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"Homem Azul" perambula pelos semáforos da cidade

Olhando de longe, parece personagem de propaganda. Chegando perto, lembra o roqueiro Raul Seixas, já falecido. Esse é Amarildo Alves

postado em 28/04/2010 08:39
Amarildo chegou a passar uma temporada em Barcelona, onde teve a ideia de ganhar a vida interpretando esse personagem. Mas voltou a Brasília por saudade do filho. A transformação é rápida: em 15 minutos, Amarildo Alves, 39 anos, morador de Ceilândia Sul, deixa de ser um pai de família comum e se transforma no Homem Azul. Desde dezembro do ano passado, ele vaga pelos semáforos do Plano Piloto e interpreta uma estátua viva colorida inspirada no músico Raul Seixas. Sob a sombra de uma árvore, o homem pinta o rosto com uma mistura de creme e corante azul. E assim nasce o personagem caricato. Até os cabelos e o cavanhaque ganham coloração. A roupa é tingida com a mesma pigmentação, mas fica guardada dentro da mala carregada com dificuldade pelo corredor do ônibus lotado que leva Amarildo para o trabalho de segunda a sexta-feira bem cedo, às 7h30. O retorno ao lar só ocorre no fim do dia.

Quando sai de casa, Amarildo veste calça e blusa normais. Não é alto nem baixo. Nem gordo, nem magro. É mais um na multidão. Mas leva na bagagem os elementos que lhe dão uma aparência peculiar: óculos escuros com armação pintada de azul, luvas da mesma cor, chapéu panamá no mesmo tom, tênis azuis e um violão, é claro, cor do mar ; emprestado da esposa, com a promessa nunca cumprida de devolução. A escolha na hora de se caracterizar foi por eliminação. ;Queria fazer algo diferente do prata, que muitas estátuas vivas usam. Não gosto de vermelho nem de amarelo. Escolhi o azul para chamar atenção;, justificou. Mas o tom já trouxe associações não muito bem-recebidas pelo artista. ;Tem gente que pergunta se eu gosto do Roriz. Não tem nada a ver. Aqui em Brasília, os políticos roubaram até as cores para eles;, brincou.

Amarildo percorre os sinais de trânsito que ficam mais tempo no vermelho, na Asa Sul. ;Nos da W3 Sul, por exemplo, não dá para passar muito tempo, ficam mais no verde que no vermelho;, explica. Tudo isso porque, depois da performance de estátua, que dura 40 segundos em cima de um banquinho, ele passa devagar entre os carros para receber o pagamento por sua arte. ;Eu não peço nada, só passo com o chapéu e quem quiser coloca o dinheiro.; Ele troca de ponto com frequência, para explorar novos olhares e atrair um público diferente. Muitos param para fotografá-lo e dezenas de pessoas, diariamente, depositam um moeda ou cédula no chapéu como forma de incentivar a arte. O trabalho é influenciado pela natureza: se chove, não há expediente. O suor provocado pelo calor do sol, porém, não faz a maquiagem derreter.

Ator e mendigo
A profissão de Amarildo é artista de rua, mas muitos o confundem com um mendigo. ;Muita gente me admira, para, faz até foto e elogia. Uma vez uma senhora me deu R$ 50. Mas tem um povo que não entende. Um dia, uma mulher começou a me chutar, disse que era evangélica e que isso era coisa do demônio. Outros me mandam procurar emprego. Mas faz parte, é gente sem cultura;, explicou.

No início, o rapaz sentia-se ofendido e até humilhado. Mas acostumou-se e hoje exerce o ofício sem qualquer constrangimento. ;Comecei por falta de opção mesmo. Montei um negócio ambulante no meio da rua em Ceilândia de fotomontagem ; fazia imagem de pessoas comuns ao lado de famosos, manipuladas no computador. Mas sempre tinha que fugir da fiscalização, porque não era autorizado. Agora, estou nesse outro ramo, que não precisa de muito investimento e não paga imposto. A necessidade faz perder a vergonha.;

A melhor época para o negócio de Amarildo é o Natal. ;O espírito natalino toma conta das pessoas, elas ficam bondosas e eu ganho até R$ 40 por dia;, contou. Mas, quando passa a comemoração do nascimento de Jesus, o público volta ao normal. ;O ganho varia muito. Tem dia que tiro R$ 10, em outros são R$ 20;, afirmou. Boa parte das pessoas, porém, dá a ele apenas atenção.

Governador
Amarildo persegue uma melhoria de vida. Veio morar em Brasília há quase 20 anos. Nascido em Araguaína, em Tocantins, ele queria oportunidades melhores para crescer profissionalmente e engordar a conta bancária. Ao chegar ao solo candango, trabalhou como nunca. ;Fui cobrador de ônibus, vendedor de picolé e muito mais. Só não engraxei sapato. Meu currículo parece o do Wilson Lima (deputado distrital que, com a prisão de José Roberto Arruda, assumiu a vaga de governador interino do DF). Agora só falta eu ser governador;, disse, com seu bom humor usual.

O trabalhador esperava mais da vida. Decidiu então embarcar para Barcelona, na Espanha, como imigrante ilegal, em 2005. ;Lá eu não podia trabalhar de muita coisa. Tinha um amigo que era artista de rua e eu pintava ele, mas eu não tinha coragem de trabalhar assim. Um dia resolvi tentar e deu certo. Mas as coisas ficaram difíceis por lá, depois de quatro anos. Quando voltei ao Brasil, no ano passado, não vi outra opção se não trabalhar com isso em Brasília.; A princípio, ele se instalou na Rodoviária de Brasília e assumiu a identidade do Homem Triste. Ficava com um coração partido nas mãos e todo pintado de prata. ;Mas as pessoas começaram a me falar que eu parecia com o Raul Seixas, aí troquei de personagem;, lembrou.

Herói
Outro fator que motivou o retorno de Amarildo ao Brasil foi a saudade do filho Rock Douglas de Brasília, hoje com 10 anos. O amor pela cidade é tanto que o artista resolveu dar o nome da capital também a seu outro rebento: Bruce de Brasília, de 1 ano. ;Essa é uma cidade feita para quem sonha, porque quem a construiu sonhava. Os que vêm para cá têm o mesmo espírito. É também um lugar cheio de cultura. O Plano Piloto me lembra a Europa;, comparou.

Ser estátua viva tem vantagens e desvantagens. Amarildo vive com a mulher, mãe de seu filho mais novo. ;Ela não gosta do que eu faço, tem vergonha. Mas meus meninos adoram. Me tratam como um super-herói, com identidade secreta e tudo mais. Mas eles só me viram assim por foto.; O artista não pensa em ser azul para sempre. ;Daqui uns dias eu troco de cor, para não cair na mesmice e perder o interesse das pessoas;, avisou.

Com o dinheiro adquirido, além de sustentar a família, Amarildo pensa em comprar instrumentos musicais para a banda que formou recentemente, a Rapina. O brasiliense por opção também é compositor ; gosta de rock de protesto com muitos palavrões ;, cantor e baixista. Aprendeu tudo sozinho. Já até produziu um CD com 10 faixas ;mal gravadas;, como ele mesmo assume. ;Mas estamos procurando um vocalista melhor;, confessou. Esse é Amarildo, artista e camaleão.

Conheça e ouça
Quem quiser conferir as músicas de Amarildo com a banda Rapina pode acessar: www.palcomp3.com/rapina.

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