Jornal Correio Braziliense

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O melhor quadro de Lucio: ele mesmo

Concorrendo com mais de 50 artistas da cidade, adolescente com síndrome de Down vence todas as etapas do edital público do Superior Tribunal de Justiça e abre hoje, no Espaço Cultural da Casa, sua terceira exposição individual. São 25 obras, cheias de cor, magia e talento

Quando ele nasceu, os médicos logo disseram àquela mãe: ;Seu filho tem um problema. E tudo será muito lento na vida dele. Será uma criança que vai demorar a andar, a falar e aprenderá todas as coisas, se aprender, com muita dificuldade;. Foi assim, sem metáforas, sem rodeios. A mãe chorou como choram mães em desespero. Sofreu como sofrem mães que recebem uma notícia triste do filho que acabou de nascer. O mundo desabou. Era o terceiro filho, o caçula, o que completaria a família. ;Mas só chorei por dois dias;, ela diz. A mulher enxugou o pranto, guardou a dor, rasgou o prognóstico cruel e decidiu: ;Se houver alguma coisa para ser feita, eu farei para salvá-lo;.

Hoje, daqui a pouquinho, esse menino que nunca aprenderia as coisas abre a terceira exposição individual de pintura de sua meteórica carreira de dois anos. Lucio Piantino é um artista. Um pintor genuíno. Deslumbrantemente talentoso. Lucio tem síndrome de Down, mas isso é um mero detalhe, apenas mais uma informação sobre esse menino que pinta quadros cheios de cor como pinta a vida. Lucio sempre emociona.

E quem mais tarde for ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) verá 25 obras ; 12 absolutamente inéditas e de vários tamanhos ; do adolescente que encontrou na arte sua melhor forma de expressão. Perto de completar 15 anos, ele pinta como adulto. O primeiro quadro, rascunhou ainda aos 5. Aos 13, a primeira exposição. Agora, a certeza: a pintura que surge de suas mãos inquietas é sua melhor catarse.

Aos 51 anos, a mãe de Lucio, a artista plástica e escritora Lurdinha Danezy Piantino, só chora. ;Mas de completa felicidade. É a luta diária para lutar contra o prognóstico ruim que me deram. Aceitei o diagnóstico da síndrome numa boa, mas nunca a sentença que me impuseram ao meu filho.; O pai dele, o também artista plástico Lourenço do Bem, 54, torce pelo sucesso do filho.

Hoje, Lucio fará uma grande surpresa para os convidados. Receberá todos que forem à abertura da sua exposição dançando hip-hop. Isso mesmo. Além de pintor, ele também dança. ;Adoro o Chris Brown (cantor norte-americano de hip-hop). Ele é demais;, ele diz.

E quem lá estiver vai se deparar com um mundo de cores. Adepto da técnica mista ; acrílico e vinílica ; , Lucio passeia pelo abstrato e tem flertado bastante com o expressionismo. A pintura dele é espontânea, forte, viva. Muito viva. O mais legal disso é poder ;viajar; em cada tela. Cada um interpreta como quiser.

Cioso da sua obra, ele mesmo deu nome a todos os quadros: Montanha russa, Ovo, Mais louco, Escorregador, X maluco, Arco e flecha, Sol, Tigre, Jogo da velha, O bicho vai pegar, Rap, Manobra de skate, dragão, Joana (em homenagem à irmã de 17 anos), Michael Jackson, Chris Brown... E, claro, há uma obra que ele batizou de Hip-hop. ;Penso sempre na música negra, no movimento dela;, explica.

Talento premiado
Na exposição O menino que virou arte, no Espaço Cultural do STJ, Lucio deixará sua marca até o dia 26 deste mês. Para chegar ali, o pintor concorreu com outros 50 artistas da cidade. Submeteu-se às regras do edital público. Foi selecionado entre os 10 melhores que farão parte do calendário de exposição da Casa deste ano.

A comissão multidisciplinar, composta por artistas, sociólogos e psicólogos, levou em conta a obra de todos os concorrentes como um todo. ;Em nenhum momento, o fato de ele ter síndrome de Down contou a favor. Não houve nenhuma condescendência por isso. Diferenças são diferenças e elas estão presentes em cada um de nós;, explica Jaime Cipriani, de 47 anos, coordenador de Memória e Cultura do STJ. ;O que se levou em conta foi o talento dele, a forma como sente o mundo e a espontaneidade com que expressa isso na obra.;

Jaime, sensivelmente, enxergou a alma de Lucio pela pintura nos seus quadros. E quem for lá amanhã e nos próximos dias terá a mesma sensação. A pintura dele explode na retina, arrepia, faz sair daquele lugar onde homens usam toga e decidem destinos.

Sua arte é criança, adulta, mulher, homem. É plural. É diferente, como somos todos nós. É ele, do jeitinho dele, uma arte ora debochada, moleca, irreverente e verdadeira, tanto quanto o artista. É singular. Extasiada, Lurdinha, a mãe de profundos e ternos olhos verdes, admite: ;Pinto há 25 anos. Mas nunca pintei tão bem como o Lucio. Não sei trabalhar com cor. Ele é um artista completo. Vê-lo pintar me enche de prazer;.

Romper fronteiras

Mãe pode ser passional. Quase sempre o é. Mas o reconhecimento do talento de Lucio vai além de casa. Ecoa além da boca de Lurdinha. Omar Franco, 53 anos, pintor mineiro radicado em Brasília, reconhecido nacionalmente, certa vez escreveu sobre o artista, ao conhecê-lo: ;Ao ser apresentado à arte de Lucio, senti saudade de quando eu ainda era menino do interior de Minas Gerais. Achava que o mundo não ia muito além das montanhas que cercavam a cidade onde vivia. Mas, como o meu universo era vasto, infinito, não havia tinta nem papel que desse conta de tanta produção;.

E continua: ;Lucio não economiza telas, tintas e espaço. Ele se apropria de grandes áreas com gestos largos... Seu mundo é abstrato, dinâmico, vibrante. O pintor e pintura se misturam... Suas telas expressionistas nos devolvem a espontaneidade e a coragem que perdemos, quando nos tornamos adultos secos e quebradiços;. E encerra: ;Lucio tem uma infinidade ancestral com a linguagem visual, que dá ele uma dimensão maior da vida... A arte foi feita para que possamos ousar e romper fronteiras. Lucio sabe disso;.

Cursando a 6; série numa escola pública e de ensino regular da Asa Norte, o artista convidou todos os colegas para a exposição. Especialmente uma amiga, por quem se tomou de paixão. Ao vê-la, o coração dispara. ;Ela me disse que vem;, ele diz, rindo. ;Ele está numa ansiedade danada com mais essa exposição. Nem tem dormido direito;, entrega a mãe. Coisas de artista antes de toda estreia.

Lurdinha, que é separada do pai de Lucio e assumiu e assume todas as brigas quando percebe que o filho pode ser discriminado, emociona-se mais uma vez: ;Eu nunca desisti dele. Mudei-o de escola todas as vezes em que ele não foi aceito, fiz denúncia no Ministério Público, lutei pra que ele fosse feliz. E ele virou artista. Tive fé na vida. Acho que posso morrer agora. Sei que ele será capaz de continuar...;

Lucio olha seus quadros na exposição. Explica cada tela. Abraça o repórter, chama-o pelo nome. Brinca, conta histórias. E admite: ;É, eu acho que sou artista;. O menino ri com verdade. De longe, Lurdinha admira o filho. Encantamento de mãe, de artista que entende artista. Os dois são cúmplices no olhar. Comunicam-se, às vezes, sem palavras. Numa das paredes do Espaço Cultural, o visitante lerá uma mensagem que Lurdinha escreveu, há dois anos.

Ela conta o começo de tudo, desde o terrível prognóstico. E a superação: ;O menino cresceu cercado de amor, carinho e estimulação, muita estimulação. Para surpresa de todos, andou, falou e aprendeu. Aprendeu muito. Aos 4 anos, já sabia ler 35 palavras. Fez teatro, capoeira, hip-hop, violão, artesanato. foi garoto propaganda. E pintou, pintou muito. Virou artista;. O melhor quadro de Lucio, sempre, em qualquer exposição, será ele mesmo.


NÃO PERCA
Exposição O menino que virou arte, de Lucio Piantino. Abertura hoje, às 18h30, no Espaço Cultural do STJ ; SAFS Quadra 6, Lote 1, Trecho 3 / Prédio dos Plenários, segundo andar/mezanino. Visitas até dia 26. De segunda a sexta-feira, das 9h às 19h. Contato: Lurdinha ; 9297-5885.

"O menino cresceu cercado de amor, carinho e estimulação (...)
E pintou, pintou muito. Virou artista"
Lurdinha Danezy Piantino, mãe de Lucio