Helena Mader
postado em 06/05/2010 07:46
Na maior unidade da rede pública de saúde de Brasília, os médicos trabalham sem o mais básico dos materiais hospitalares. Há uma semana, o esparadrapo sumiu das prateleiras do Hospital de Base (HBDF). Mas a lista dos produtos em falta é bem mais extensa. Os estoques de sondas, agulhas, cateter, coletor de urina, bisturi, luvas e até fio de sutura acabaram e não há previsão de entrega dos insumos. Sem as mínimas condições de trabalho, muitos médicos preferem cancelar as operações agendadas e até mesmo as de emergência. Na semana passada, a direção do HBDF afixou uma lista dos produtos em falta na porta do centro cirúrgico. ;Caso os profissionais optem em realizar as cirurgias mesmo na ausência desses materiais, que fique claro que não temos previsão de reposição;, alerta a circular.Diante desse quadro de desabastecimento, muitos médicos, principalmente os residentes, preferem comprar material com recursos do próprio bolso a suspender a cirurgia de um paciente em estado grave. Mas a revolta com o caos no Hospital de Base é grande. Um médico que atua no centro cirúrgico conta que a falta de materiais hospitalares causou a suspensão de várias operações nas últimas semanas. ;Falta tudo, não temos nenhuma condição de atender bem o paciente. Se não tem nem esparadrapo para trabalharmos, é porque realmente chegamos ao fundo do poço;, lamenta. Ele afirma que os profissionais da cirurgia estão atuando ;na base do improviso;. ;Isso prejudica também o programa de residência;, acrescenta o médico.
A dona de casa Adaíra Maria de Oliveira, 69 anos, é uma das vítimas do desabastecimento da rede pública de saúde. Internada no Hospital de Base desde segunda-feira, ela desistiu de esperar pelo atendimento ontem à noite. Por conta de uma queda, Adaíra precisa de uma cirurgia no fêmur, mas os médicos suspenderam o procedimento por falta de profissionais e de material hospitalar. ;Um médico chegou a contar para a gente que teve que fazer uma cirurgia usando uma agulha para cortar, já que não tinha bisturi. Não quero isso para a minha avó;, explicou a autônoma Rosângela Alves. Com a situação do HBDF, a dona de casa deve ser operada hoje em um hospital público em Unaí (MG).
Medidas
O secretário de Saúde, Joaquim Barros Neto, diz que a descentralização das verbas para a saúde, anunciada na última sexta-feira (leia Para saber mais), deve ajudar a solucionar o problema, mas ele destaca que acabar com o desabastecimento é uma questão complexa. ;Mais de 80% dos pregões que realizamos recentemente fracassaram. O Tribunal de Contas (TCDF) exigia que as compras fossem feitas com o preço mínimo, mas com isso as empresas desistiam de participar do processo;, explica. ;É um motivo totalmente alheio à nossa vontade. Fazemos todo o pregão de acordo com a lei, mas a compra fracassa na maioria das vezes;, lamenta.
Para resolver esse impasse, o secretário procurou o TCDF e conseguiu autorização para comprar medicamentos e insumos com base no preço médio da região Centro-Oeste. ;Com isso, as coisas vão avançar a partir de agora. Nossa ideia é fazer uma compra grande para abastecer a rede por um bom tempo;, explica. ;Ficamos entre a necessidade de agir com rapidez e a obrigação de fazer tudo de acordo com a lei. Se eu fizesse uma compra emergencial milionária, responderia por isso na Justiça;, acrescenta.
Improviso
Na área de hemodiálise do hospital, o enfermeiro Ivan Rodrigues tem boa parte do atendimento prejudicado devido à falta de sondas. ;Estou improvisando a sucção com uma seringa. É uma atitude arriscada, mas temos que fazer isso senão o paciente morre. Na maioria dos casos, o que eu faço é pedir para a própria família comprar e trazer;, revela.
O presidente do Sindicato dos Médicos do DF, Gutemberg Fialho, conta que é comum a direção dos hospitais colar na porta do centro cirúrgico a lista dos materiais que estão em falta. ;É uma situação surrealista. Ou o médico opera sem condições e, nesse caso, corre risco de ter problemas; ou ele se recusa a fazer a cirurgia e também fica sujeito a responder por isso. Quando a cirurgia não é de emergência e faltam materiais indispensáveis, a maioria cancela o procedimento;, conta. Todos os dias, cerca de 800 pacientes passam pelo HBDF. Em 2009, foram realizadas 11.552 cirurgias na unidade.
O promotor de Defesa dos Usuários do Sistema Único de Saúde, Jairo Bisol, cobra providências. ;O que nós podemos ver é uma situação insuportável de sucateamento das unidades públicas de saúde;, diz. Ele afirmou que existem inúmeras ações correndo na Justiça que dizem respeito à situação da saúde pública do DF. ;O tempo judicial infelizmente não resolve os problemas da população;, finaliza. O secretário Joaquim Barros Neto diz que o atendimento deve melhorar também com a contratação de mais médicos. ;Vamos contratar, principalmente, pediatras e anestesistas, que representam o maior deficit de pessoal hoje;, ressalta.
Para saber mais
Autonomia só no papel
Na semana passada, o governador Rogério Rosso (PMDB) instituiu o Programa de Descentralização Progressiva de Ações da Saúde (PDPAS), na tentativa de agilizar a solução dos problemas emergenciais do setor. Por meio da medida, os recursos destinados às regionais de saúde deverão ser utilizados na aquisição de materiais de consumo e medicamentos, bem como para realizar reparos nas instalações físicas de centros de saúde e hospitais. Também será possível contratar serviços com pessoas jurídicas e físicas, assim como pagar outras despesas disciplinadas pela própria secretaria. A medida, no entanto, não saiu do papel. As quantias que serão destinadas a cada hospital serão fixadas em regulamento a ser elaborado pela Secretaria de Saúde nos próximos 30 dias. O valor de cada cota não será inferior a R$ 30 mil no primeiro ano do programa.
Tragédia em meio ao caos
A dificuldade de atendimento e a falta de materiais básicos no Hospital de Base podem ter afetado o quadro de saúde do atleta Alexsandro Santos Brito, 31 anos. Com um quadro de hemorragia e traumatismo craniano, ele esperou por uma vaga na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) da unidade hospitalar das 21h de domingo até as 15h de segunda-feira, quando a família conseguiu na Justiça o direito à internação em um hospital da rede particular. Lá, após uma cirurgia, o competidor de mountain bike morreu na madrugada de ontem.
Durante o tempo que esperou por atendimento no HBDF, Alexsandro sofreu com a falta de recursos. Segundo conta o cunhado da vítima, Marcus Polo Rocha Duarte, não havia esparadrapo para prender a agulha de soro no braço do paciente. ;Tiveram que tirar um pedaço de esparadrapo da parede para pregar nele;, indigna-se Marcus. Também faltava coletor de urina para o atendimento de Alexsandro. ;A enfermeira do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) conseguiu um na ambulância, mas depois não tinha mais. Pegaram uma vasilha de detergente recortada para coletar a urina do meu cunhado, um completo absurdo;, indigna-se Marcus Polo.
Acidente
Ele lembra que os médicos tentaram atender a vítima, mas acabaram ficando sem saber o que fazer. ;O que a gente viu lá é que falta tudo, os profissionais bem que tentam fazer o melhor que ele podem, mas não têm recursos;, diz o familiar, indignado. Mesmo com a autorização judicial, Alexsandro ainda teve que esperar por uma ambulância por cerca de 4 horas até conseguir ser transferido para a rede particular. ;Fora que o Hospital de Base perdeu todos os exames que tinham feito da cabeça dele, tivemos que repetir tudo;, lembra Polo. Alexsandro se acidentou no último domingo durante uma prova de mountain bike em Brazlândia. Ele sofreu uma forte pancada na parte lateral do rosto enquanto participava de uma competição em uma área rural. (NO)