Cidades

A mulher que sonhou

Na roça, ela achava que era professora. Inventou escolinhas e a porteira de curral virou quadro-negro. Mas jurou a si mesma que um dia, como os passarinhos, voaria bem longe dali. Pouco a pouco, a mineira Zezé de Queiroz transformou a sua vida e a de toda sorte de gente que se aproxima dela

postado em 12/04/2010 08:06
Elas falam de filosofia, gastronomia e vidaEsta é uma história de uma mulher que fez, antes de qualquer coisa, a diferença na própria vida. E, sem imaginar, salvou a si mesma. Na zona rural de Patos de Minas, onde tudo faltava, ela queria muito mais do que nadar no riacho e subir em árvore. Queria ser livre, voar como os passarinhos que via no céu. Entender as palavras que não entendia. Ela sempre quis tudo que nunca teve. Aos 7 anos, 13; filha de uma família com 16 irmãos, fingia que a porteira do curral era o quadro-negro da escola que imaginava. E, com as mãos sujas de carvão, escrevia como se professora fosse. Os alunos? Os animais que estavam ali. Às vezes, aparecia um ou outro menino querendo entender o que estava escrito na porteira do curral.

Ela dizia que um dia voaria daquele lugar. Viajaria sem rumo. Aos 10 anos, a menina pobre voou. Sai da roça e foi morar na cidade. Patos de Minas era o lugar maior aonde havia chegado. Ali, na casa onde moraria, tinha chuveiro. Deliciou-se com o primeiro banho da água que não escorria da bica. Aos 10 anos, a menina da roça virara babá na cidade que queria crescer. Cuidaria de crianças como ela. Em troca, estudaria. Era a glória para a 13; filha dos agricultores analfabetos.

Na cidade maior do que a roça em que vivia, Maria José de Queiroz, que já nasceu Zezé, aprendeu que a vida é feita sempre de troca. Se não deixasse os filhos dos patrões caírem e cuidasse deles com zelo de menina grande, teria o direito de estudar. E foi assim que a menina, tão criança quanto as crianças que carregava nos braços, descobriu que letras podem salvar vidas. Na escola pública da cidadezinha, ela cursou o primário e o ginásio. Encantava-se com as histórias que lia nos livros. Inventava viagens que nunca fez. Sem arredar o pé da então miúda Patos de Minas, ela conheceu o mundo com a imaginação fértil.

De babá, mais mocinha, Zezé trocou de casa e de atividade. Virou doméstica. E chegou ao curso normal. Formou-se em professora primária. A menina que, da porteira, inventava quadro-negro, agora podia escrever de verdade com giz. Mas a doméstica agora professora queria mais. Com as economias do dinheiro das casas alheias, partiu para Brasília. Em 1970, aos 20 anos, chegou à terra de JK. Sonhava com uma sala cheia de alunos.

Parou num pensionato, na W3 Sul. Prestou concurso para a então Fundação Educacional. Foi aprovada. A ex-doméstica agora era professora por mérito. E foi trabalhar com o que mais gostava: a alfabetização. Rodou pelas mais diferentes cidades do DF. Assim, passaram-se dez anos. Nesse período, arregaçou as mangas e trouxe dois irmãos, que também sonhavam estudar, para Brasília.

Zezé se casou com um militar cearense, em 1974. Anos depois, teve duas filhas. A família foi morar no Núcleo Bandeirante. A mulher que ensinava crianças o encantamento pelas letras alfabetizou as próprias filhas. ;Aos 4 anos, elas já sabiam ler e escrever;, orgulha-se a professora. Depois de 18 anos ensinando dia e noite, ela se aposentou. Decidiu que ajudaria as filhas a se formarem. Boa cozinheira, montou um bufê. As meninas se graduaram. Hoje, uma é funcionária do Tribunal Superior do Trabalho; e outra, assessora jurídica da Caixa Econômica.

Devolução
Filhas formadas, rumos seguidos, Zezé decidiu que era hora de fazer algo além de tudo que já havia feito. ;Eu era tão feliz que me vi na obrigação de devolver à comunidade o que a vida tinha me dado;, ela diz. Na casa modesta dela (nunca teve luxo), ainda no Núcleo Bandeirante, fez a primeira experiência. Abriu suas portas para quem desejasse entrar. E se dispôs a ouvir com ouvidos de quem não julga. ;Era uma espécie de terapia alternativa, sem pretensão nenhuma que não fosse escutar;, conta.

Mães com problemas com filhos. Crianças com dificuldade de aprendizado. Casais em conflito conjugal. Uma gente com as mais diferentes dificuldades e desesperos batia à sua porta. Saíam dali com algum livro ou até filme em DVD, que tivesse a ver com aquele momento. A história se espalhou pela vizinhança. As pessoas comentavam que naquela casa uma mulher sabia ouvir e ainda indicava bons livros. Agregou amigos.

Na trilha da vida: Zezé (D, à frente), com as amigas Perla (E), Maria Auxiliadora (C) e Marcela: quarteto se reúne para leiturasHá três anos, a mulher que nasceu na roça se mudou com o marido e as filhas para uma casa maior, na Metropolitana, nos fundos do Núcleo Bandeirante. Naquele lugar extremamente aconchegante, cheio de casas com jardins bonitos e ruas tranquilas, ela procurou saber quem eram seus vizinhos. Apresentou-se. E, mais uma vez, disse que batessem à sua porta quando precisassem.

Do outro lado da rua, numa área pública (atrás do estádio da Metropolitana), numa espécie de hortinha comunitária, ela plantou framboesa, maracujá, cebolinha verde, couve, manjericão e hortelã. Avisou que tudo era de todos. ;De repente, percebi que a vizinhança começou a pintar os próprios muros, a rua ficou bonita;, comemora. E continuou a emprestar livros a quem lhe pedia, ouvir desabafos de quem queria gritar e a falar de transformação de vida para quem tinha a capacidade de escutar.

Juntou novos e velhos amigos e amigas. Gente que mora perto e muito longe. Fez da caminhada dela a caminhada de todos. Apareceu a professora Marcela Akyke, de 39 anos, do Park Way. Vieram também a jornalista Perla Alvez Motta Santos, 57, do Jardim Botânico, e a pedagoga Maria Auxiliadora de Sousa, 60, antiga conhecida do Núcleo Bandeirante. Elas discutem literatura, culinária, pensamento holístico, filosofia, psicologia, natureza... A agenda está sempre lotada. E se alguém bater ao portão, Zezé não deixa de ouvir.

Linha do trem
O grupo de amigos, do qual as quatro fazem parte, virou uma espécie de referência, vai criar o Instituto Gente Viva. ;Já estamos com o regimento pronto. Só falta registrar em cartório;, explica Marcela, a idealizadora do projeto. Zezé continua: ;Iremos nos juntar pra despertar o ser humano e integrá-lo como parte de um todo.; Marcela intervém: ;Usaremos quatro pilares: amor, alegria, prosperidade e saúde;. Apenas sobre um assunto o grupo não debaterá: religião. ;Aceitamos todas as manifestações religiosas, sem sectarismos;, adianta Zezé.

Maria Auxiliadora, por exemplo, é católica fervorosa e praticante. Aos domingos, na paróquia que frequenta, vira ministra da eucaristia. Perla é espírita. Zezé, que já transitou pela Seicho-No-Ie, comungou na missa, confessou com padre, ouviu pastores, hoje se diz ;apenas em conexão com o universo;. Depois de tantas voltas à procura de si mesma, a inquieta Zezé decreta: ;Descobri que há muito ritual e pouca transformação. O divino tá dentro de nós;. E invoca até a física quântica. ;É a física das possibilidades que temos sobre nossas vidas;, explica a mulher que, lá na roça, queria voar como os passarinhos e conversava com as árvores.

Na linha do trem que passa atrás da bucólica Metropolitana, ao lado de uma ciclovia, Zezé faz suas caminhadas. Maria Auxiliadora, quase sempre, a acompanha. Juntas, leem livros. Às vezes, levam cadeiras e sentam-se sob as sombras das árvores. Zezé, quando está sozinha, fala alto. Sem se importar com a estranheza que a cena possa causar. ;Se acharem que sou doida, não ligo;, avisa. Conversa com os passarinhos, uma planta. Há quem estranhe. Mas espanto não causa mais na redondeza. Todos a conhecem como a mulher que fala com a natureza. ;É o pensamento trabalhando, é a emoção à flor da pele;, explica, com sorriso de menina.

Passado meio século desde que saiu da roça, Zezé, hoje aos 60 anos, reflete sobre a vida: ;As pessoas escrevem sua história e fazem suas escolhas;. E conta que, nas andadas perto da linha do trem, tem lido Corpo sem idade, mente sem fronteiras, do médico e escritor indiano Deepak Chopra. ;Ele diz que ;um surto de depressão pode arrasar com o sistema imunológico. Apaixonar-se, ao contrário, pode fortificá-lo tremendamente;. É nisso em que acredito. E olha que minha vida nem sempre foi doce.;

Admirando suas framboesas que não param de nascer, a mulher miúda de 1,50m ; que se tornou grande pelos sonhos que acalentou ; extasia-se: ;Hoje, minhas lágrimas são só de alegria;. Perla a admira: ;Ela é uma grande menina pequena;.

Zezé, lá longe, inventando quadro-negro em porteira de curral, tinha certeza disso. ;Estudar me fez descobrir o mundo e a mim mesma.; Com a descoberta do mundo, a vida se arrebatou. E abriu todas as portas sonhadas por aquela menina que só queria voar. Ela não mudou o mundo. Não descobriu a pólvora. Mudou a pequena rua onde mora. Inquietou, para o bem, gente em torno dela. E principalmente mudou a própria realidade. Essa é a sua grande revolução.


PARTE DE UM TODO
Quer participar do Instituto Gente Viva? Entre em contato com Zezé, pelo telefone 9209-0122 ou pelo e-mail genteviva.marcela@gmail.com

"Estudar me fez descobrir o mundo e a mim mesma"
Maria José Queiroz, professora aposentada

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação