postado em 18/04/2010 07:53
Não, a longa conversa não foi num ponto de táxi, como poderia ter sido. Ou numa corrida. Ela marcou o encontro no estacionamento de uma igreja, na QI 9 do Lago Sul. E lá estava a mulher procurada, em pé ao lado do carro, esperando alguém que nunca vira antes. Aliás, a rotina dela, quase sempre, é esperar por alguém que nunca viu. A vida desta moça é, de fato, muito passageira. E tudo termina numa viagem. Irreverente, logo depois das apresentações formais, ela quebra o gelo. E sapeca, do nada, às gargalhadas: ;Você viu como sou bela;?. Márcia Maria Gomes de Araújo aprendeu a ser simpática. Nem sempre foi assim. Aprendeu a ser simpática para parecer simpática a quem nunca viu. Para sobreviver.Márcia Maria é assim. Mineira de São Francisco, pertinho de Montes Claros, já divisa com a Bahia, desde menina a vida lhe avisou que nada seria de graça. Filha de uma merendeira escolar e de um escrivão, seis irmãos, tudo sempre foi muito contado. Até o pão. Aos 13 anos, conheceu o homem que seria o pai de seus quatro filhos. ;Fiquei noiva com 15 anos. Foi o primeiro e único homem da minha vida;, diz, ainda apaixonada, depois de 26 anos de casamento
Aos 16, a filha da merendeira escolar casou-se com o primeiro namorado, oito anos mais velho que ela. Mudaram-se para Januária, terra onde ele trabalhava como servidor público. Vieram os filhos ; duas moças, hoje com 25 e 21 anos, e dois meninos ; de 17 e 15 anos. A vida seguia. Márcia Maria virou o que nasceu pra ser, pelo menos era assim que a vida se desenhava. Seria boa mãe e dona de casa em tempo integral. Luiz Roberto Ferreira de Araújo, o marido, tornou-se importante na pequena cidade mineira.
Era o presidente do Lions Clube. Coisa chique demais. Notas em coluna social. ;Eu era a primeira-dama;, conta. Participavam de encontros de casais da Igreja Católica. Um dia, com os filhos crescidos, Márcia Maria quis trabalhar. Formada no ensino médio, deu aula particular para crianças. E teve até uma loja de calçados. Ela passou no vestibular para pedagogia, numa instituição particular. Descobriu o mundo. Tudo seguia. Até a vida.
Em julho de 1999, uma mudança radical na família. Servidor público de uma autarquia do governo federal, o marido veio transferido para Brasília. Márcia Maria arrumou a mudança e partiu, com os quatro filhos, para o desconhecido. Recomeçaria num lugar onde nunca havia estado. Januária ficou para trás. Pararam no Guará.
Em 2000, a ex-primeira-dama do Lions Clube da cidade mineira virara, em caráter temporário, servidora pública. Tornou-se secretária. Graças à transferência do marido, conseguiu uma vaga no curso de pedagogia, na Universidade de Brasília (UnB). ;Trabalhava durante o dia, e à noite estudava;, diz. Os filhos foram para a escola. Brasília, cada vez mais, era realidade. Januária, um passado bom. E a vida seguia.
Reiventar a vida
O novo ofício de Márcia Maria não durou muito. Três anos depois, o contrato temporário chegou ao fim. Em dezembro de 2007, recebeu o diploma de pedagoga, pela UnB. ;Ainda fiz especialização em orientação educacional;, conta. ;Comecei a procurar emprego. Mandei currículos para todos os cantos e estudei para concurso. Nada apareceu.; E o desespero: ;Veio o estresse incontrolável, a depressão e fiquei muito mal. Meu cabelo começou a cair. Fui a médicos, achando que tava doente fisicamente;.
A situação financeira na casa, ela diz, ficou ruim. Pesou e as contas não fechavam. O marido tem um táxi alugado. À noite, depois do trabalho na autarquia, ele vira taxista. Márcia Maria sentiu que precisava ajudar em casa. Mais que isso. Decidiu que ajudaria a si própria. Desde os 16 anos, ela dirigia. ;No interior, a gente começa a guiar cedo.; Um dia, avisou ao marido: ;Roberto, tô desempregada, estamos com dívidas, as coisas estão complicadas, preciso fazer alguma coisa. Vou dirigir o táxi durante o dia pra ajudar nas despesas;.
O marido nem deixou que a mulher continuasse com a proposta. ;Tem lógica isso, não;, retrucou. Márcia Maria insistiu. Fez teste no Detran, para pegar uma autorização especial, que lhe permite dirigir táxis. Carteira com nova observação, ela partiu. Estava de emprego novo. A vida precisa seguir. A colunável de Januária viraria taxista na terra de Juscelino, Oscar e Lucio.
Há três meses e meio, Márcia Maria é a mais nova mulher a dirigir um táxi em Brasília. São poucas no ramo, considerando a frota de 3,4 mil carros que rodam pelo DF todos os dias. ;Existem menos de 100 mulheres na praça. A maior parte tem o segundo grau. Com curso superior, acho que não passam de três, mas nem sei se chega a isso tudo;, informa Maria do Bonfim de Santana, 55 anos, presidenta do Sindicato de Permissionários de Táxi e Motoristas Auxiliares do DF.
Mundo inimaginável
E Márcia Maria, a pedagoga formada pela UnB, a ex-primeira-dama do Lions de Januária, ganhou a praça. Madrugou. Saiu de casa, no Condomínio San Francisco II, depois da Escola Fazendária, às 6h40. Deixou os filhos mais novos na escola e seguiu. A vida precisava seguir. Roberto foi para o trabalho. Recomendou que ela escolhesse o Lago Sul como ponto de suas chamadas. Ligada a uma rádio que oferece desconto na tarifa final, a mais nova taxista da cidade seguiu cuidadosamente os conselhos do marido ; entre eles, parar de rodar às 18h30. E esperou que as chamadas e o novo mundo entrassem pelo seu VW Polo Classic Verde, ano 1998.
Lá se foi a miudinha ; só em tamanho ; Márcia Maria. O marido ligava, vez por outra, para saber do paradeiro da mulher taxista. E as corridas apareceram. E uma gente que nunca vira na vida viajou no seu táxi. E logo conquistou as mulheres, principalmente as mais idosas, que, surpreendentemente, não hesitam em andar no banco da frente. Causou estranheza em alguns homens, que a olharam com desconfiança. ;Eles ficam imaginando se eu sei mesmo dirigir ou não. Me testam;, conta.
Há mais de 90 dias rodando com seu táxi pelas largas avenidas de Brasília e do rico Lago Sul, Márcia Maria colecionou amizade (senhorinhas que já marcam horário só com ela) e ouviu histórias que nem em confessionário talvez se contem ao padre. ;Uma vez, peguei uma garota de programa. Ao telefone, ela marcava o encontro com o cliente. Falava alto, contava das preferências sexuais e dos preços, sem cerimônia. Eu é que fiquei envergonhada. Ela? Não tava nem aí;. E casal discutindo a relação? Perdeu as contas. Confusão de pai e filho? Meu Deus! Mulher que quer seguir homem adúltero? Vixe! O contrário também.
Acontece de tudo no Polo Classic de Márcia Maria. ;O banco de um taxista vira um consultório psicológico;, ela brinca. E dá crédito à frase: ;Foi uma passageira quem me disse isso;. Conta, emocionada: ;Uma vez, levei uma senhora pra fazer hemodiálise, num hospital particular na Asa Sul. No caminho, o telefone tocou. Era do hospital, dizendo que o aparelho tava quebrado. Ela chorou muito. Choramos juntas;.
Cena comum é senhorinha, daquelas que afagam e gostam de gente, convidá-la, depois da corrida, para um café, um pedaço de bolo, um bocadinho de biscoito caseiro. ;Fiz verdadeiras amigas na praça;, comemora a ex-primeira-dama do Lions Clube de Januária, que não dispensa o batom, lápis nos olhos e um bom salto. ;A mulher não pode se descuidar nunca;, ensina.
E cantadas, aparecem? Ela é taxativa: ;Se tem, não percebo. Acho que vai muito do comportamento da mulher dar espaço ou não. Imponho respeito;. E ciúmes, o maridão sente? O próprio responde: ;São os ossos do ofício, mas temos uma união consolidada, fizemos bodas de prata. A convivência nos protege;. Vai continuar na praça? ;Nunca pensei que um dia viraria taxista. A vida me trouxe até aqui. Ainda tá difícil, mas começo a pagar as contas. Tô feliz, me sentindo viva.; Que venha, então, a próxima corrida. A vida de Márcia Maria continuará seguindo. Como as inusitadas viagens que faz todo dia, carregando, quase sempre, uma gente que nunca viu.