Cidades

Por semana, são registrados dois casos de abuso ou violência sexual contra menores no DF

Os dados são da delegacia especializada no combate a crimes contra crianças e adolescentes. O agressor geralmente frequenta o lar da vítima

Guilherme Goulart
postado em 26/04/2010 07:59
A menina Catarina*, 8 anos, recebeu da escola uma tarefa simples: desenhar a família em uma folha de papel em branco. Teve um pouco mais de dificuldade do que os coleguinhas, mas entregou o trabalho. Ao recebê-lo, a professora levou um susto. A criança havia aproveitado só o canto inferior esquerdo da folha em formato A4. Os desenhos, quase em miniatura, revelavam a garota entre os pais. A mãe aparecia de mãos dadas com a filha. Mas o pai estava nu e com a mão na altura de onde seria a genitália dela. Os traços de Catarina viraram caso de polícia. E o pai responderá a processo por estupro.

Casos de abusos sexuais contra crianças e adolescentes, como o ocorrido em Samambaia no início do ano, se espalham pelo Distrito Federal. Não fazem distinção de gênero ou de classe social. Investigações policiais ainda revelam que o agressor está mais perto do que se imagina. ;São crimes difíceis de se provar, pois ocorrem entre quatro paredes e sem testemunhas. Geralmente, em ambiente familiar ou arredores, como vizinhos e amigos. O autor trabalha com ameaça e abusa da superioridade;, explicou a titular da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), delegada Gláucia Cristina Esper.

A divisão especializada em desrespeitos cometidos contra garotos e garotas com menos de 18 anos registrou 131 ocorrências de violência sexual em 2009. Os dados apontam para uma média de mais de dois casos por semana em todas as regiões administrativas da capital do país. Os abusos representaram 18% do total de crimes do ano passado. Aparece na segunda colocação, perdendo apenas para maus-tratos (20%). Ou seja: é mais frequente uma criança brasiliense passar pelo trauma de um ataque sexual do que sofrer uma lesão corporal ou tortura.

Investigação
No caso de Catarina, a escola teve papel fundamental na descoberta do problema. A partir do desenho feito pela menina, a diretoria se mobilizou. Entrou em contato com o conselho tutelar, que encaminhou a desconfiança de abuso sexual à DPCA. Investigadores avaliaram a ocorrência e convocaram a família à delegacia. Tomaram o cuidado de não informá-la sobre o motivo da intimação. ;Eles (os pais) vieram sem saber de nada. Separamos a família e uma agente ouviu a garota em separado, como sempre acontece;, contou a delegada Gláucia.

Enquanto o pai dormia na sala de espera, a criança ficou em uma sala especial acompanhada de uma policial com formação em psicologia. Apesar do ambiente lúdico e do uso de bonecos anatomicamente completos, a agente teve dificuldades em ouvir da menina a história por trás da tarefa escolar. Mas a entrevista avançou após ela mostrar o desenho feito dias antes. A partir de então, surgiram as primeiras informações sobre um pai que violentava sexualmente a filha havia pelo menos dois anos. Tudo no ambiente doméstico.

Ele vinha cedo, quando eu ainda estava dormindo. Eu acordava com ele mexendo em mim. Ele aproveitava que não tinha ninguém em casa pela manhã para fazer essas coisas comigo desde os meus 11 anos. Eu mostrava para ele que não gostava, que não queria, mas não adiantava nada. Também nunca usou camisinha. Jamais se preocupou com isso. O que mais me dá raiva é que há tanta mulher no mundo e ele veio logo comigo. Durante anos não consegui falar nada com ninguém. Me fechei. Guardava tudo para mim. Ele me ameaçava. Se eu contasse alguma coisa para alguém, dizia que mataria minha irmã (mulher do abusador), meu sobrinho e meus pais. Tinha medo de que ele realmente fosse capaz de fazer uma coisa dessas. Eu descarregava tudo no papel. Escrevi bastante durante todos esses anos e guardei tudo. Era a minha única válvula de escape. Escrevia sempre que me sentia mal por causa dessa violência. Pior foi que tive que me afastar dos meus amigos e das pessoas que mais gostava por causa da insegurança e da tristeza. Acho que a partir de agora sempre terei desconfianças em relação aos homens. Vai ser muito difícil.Os investigadores da DPCA, então, explicaram aos pais de Catarina a situação. A mãe reagiu com incredulidade, o que assustou e magoou a criança. O pai negou. Argumentou que era tudo invenção. Mas não sustentou a mentira por muito tempo. Em depoimento à polícia, deu detalhes dos abusos praticados contra a garota. Admitiu que costumava passar a mão e dar pequenos beliscões na vagina. Ressaltou que o fazia sempre sobre a calcinha. Disse, porém, que frequentemente se masturbava em frente à vítima.

O pai acrescentou que a primeira vez a se sentir excitado diante de Catarina ocorreu após um banho. A mulher tinha pedido para ele vesti-la e aproveitou-se da ocasião. Ele repetiu o comportamento até o mês anterior, quando a professora se deparou com o resultado do trabalho escolar. O casal tem uma filha mais nova, mas, segundo o acusado, jamais a tocou com intenções sexuais. A polícia sugeriu o afastamento do pai do lar, pedido concedido pela Justiça. Apesar de não ter ocorrido penetração, responderá a processo por estupro de vulnerável. A pena varia de 8 a 15 anos de prisão.

;Eu não queria;
Outro caso recente capaz de provocar revolta e indignação ocorreu em Ceilândia. Teve como alvo uma adolescente de 14 anos, obrigada a manter relações sexuais com o cunhado desde os 11. Carla* era atacada dentro da própria casa e pela manhã, quando os pais saíam para o trabalho. O homem de 30 anos, pai do sobrinho da vítima, tinha acesso livre à residência. ;Eu o tinha como um filho e fazia tudo por ele. Até emprego arranjei. Ele me pedia a bênção. Hoje, vejo que não se deve confiar em ninguém. Ele acabou com a minha vida e a das minhas filhas;, revoltou-se o pai da moça, um vigilante de 54 anos.

O pesadelo da família teve início após o então futuro genro se envolver com a filha mais velha, ainda adolescente. O relacionamento logo rendeu uma gravidez e, consequentemente, um casamento. O casal mudou-se na época para uma casa na vizinhança, apesar do desemprego do rapaz. O vigilante lhe conseguiu um trabalho de porteiro. Em seguida, virou instrutor de autoescola. Como o imóvel alugado não tinha lugar para deixar o carro, o sogro ofereceu a garagem de casa. O genro também usava a geladeira, pois a dele estava com problemas.

A partir de então, começaram os abusos contra Carla. O cunhado aproveitou-se da oportunidade. A mãe da adolescente, por exemplo, trabalha de segunda-feira a sábado. Sai cedo de casa. O pai segue rotina de pelo menos 12h seguidas no emprego ; o agressor também sabia os dias de folga dele. Ao Correio, a garota narrou histórias de violência, humilhação, desrespeito e ameaça (leia depoimento). ;Eu mostrava para ele que não gostava, que não queria, mas não adiantava nada;, afirmou a adolescente tímida e retraída, com o corpo ainda em formação.

Os pais não repararam os sinais de desconforto. A vítima repetiu de série três anos seguidos. Voltou a fazer xixi na cama. Tornou-se fechada e triste. ;Achamos que era algo na escola. Jamais imaginamos que seria uma coisa dessas;, lamentou o pai. Mais uma vez a escola teve papel decisivo para a descoberta do abuso. A menina sentiu-se segura e conversou com um professor durante a separação da irmã. Escreveu uma redação sobre o assunto. Em setembro de 2009, tudo veio à tona. O vigilante sentiu vontade de matar o genro. Mas registrou uma ocorrência na delegacia. O caso está por conta da Justiça.

* Os nomes das vítimas são fictícios em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Nova lei
O artigo 217-a, do Código Penal Brasileiro, proíbe conjunção carnal ou ato libidinoso contra menores de 14 anos. Foi criado a partir da publicação da Lei n; 12.015, de agosto de 2009, em substituição ao artigo 224 (presunção de violência ou estupro presumido).

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