os dois começaram a planejar a viagem para o novo mundo.

Na manhã de 1; de outubro de 1957, o casal e o cachorro começaram a subir o mapa- múndi em direção a uma cidade improvável. Com certa dificuldade, haviam obtido o visto de entrada tanto para os dois quanto para o jipe (doado pelo avô do noivo). Porém, na divisa da Argentina com o Brasil, eles perceberam que as dificuldades não seriam poucas. A legislação da época impedia a travessia de carros importados. Portanto, ou eles deixavam o jipe ou voltavam para casa. O jovem casal não aceitou nenhuma das duas opções. ;Depois da decisão tomada, a gente não ia voltar atrás, nunca. Não era um jipe velho que ia mudar nossos planos. Decidimos que iríamos atravessar a fronteira de qualquer maneira;, conta Mercedes.

Banquete no interior

Não foi difícil encontrar uma saída. Os recém-casados souberam que um contrabandista de carros importados poderia fazer a travessia do jipe. Chamava-se Esquivel e cobrava antecipadamente pelo serviço prestado. ;Eles atravessavam os carros caríssimos pelo Rio Paraná durante a madrugada. O nosso jipe não valia nem 500 dólares, mas não havia outro jeito de chegar ao Brasil. Passamos a noite num chão de terra batida, enquanto os homens construíam a balsa para atravessar o jipe. Era preciso esperar a hora em que a correnteza do rio permitisse a travessia. Quando finalmente colocaram o jipe na balsa, ele afundou um pouco. Meu coração parou, mas conseguimos.; O casal de jovens aventureiros estava, finalmente, em solo brasileiro.

Desde menina, Mercedes se apaixonara pelo Brasil. Costumava passar férias entre o Rio de Janeiro e São Paulo. Encantara-se pela cordialidade brasileira. E se encantaria mais ainda durante a viagem até Brasília. Como em Itaipava, sul de São Paulo, onde o jipe parou. ;Pifou tudo.; O casal encontrou um mecânico que, depois de um primeiro exame, deu o diagnóstico: o conserto demoraria pelo menos dois dias. O casal se inquietou: não havia hotel na pequena cidade. Foi quando o mecânico ofereceu a casa dele, nos fundos da oficina, para abrigá-los. ;Quando chegamos lá, a mulher dele havia preparado um banquete para nós. Havia na mesa umas 20 travessas com diferentes comidas, bem à moda do interior do Brasil. Na hora de dormir, eles cederam o quarto do casal para nós. Fomos tratados, naqueles dias, como rei e rainha;, conta Mercedes, com voz de quem está contendo o choro.

Quarenta e nove dias depois, o jovem casal terminava a primeira epopeia de suas vidas. Começaria a segunda. ;O primeiro espanto: Brasília não existia. A entrada do que eu poderia chamar de Brasília eram duas tábuas de madeira que formavam uma ponte por onde se entrava para a Cidade Livre, sobre o Córrego Vicente Pires. Encontramos barracos de madeira, muitos comércios, uma rua cheia de buraco e de uma gente que não parava de andar para lá e para cá.;

A morte de Fleck

Uma tragédia esperava pelo casal: no dia seguinte, saíram pela cidade e decidiram soltar Fleck, o pastor-alemão. Depois de quase dois meses preso a um jipe, ele saiu correndo por uma estrada que hoje é a rodovia BR-040. Um jipe em alta velocidade atropelou Fleck. Desesperado, Hugo carregou o cão nos braços e saiu pela cidade à procura de um veterinário. Doce ilusão. Quando se conformaram com a morte do guardião, o casal o enterrou e passou dois dias trancado no quarto, chorando.

O quarto que acolheu a dor de Mercedes e Hugo era um dos 30 do Hotel Santos Dumont, uma construção de madeira que oferecia aos hóspedes o conforto de uma cama, uma pia e dois banheiros coletivos. ;Nesse hotel, conheci personagens maravilhosos e todos que você conhecia ficavam amigos. Mais que amigos, éramos cúmplices da mesma luta;. Apesar da cumplicidade imediata, aqueles homens e mulheres, muitos mais aqueles do que essas, todos guardavam mistério de seus projetos. ;Todo mundo saía cedo para descobrir negócios, trabalho, todo mundo estava na mesma luta, mas ninguém contava para o outro para que não lhe roubassem a ideia.;

A primeira ideia do jovem casal foi a de vender Cinzano e Martini, mas logo descobriram que na Cidade Livre só se bebia cachaça. Com o tempo, conseguiram uma representação dos produtos Pirelli para construção civil. Pouco depois, Mercedes foi nomeada corretora oficial da Novacap, o que não chegava a ser um ofício lucrativo naqueles anos anteriores à inauguração da cidade. ;Eu podia vender todo o Plano Piloto, se quisesse (as áreas destinadas a moradias e comércios), mas não havia ninguém que quisesse comprar.;

Muito mudou desde então. O casal teve duas filhas, Mercedes e Gabriela. Hugo morreu em 1990, quando já estava separado de sua companheira de incríveis aventuras. Mercedes, suas filhas e dois netos são hoje empresários de turismo em Brasília. Buenos Aires só a passeio. Há oito anos, a portenha naturalizada brasileira reencontrou imagens do fotógrafo sueco Ake Borglund, feitas em 1957 em Brasília. Fotos que ela recebeu em retribuição à ajuda que prestou ao fotógrafo na visita à capital em construção. Mais de 50 anos depois, Mercedes localizou Borglund e recebeu dele outras 120 fotografias feitas naquela época. Do conjunto de 160 fotos, 112 estarão na exposição Brasília 1957: um saga do século XX. Fotografia inéditas de Ake Borglund, no corredor de acesso ao plenário da Câmara dos Deputados, entre 15 e 30 deste mês.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação