Cidades

A história do homem que lutou para que houvesse escola no fim de mundo onde vivia com a família

postado em 02/05/2010 08:23
O dono desta história nunca lerá uma linha do que será escrito sobre ele nesta página. Não entenderá esse tanto de ponto e vírgula. Não juntará nenhuma palavra. E não o fará em decorrência de nenhum problema visual. A visão dele é perfeita. Perfeitíssima até, para os anos que carrega. Este homem não lerá porque a ele nunca as letras foram apresentadas. Muito provavelmente, um dos nove filhos, ou um dos 23 netos ou até mesmo um dos seis bisnetos se encarregarão de fazê-lo. E ele escutará o que tanto se falou dele.

Este homem, a despeito do total desconhecimento das letras, salvou a vida da própria família. E a de todo o povo daquela comunidade a 70km de Brasília ; tão perto e ao mesmo tempo tão distante da capital. Sem assinar o próprio nome, ele levou o saber a uma gente que, de tão humilde, era invisível. E ali, no meio daquele nada, uma escolinha chegou.

A professora, que veio de muito longe, chegava montada num burro. E os alunos andavam léguas. E o homem que nunca aprendeu a ler achava que tinha realizado o maior dos feitos. Hoje, ele não apenas acha. A certeza está marejada nos olhos humildes.

E assim esta história ; que lembra um roteiro de um filme bom ; começará a ser contada. O dono dela é um ser de uma sabedoria única. Depois de conhecê-lo, a compreensão de vida, de determinação e de sonho se ampliam. Esta é a história de Santil Alves Ribeiro. A única, a melhor que juntou. E, mesmo que nunca tenha rascunhado uma só linha foi a mais fantástica que escreveu.

Filho de pai e mãe mineiros, Santil nasceu pelejando. Da região de Unaí, os pais, agricultores pobres, migraram para terras goianas. A falta de trabalho e a fome os enxotava de tempos em tempos. Pararam num lugar chamado Saco Grande, um povoado da então pequena Formosa. Raiava o ano de 1923. Ali, o menino comprido berrou pela primeira vez ao sair da barriga da mãe miudinha. Era o mais velho. Depois dele, vieram mais quatro. E a vida seguia. De concreto, só a fé que a mãe católica carregava.

Aos 15 anos, o pai do menino comprido morreu. A fome mais uma vez assustou a família. O adolescente virou homem grande da noite para o dia. Assumiu o sustento da mãe e dos irmãos. Trabalhou de sol a sol em todas as terras alheias daquela região. Cuidava da terra e criava porcos. ;Minha vida virou trabalho. Fui ficando moço velho;, conta.

Um fazendeiro das terras onde ele trabalhava montou uma escola na região. Santil deu a vez aos irmãos. ;Eu não podia estudar. Virei o pai da casa. Precisava trabalhar pra sustentar todos eles.; Os irmãos de Santil aprenderam um bocadinho do alfabeto. Casaram-se. Ele, além de solteiro, nunca conheceu as letras que formavam seu nome. ;Minha mãe um dia me disse que eu tinha que me casar. Se não, ia ficar velho e sozinho.;

Nova vida
Aos 31 anos, com as mãos calejadas da enxada, Santil se casou. Era seis de agosto de 1957. ;Já era homem velho;, diz. Carmelita Guimarães, sua Lita, também não sabia as letras. Era filha de agricultores muito pobres. ;Pedi emprestado pro meu patrão 600 mil réis pra comprar as coisinhas dela.; E ali, ele se casou. Não teve vestido de noiva nem festa. ;Depois, trabalhei dobrado pra juntar um conto de réis e pagar a dívida.;

Do Saco Grande, procurando melhores condições de vida, Santil e Lita se mudaram para Lavrinhas, ainda em terras goianas. Ali, nasceu parte dos nove filhos. Tempos depois, chegaram ao DF, na região do Capão Seco ; que hoje, nessas divisões geográficas confusas, pertence ao Paranoá. E a família estava completa: Maria, Antônio, Santino, Pedro, Flávia, Dulita, Marcos, José e Ivonice.

E foi ali no Capão Seco do anos 1960, em plena ditadura militar, que o homem que nunca copiou as letras começou a escrever sua melhor história. As crianças; dele e dos outros agricultores ; cresciam. E não havia nenhuma escola por perto. O Exército ocupou a região. Fez sua base estratégica. Militares de outros cantos deste país continental chegaram. Vinham acompanhados de suas mulheres. A melhor casa, pelo menos a de alvenaria, era dos homens de verde. E só havia ela. O resto era barraco de tábua.

Um dia, o comandante da missão que ocupava a região quis conhecer aquela gente. Mandou que Santil fosse àquela casa pintada de branco, no meio do cerradão. E lá se foi o homem, montado no seu burro. Depois de pouca conversa, o homem que não sabe ler lhe fez um pedido: ;Seu comandante, aqui tem muita criança. Nenhuma sabe ler. Não dá pra montar uma escola por aqui?;. Surpreso, o homem de farda o encarou. Prometeu-lhe pensar no assunto.

Renascimento
Mas, dias depois, o comandante adoeceu e foi embora. Um outro, dessa vez um sargento, chegou pra ficar no lugar dele. ;Moço, ele era brabo demais. Mas eu tive coragem e pedi a escola de novo. Disse assim pra ele: ;Sargento, eu gosto de homem que fala na hora, gente que fala atrás da moita não me serve;. O homem tomou fé em mim naquele momento.;

Duas semanas depois, a escola, num quartinho da casa branca de alvenaria, foi inaugurada. O homem que nunca leu saiu de casa em casa, montado no seu burro, comunicando as boas-novas. E o povo se encheu de alegria. Os filhos daquela gente nunca mais ficariam sem estudar. A professora? ;Era a mulher do sargento, veio lá do Rio de Janeiro;, ele conta.

Primeiro, foram os três filhos maiores de Santil. ;A Lita brigou demais, sô. Me dizia: ;Como é que esses meninos vão estudar, se nem roupa têm;. Eu respondia: ;Faz mal, não. Veste a bermuda de algodão neles e pronto. A chinela eles dividem. O que for estudar de manhã empresta pro que for à tarde.; E assim se fez. E assim a vida seguiu.

Um dia, a escola ficou pequena demais para tanto menino. O Exército mudou para outro lugar, no Capão Seco, a 3km dali. Mais uma vez Santil juntou o povo e, juntos, construíram uma de tábua. E foi o homem que nunca soletrou o próprio nome que ensinou a professora carioca a montar no burro pra chegar ao Capão Seco. ;Nossa senhora, a mulher pelejou demais pra montar, mas conseguiu...;

Tempos depois, a professora foi embora. O marido foi transferido. E lá se foi o sargento. Em 1969, a Fundação Educacional assumiu a escola da zona rural. Virou Escola Classe Capão Seco ; onde estudam os netos do homem que começou toda essa história. Quase meio século depois, Santil conta o começo de tudo com simplicidade comovente: ;Uai, moço, o que não começa não pode ter fim. Eu acreditei, lutei pra que meus filhos não ficassem como eu, colocando o dedão em tudo que é papel.;

Rezador de ladainha
Na tarde da última quinta-feira, a convite do Correio, Santil, aos 87 anos, de calça jeans, camisa manga comprida, bota e chapéu de couro, voltou à escola que nasceu do seu sonho ; mesmo que isso não conste de nenhuma biografia oficial. Naquele lugar simples, mas conduzido com amor pelas professoras e pela direção, as crianças o receberam como herói. aplaudiram-no. E ele se sentou, pela primeira vez, numa sala de aula. Nesse momento, a voz do homem humilde que anda como lorde engasgou. E os olhos umedeceram. ;Uai, não mereço isso tudo, não.;

Longe da escola, na sua terrinha de 11 hectares, ele fala do futuro. ;Ah, sô, os anos já são muitos. Dizem que quem muito andou tá perto de chegar. Enquanto não chego, acordo com o cantar do galo. Aí, trato dos meus porquinhos no chiqueiro, tiro leite da vaca toda manhã, vejo meus boizinhos, como minha galinha criada no galinheiro (detalhe: toda a comida da casa é feita com banha do porco) e fumo meu fuminho enrolado na palha do milho.;

Viúvo e saudoso de sua Lita há uma década, ela também, à moda dela, ajudou o marido a sonhar com as letras. ;Não era justo deixar esse povo analfabeto;, ele justifica. Planos? ;Agora em julho, vou dar pouso pro povo da Festa do Divino Espírito Santo;, responde o convicto devoto e rezador de ladainha. Emocionado, Marcos Guimarães Ribeiro, policial militar de 38 anos, um dos filhos do velho Santil, resume o pai: ;Ele é o nosso exemplo de pureza, honestidade e humildade. Nosso herói;.

Esse homem, simplesinho desse tanto, fez uma revolução num lugar improvável de que alguma coisa acontecesse. Trouxe a luz, quando ali só existia escuridão. E essa luz entrou pela retina, iluminou mentes, transformou almas e fez uma gente acreditar em sonhos. ;Eu nunca pude ficar um minuto sentadinho num banco de escola;, diz, como lamento. Não foi preciso, Santil. A vida o tornou nobre e sábio. De uma sabedoria tão comovente que, talvez, nenhum banco de escola fosse capaz de lhe ensinar.

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