Cidades

No centro de Brasília, nove monumentos são restaurados pelos filhos dos que construíram a capital

Os chamados "novos candangos" seguem os passos dos pioneiros e se esforçam para manter a cidade admirável

postado em 04/04/2010 09:32
Brasília é feita de concreto e fé. Ergueu-se em meio ao nada, graças a cada gota de suor dos operários. Quase meio século depois da inauguração, há quem ainda acredite nela como um sonho e dê o sangue para mantê-la admirável. Parte do cenário que impregna a capital de identidade própria passa por uma reconstrução. A Esplanada dos Ministérios foi devolvida a seus criadores: pedreiros, serventes, mestres de obras, engenheiros e muitos outros. A cena faz lembrar com nostalgia o início da história, do delírio de Juscelino Kubitschek, ao qual os candangos deram forma. O Correio conta hoje e amanhã quem são as pessoas que ajudam, nos tempos atuais, a reavivar a imagem da cidade. Guardadas as devidas proporções e o respeito aos que começaram a capital do zero, em meados da década de 1950, eles poderiam ser chamados de ;novos candangos;.

Na Praça dos Três Poderes, homens e mulheres ajudam a dar cara nova a um dos pontos mais visitados da capital: almoço coletivo e cochilo no centro do poder

Atualmente, nove pontos históricos recebem vida nova (confira a lista). Os cubos de Athos Bulcão voltaram para a fachada do Teatro Nacional, depois de oito meses de obras. A Catedral está coberta de branco. Alguns a comparam a uma noiva, que espera pelo casamento há mais de um semestre. Na verdade, ela se prepara para renascer. O Palácio do Planalto refugiou-se atrás de tapumes e esconde um enorme espaço vazio, enquanto passa por uma reforma radical, há 11 meses. A casa de homens engravatados, local de trabalho do presidente da República, hoje abriga operários. Perto dali, a Praça dos Três Poderes está com o chão desfigurado. O antigo piso de pedras portuguesas, sujo e com buracos, vai dar lugar ao novo, feito do mesmo material. O Panteão da Pátria, memorial de heróis, parecerá mais conservado, em breve. Das mãos castigadas dos trabalhadores nascem beleza e renovação.

As trajetórias dos operários desses locais lembram as dos candangos. Até se entrelaçam, às vezes. Trabalhar na restauração do Palácio do Planalto é especial para o pedreiro Arnaldo Gomes, 35 anos, morador do Paranoá. O pai dele veio da Bahia e ajudou a construir o local. Hoje, o filho se tornou um homem alto, negro, de mãos calejadas e olhos pretos e grandes, como jabuticabas. Da boca em que brota um sorriso machucado, que entrega a falta de oportunidades na vida, sai uma voz calma e evidentemente alegre. Arnaldo é de uma felicidade simples. Usa sua força e juventude para manter de pé o legado que o pai dele e JK têm em comum. ;Meu pai viu a cidade nascer e me contou tudo. Cresci gostando de Brasília e me sinto honrado em trabalhar no palácio hoje;, contou (veja Personagem da notícia).

João Batista (E) trabalha na restauração da fachada do Teatro Nacional: resgate da históriaNo canteiro de obras do Palácio do Planalto, todos se chamam pelo mesmo apelido: ;Piauí;. É que muitos deles, além de Arnaldo, têm origem nordestina, como parte dos candangos. No Teatro Nacional, também há quem tenha histórias para contar, entre os mais de 30 operários. Quando era criança, João Batista, 59 anos, via Juscelino Kubitschek passear por Brasília. Hoje, se empenha na restauração da fachada do teatro. ;Vim pra cá fugido de uns ciganos com minha mãe, da Bahia. Pegamos carona em um avião do governo, escondido, porque ficaram com dó de mim. E hoje estou aqui, colocando os blocos no Teatro Nacional. Trabalho desde criança. A vida é assim;, relatou Batista.

Pedras
Pedreiros passam o dia refazendo o chão da Praça dos Três Poderes. Depois de limpar milhares de pedras portuguesas, colocam uma a uma novamente no mesmo lugar. As mãos dos operários, com a ajuda de uma marreta pequena, batem individualmente as pedras. Cada um dos 50 funcionários repete esse trabalho em 25 metros de chão, todos os dias, há cinco meses. Eles recebem

R$ 10 por metro. ;Isso aqui é um quebra-cabeça histórico. Tem que ficar perfeito. Quando eu passar aqui, vou lembrar que minha mão ajudou a construir isso tudo;, relatou o morador de São Sebastião Jackson Alkimim, 31 anos. Em meio a marretas e betoneiras, há também delicadeza. Quatro mulheres trabalham no local. As unhas feitas são cobertas por luvas na hora do batente. A vaidade fica de lado. ;Se a gente contar que trabalhou aqui, no futuro, ninguém vai acreditar. Porque somos mulheres;, disse Tatiane Silva, 23 anos, ao lado da irmã, Cristiane da Cruz, 34.

Custo das obras

Panteão: R$ 3,3 milhões
Praça dos Três Poderes: R$ 2 milhões
Torre de TV: R$ 25 milhões
Clube do Choro: R$ 6 milhões
Planetário: R$ 10 milhões
Nova Rodoviária: R$ 55 milhões
Catedral: R$ 25 milhões
Teatro Nacional: R$ 2 milhões
Palácio do Planalto: R$ 88 milhões

Fonte: Secretaria de Obras do DF


Suor e descanso
O piauiense Francisco Tomaz da Silva, 41 anos, vive em Águas Lindas (GO) e só passa pelo Plano Piloto a trabalho. Tem a pele queimada de tanto quebrar e recomeçar o chão da Praça dos Três Poderes. Quando quer relaxar, o homem forte acende um cigarro de fumo artesanal, enrolado em uma folha de caderno listrada de branco com azul. ;Brasília me deu saúde e trabalho. A gente ganha pouco, mas vê muita coisa bonita, principalmente as mulheres da praça;, brincou Francisco. O filho, Júnior, 13 anos, faz companhia. Veste um chapéu estilo sombreiro e ajuda Francisco na difícil tarefa de marretar o chão. ;Tem um pouco do nosso suor derramado aqui;, acredita o pai. O menino garante que não vai todos os dias, apenas acompanhou para ajudar na terça-feira última. No dia seguinte, a criança não estava mais lá.

Ao meio-dia em ponto, todos largam o trabalho e pegam suas marmitas para almoçar. Duas mesas foram improvisadas sob a laje do antigo restaurante da Praça dos Três Poderes. O exterior do espaço, antigamente frequentado por gente rica de Brasília, hoje serve como refeitório para os trabalhadores. Depois de comer, é hora de descansar. Muitos encontram uma sombra e deitam ali mesmo, no chão. Dividem a praça com os pombos e cochilam. No fim do dia, os homens e as mulheres seguem para casa. Dentro dos ônibus lotados que vão para longe, estão os trabalhadores exaustos, porém orgulhosos de terem deixado um pouco de si mesmos na história da imponente Brasília.


Os chamados Personagem da notícia
Herança do pai
Arnaldo Gomes é filho de Altino, hoje com 75 anos. O patriarca veio da Bahia e ajudou a construir a sede do Poder Executivo federal. ;Ele guarda com o maior carinho as fotos da época em que trabalhou na construção. Meu pai também ajudou a fazer o Conjunto Nacional. Tem muito da nossa família em Brasília;, orgulha-se o filho do pioneiro. Arnaldo ainda se encanta com as histórias de Altino. ;Olha só, meu pai ajudou a construir isso tudo;, diz, apontando para o Palácio do Planalto. Hoje, ele repete o caminho trilhado pelo homem que lhe deu a vida. Levanta antes do amanhecer, veste o uniforme cor de laranja e segue para o batente. O operário trabalha diariamente, das 7h às 19h. Ganha R$ 510 e, mesmo cansado, fica honrado por estar ali. ;Acho tudo aqui bonito. Mas reformar é pesado e o salário é pouco. Gosto de trabalhar aqui porque o Lula foi muito bom para o povo do Nordeste. Só espero que venha um presidente bom para pisar nessa rampa, no próximo governo.;

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