A linda Haydêe Veríssimo Arnt quer viver o suficiente para, pelo menos, ver Marina dar os primeiros passos. Marina, que hoje completa 14 dias, não sabe ainda de nada. Nem mesmo que já chegou. Prefere mamar, mamar, mamar e dormir... Noelle, a mãe de Marina, não tem dúvida: ;Tô vivendo o maior e melhor momento da minha vida. Nunca pensei que fosse tão especial assim;. Cynthia, mãe de Noelle e avó de Marina, se emociona: ;A chegada dela (de Marina) nos aproximou;. Eneida, mãe de Cynthia, avó de Noelle e bisavó de Marina, entende o que a filha, que virou avó, está sentindo. ;É a história continuando...;
E Haydêe, o sorriso mais bonito e encantador de todas elas, mãe de Eneida, avó de Cynthia, bisavó de Noelle e tataravó de Marina, quer apenas ver a pequenininha de olhos claros, que cabe na palma da mão, começar a correr pela casa. Esta é a história de uma família. Cinco gerações ; quatro mulheres fortes, determinadas. Riram, choraram, caíram, sonharam, levantaram e refizeram suas vidas quantas vezes foram necessárias. E ainda querem fazer tudo isso muitas vezes. Na verdade, uma delas, a quinta, ainda é um projetinho de mulher, mas certamente carregará a força das outras. E viverá suas próprias histórias também.
Haydêe, aos 96 anos, segurou a vida com força de leoa. Eneida, 63, continuou a escrever a história da mãe. Cynthia, 41, ensinou para Noelle, 22, o que aprendeu com a mãe e com a avó. E Noelle, ainda chorando de encantamento e felicidade sem tamanho, dá o peito farto de leite para a miudinha Marina. ;Quando eu tô amamentando, coloco pra ela ouvir, no celular, a música do Roberto Carlos. Sem querer, enquanto ela mama, eu acabo chorando;, revela.
Contação de histórias
A música? ;Eu tenho tanto pra lhe falar, mas com palavras não sei dizer, como é grande o meu amor por você...; Se Marina ouve a música, ainda não se sabe exatamente. Mas ela suga aquele leite que espirra do peito da mãe com uma fome que dá gosto e força de vida.
Na tarde de quinta-feira, essas quatro mulheres e o projetinho de gente, nos braços da mãe quase menina, receberam o Correio para uma animada conversa na varanda da casa espaçosa e quintal florido de Eneida, bisavó de Marina, na QI 13 do Lago Norte. Haydêe, de longe, escancarou o melhor sorriso da tarde. Mesmo que não tivesse dito uma só palavra, já teria valido a pena aquele encontro. Haydêe é pura luz. Encanta quem chega ao primeiro contato.
Gaúcha de Cruz Alta, prima paterna em primeiro grau do escritor Érico Veríssimo (morto em 1975, autor de vários romances, entre eles Clarissa, Olhai os lírios do campo e O tempo e o vento), Haydêe conta histórias de uma terra muito distante de Brasília, onde lia os livros do primo mais velho e sonhava com a chegada do príncipe encantado. Um dia, ele chegou.
;Uma tarde, eu tava no portão da minha casa e veio aquele rapaz querendo conversar comigo. Eu disse: ;Tu não podes ficar aqui, minha mãe não vai gostar;. Ele me respondeu, decidido: ;Chama tua mãe, então. Converso com ela e digo que quero conversar contigo;. Ele não teve medo da minha mãe, era valente;. Nesse dia, o destemido Emundo Neto Arnt, mais novo do que a pretendente três anos, roubou o coração da jovem Haydêe. Começaria ali a história de todas as outras mulheres desta matéria.
O começo
Edmundo pediu Haydêe em casamento. Ela tinha 22 anos. Ele, 19. Na terra do chimarrão, nasceram os cinco filhos: dois meninos, três meninas. Uma delas, Eneida, que seria mãe, avó e bisavó anos depois. Em 1963, a família mudou-se para Brasília. A convite do então presidente João Goulart, o agrônomo Edmundo veio para a nova capital. ;Ele plantou todos os eucaliptos da cidade;, encanta-se. Haydêe não se cansa de repetir o feito do homem que há 18 anos partiu.
Os ;guris; de Edmundo e Haydêe não quiserem vir para Brasília. Ficaram no Sul. Só as ;gurias;, que eram ainda muito meninas, deixaram os pampas. Eneida, a mais velha delas, contava 15 anos. Aqui, estudou, formou-se em ciências contábeis. Virou servidora pública. E se casou. Teve três filhas. Há três anos, divorciou-se. ;Ainda não me fechei para uma nova história de amor. A vida continua;, avisa a bisavó.
Cynthia, a primeira filha, seguiu a história da mãe. Estudou, formou-se em pedagogia, foi ensinar crianças a ler e a escrever e se casou. Pariu três filhas. Separou-se. Casou-se pela segunda vez. A filha mais velha, Noelle, terminou o ensino médio e virou auxiliar administrativa. Casou-se. E fez sua estreia na singular arte de ser mãe.
Haydêe, a responsável por tudo isso, sempre esteve presente. Fazia casaquinhos e sapatinhos de tricô a todas que nasciam. O da tataraneta Marina, todo vermelhinho, ela calçava na tarde da entrevista. Vaidosa, a mulher que hoje faz crochê com esmero e firmeza, lá no Sul dirigia trator e plantava trigo nas terras do pai. ;A mulher vaidosa fica mais caprichosa;, ensina ela, de terninho marfim, sapatinho com discreto salto dourado, anéis e unhas pintadas de roxo ; o mesmo esmalte que a bisneta Noelle usava.
Um luxo, delicadeza comovente aos 96 anos. ;A Eneida (filha) disse que tem dia que pareço uma árvore de Natal, mas não coloca isso aí, não, menino;, gargalha ela, com um sorriso absolutamente deslumbrante. ;O que posso fazer, se gosto de me sentir bem?; E se emociona ao segurar a tataravó: ;Estar viva pra ver isso é um dom que Deus me permitiu. Tenho que agradecer todo dia;.
Para sempre
Eneida, bisavó da ;guria; de 14 dias de vida, define a maternidade: ;É preocupação, madrugadas insones pelas doenças da infância. Depois, na adolescência, mais preocupação. Aí, vem o futuro. Os filhos crescem e tudo continua. É doação pelo resto da vida;. Cynthia, que experimenta as delícias de ser avó pela primeira vez, assusta-se: ;Agora, será tudo em dobro. A ficha ainda não caiu...;
Noelle, com aquele pingo de gente agarrada ao peito, emociona-se: ;Eu acordo às 4h da manhã e já tô feliz;. E planeja, para espanto de todos ali: ;Quero ter mais três;. Cynthia conta um segredo: ;Ela (Marina) nos juntou. Vai ser o meu melhor Dia das Mães;. Noelle, ao ouvir a mãe falar, chora e amamenta a filha.
Eneida olha com compaixão para a filha, para a neta e para a primeira bisneta que acabou de chegar. Haydêe, enquanto ajeita o brinco, ri de felicidade. Era tudo que queria ver. E, experiente, ensina a bisneta: ;Noelle, coloca a mão embaixo dela, porque senão ela vai ficar engolida no seu braço;. Prontamente, Noelle ajeita a filha. Haydêe sempre teve razão.
A conversa boa prossegue. Eneida diz que Haydêe sempre acompanhou o mundo. ;Minha mãe sempre foi avançada, mas nunca permissiva. Criei minhas filhas assim;. Cynthia conta que foi liberal com Noelle. ;Mas sempre confie muito nela;.
E Noelle, a jovem mãe de olhos verdes e tatuagem tribal no pulso direito, como será com a filha? ;Acho que vou ser conservadora. Fico olhando pra ela e já quero que não cresça nunca.; Haydêe fuxica, sempre sorrindo: ;Agora, eu virei filha das minhas filhas. Elas é que mandam em mim. É o ciclo da vida, né, meu filho?; Haydêe, de novo, sabe o que diz. Há um momento em que os papéis se invertem. Pais e mães viram filhos dos filhos. É o inexorável ciclo.
Churrasco e alegria
Quase como cochicho, a mulher de 96 anos segura com carinho o braço do repórter e diz: ;Você se parece muito com alguém que conheço;. E confidencia: ;Antes de ficar viúva, me separei do meu marido. Ele arrumou outra. Teve até dois filhos com ela. Eu amei tanto, que não merecia isso.; E lembra, como se voltasse ao Sul, o começo de tudo: ;A gente morava numa fazenda. Aí, se ele tinha que sair, mandava selar dois cavalos. Sempre queria ir comigo;.
Eneida mora no Lago Norte. Cynthia, na Asa Norte. Noelle, na Asa Sul. Haydêe, depois da viuvez, passa temporadas aqui, no Rio de Janeiro, onde mora uma filha, e, claro, em Porto Alegre, onde vivem os dois ;guris;. Quando todos se juntam, a festa é garantida.
Hoje, o churrasco na casa em que as mulheres valentes dominam só tem hora para começar. Vão comemorar a maternidade de todas. O dom da concepção. O milagre da vida. E a chegada triunfal de Marina, a menininha de cabelos negros e olhos que querem ficar azuis.
Haydêe olha encantada para tataraneta sugando o leite que jorra do peito da bisneta. E diz, como bom pressentimento: ;Ela ainda vai ter tanta vida pra viver...barbaridade! (com todo o sotaque gaúcho a que tem direito);. Depois, com humildade, pede a Deus, mirando o céu com olhos enternecidos: ;Queria vê-la pelo menos andando...; Deus permitirá, Haydêe. Com toda certeza.
Feliz Dia das Mães!