postado em 14/04/2010 08:33
A cidade dos sonhos deixou muitas viúvas, jovens viúvas, antes mesmo de ser inaugurada. Mulheres de operários que morreram em acidentes de trabalho durante o ritmo vertiginoso das obras da nova capital. A lembrança das candangas que perderam seus maridos para a utopia ficou como um traço forte na memória de Tereza Keliski Lobo, 76 anos, catarinense de Criciúma, que se casou com um topógrafo goiano, Honório Lobo Neto, um dos primeiros a vir fazer a medição das terras do futuro Plano Piloto.Dona Tereza mora na mesma casa, na 711 Sul, há 52 anos. O marido ganhou uma das 500 primeiras unidades que a Fundação da Casa Popular construiu na W 3. Naquele tempo, o número da quadra era outro: 32. Quando a família Lobo se mudou para o conjunto de casinhas brancas e quadradinhas, a W 3 ainda era uma ferida vermelha no cerrado. As casas geminadas, de quintal nos fundos e varanda na frente, ficaram prontas, os primeiros moradores se mudaram, mas não havia água, luz , esgoto nem pavimentação. As obras de saneamento e pavimentação vieram aos poucos.
Durante certo tempo, os primeiros bravos candangos moradores das casas da W-3 viveram ilhados entre rios de terra vermelha, ora espalhando poeira, ora transbordando lama. Ela lembra: ;As máquinas não paravam, o dia todo. Meus filhos eram pequenos e quando eu estendia as fraldas no varal e vinha uma ventania, tinha de lavar tudo de novo;.
Vaivém
Se naquele tempo a falta de urbanização era temporária, passados 50 anos, ela é perene. E dona Tereza pagou com o próprio corpo pelo abandono e pelo desleixo da administração pública para com a cidade dos sonhos. Há 18 anos, ela tropeçou numa calçada desconjuntada, quebrou o braço esquerdo e fez várias cirurgias, porém nunca mais recuperou a mobilidade original. Quase duas décadas depois, as calçadas estão em piores condições. ;As árvores cresceram muito e as raízes vão quebrando tudo pela frente;, diz, com seu jeito de falar de olhos fechados como quem se concentra nas palavras.
Nos primeiros três anos de Brasília, entre 1957 e 1960, dona Tereza teve de se dividir entre o emprego em Santa Catarina e o marido em Brasília. Os dois haviam se conhecido em Criciúma, em 1956, quando Honório trabalhava no levantamento das minas carboníferas da região. Tereza já era funcionária do Iapetec (Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Empregados em Transporte e Cargas). Pensava em conseguir a transferência para a nova capital, já que o instituto era um dos que iriam construir blocos de superquadras no Plano Piloto. Mas não foi tão fácil quanto parecia ser.
Até que a brava catarinense candanga decidiu utilizar um recurso tipicamente brasileiro. Grávida do terceiro filho, cansada das idas e vindas de Santa Catarina ao Planalto Central, ela decidiu recorrer a Juscelino Kubitschek. Quando soube que ele iria inaugurar o Caseb, o centro de ensino fundamental da 909 Sul, percebeu que era a chance de tentar conseguir o que buscava. Escreveu uma carta ao presidente da República e a entregou a uma das pessoas de sua comitiva. Contou que era funcionária do Iapetec, que o marido era topógrafo da Novacap, que o casal tinha sido um dos primeiros a chegar a Brasília, que ela já estava grávida do terceiro filho; Hoje, esse é um recurso com pouquíssima possibilidade de sucesso, mas naquela Brasília, tudo era possível. Quinze dias depois, dona Tereza foi oficialmente transferida para Brasília. Juntou a família e o emprego numa só cidade.
Emas e veados
Dona Tereza foi testemunha dos primeiros encontros entre a natureza viva do cerrado e a natureza concreta da arquitetura: não poucas vezes, cruzou com veados-galheiros, emas e, à noite, com lobos-guarás que entrecortavam as quadras, atravessavam a W 3 Sul, como se o destino daquele chão já não estivesse mudado. O dela também havia sido alterado radical e definitivamente. ;Jamais imaginei que viria para Brasília, que deixaria minha família e meus amigos para nunca mais voltar. Eu tinha muitos pretendentes na minha cidade e, de repente, chegou um goiano que me trouxe para participar dessa magnífica obra, onde muito me orgulho de viver;, disse dona Tereza, em e-mail que enviou depois da entrevista.
Desde que o topógrafo Honório Lobo Neto apareceu em Criciúma para fazer o levantamento topográfico de minas carboníferas, em 1956, o destino dela começava a mudar. O goiano decidiu se casar com a catarinense e, nesse período, foi deslocado para nova tarefa ; a de demarcar a nova capital do país. Honório trabalhava na Geofoto, empresa de aerofotogrametria e geoprocessamento que fez os primeiros levantamentos topográficos utilizados para a escolha do sítio onde Brasília seria construída. Ainda antes da inauguração de Brasília, Honório mudou de emprego, foi trabalhar na Novacap, mas continuou com a mesma função, demarcar as asas, os eixos, as superquadras, as entrequadras, definir a localização do projeto de Lucio Costa.
Acidentes
A família morava na 711 Sul e Tereza trabalhava na 307 Sul, onde ficava o escritório do Iapetec. Auxiliar administrativa, cabia a ela receber as notificações de acidentes de trabalho e encaminhar o pagamento de salários e indenizações devidos aos funcionários acidentados. Foi assim que ela testemunhou a tragédia cotidiana que acompanhou a construção da utopia, os ferimentos e as mortes dos operários. ;Eram muitos acidentes e o que me impressionava eram as viúvas muito jovens;, recorda. Feitas as contas dos pagamentos, os papéis eram encaminhados para a tesoureira do Iapetec, Talita Aparecida de Abreu, a Katucha, primeira colunista social de Brasília.
Ao mesmo tempo em que trabalhava num dos institutos que construíram as superquadras, Talita começava a instigar o surgimento do que até hoje se chama de corte brasiliense, a alta sociedade candanga, formada de pioneiros que enriqueceram na cidade e daqueles que enriqueceram mais ainda. Quando dona Tereza ficou grávida do terceiro filho, Katucha registrou o acontecimento com uma nota no Correio Braziliense. Foi a única vez que a brava catarinense teve direito a um registro em coluna social.
Seu Honório morreu em 1986. Os três filhos de dona Tereza se casaram e se mudaram da casa da 711 Sul. A brava candanga tem seis netos e um bisneto, todos brasilienses e, apesar da preocupação da família com o fato de ela morar sozinha num espaço generoso, está decidida a ficar até a morte na casa que ganhou com uma carta. Até hoje, dona Tereza sabe o valor da palavra escrita. Foi um e-mail que ela escreveu à redação que permitiu que sua história se tornasse pública. ;Escrevo isso para melhor lhe explicar sobre o destino de uma pessoa;. Está explicado, dona Tereza.