Cidades

Rotina de terror imobiliza vítimas de abuso sexual

Sequelas físicas e emocionais são carregadas por meninos e meninas ao longo da vida. Abusadores desfrutam, normalmente, da confiança da família

Adriana Bernardes
postado em 16/05/2010 08:21
A violência sexual contra crianças e adolescentes é, por definição, inaceitável. Mas os agressores conseguem torná-la ainda mais cruel. Segundo pesquisa do Centro de Referência para a Violência Sexual ; ligado à 1; Vara da Infância e Juventude do DF ;, em 56,5% dos casos eles aterrorizam as vítimas com ameaças físicas ou emocionais. Conseguem, dessa forma, perpetuar o ato criminoso incontáveis vezes. As sequelas são carregadas ao longo da vida. Os responsáveis por tantos danos desfrutam da inteira confiança e respeito das vítimas. No meio onde vive, o abusador é tido pelos adultos como uma pessoa acima de qualquer suspeita.

Laís Cerqueira: necessidade de fortalecer a rede de proteçãoO fantasma da violência sexual rondou duas gerações de uma mesma família do Distrito Federal. Ana*, 57 anos, e as filhas Flávia*, 36; e Bia*, 30, foram abusadas na infância e, até hoje, nenhuma delas consegue apagar as lembranças da memória. Ana foi vítima do padrasto aos 11 anos. As filhas dela, do avô. Ana reagiu imediatamente e contou para a mãe. ;Ela era perdidamente apaixonada por ele, mas o expulsou de casa na mesma hora;, relembra. Flávia e Bia, à época dos abusos com 12 e 8 anos, se calaram. ;Achava que o meu pai ia matar o pai dele quando soubesse. Se isso acontecesse, ele ficaria preso e eu não queria vê-lo na cadeia;, explica Flávia. Ao seu modo, a menina tentava proteger a irmã mais nova e a si mesma. Fez do quarto da mãe o esconderijo para fugir das reiteradas investidas do avô (leia depoimento). Bia hoje está casada e tem dois filhos. Prefere não falar do passado, mas pediu ajuda de um psicólogo para explicar aos filhos os carinhos que podem ou não receber.

A pesquisa do Centro de Referência para Violência Sexual da Vara da Infância e Juventude do Distrito Federal confirma o que estudos anteriores já revelaram. Os pais (24%) e os padrastos (18,5%) estão no topo da lista dos agressores. Apenas 11,1% dos algozes não têm qualquer vínculo com a criança ou o adolescente. A maior parte deles trabalha (44,4%). Também aparecem na lista de abusadores os namorados da vítima, os tios, os irmãos, o namorado da mãe, os primos e os avós (veja arte).

Sensibilidade
A promotora Laís Cerqueira Silva coordena o Núcleo de Enfrentamento à Violência e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes do Ministério Público do DF e defende mais sensibilidade por parte dos promotores e juízes que lidam com ações dessa natureza. ;Não se pode desacreditar nem diminuir a palavra da vítima. O processo, em si, já é uma violência. É preciso tomar as decisões avaliando o fato e todas as circunstâncias. Não se pode partir do pressuposto de que a fala de uma criança tem menos valor que a de um adulto.;

No ano passado, a promotora foi procurada por uma mulher, mãe de dois filhos que denunciaram o abuso que sofriam há 10 anos por parte do pai. Ele foi condenado somente em 2009 e passou a ameaçá-la de morte. O ex-marido recorreu e acabou absolvido. ;Os desembargadores entenderam que não se podia confiar nas palavras de uma criança de cinco anos em detrimento do que dizia um adulto. O homem foi inocentado;, diz.

Quando a denúncia de abuso sobrevive ao inquérito da delegacia e à atuação do Ministério Público, esbarra na morosidade do Poder Judiciário. Vice-presidente de Infância e Juventude da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), o juiz Francisco de Oliveira Neto defende que é preciso criar varas especializadas no atendimento às vítimas de violência e dar prioridade na tramitação dos processos.

Francisco Neto destaca que, até chegar à frente do juiz, é a terceira ou a quarta vez que a criança está sendo revitimizada. ;A atuação desse magistrado precisa ser completamente diferente daquela relacionada a outros crimes de violência;, explica. Segundo o representante da AMB, já há um consenso de que o Judiciário precisa se reestruturar nesse sentido. Ainda este ano, o Conselho Nacional de Justiça deve apresentar um plano de ações para que isso ocorra.

Além da denúncia e da adequada punição, a promotora Laís Cerqueira lembra que é necessário fortalecer a rede de proteção. Ela diz que uma conquista importante foi a implantação dos 33 conselhos tutelares no DF, ainda que por força de uma ação judicial. Ela alerta, no entanto, que o governo precisa estruturar esses órgãos, considerados essenciais para a garantia dos direitos básicos das crianças e dos adolescentes. A reportagem procurou a Secretaria de Justiça e Cidadania, à qual os conselhos estão subordinados. A assessoria de imprensa do órgão, porém, informou que nenhum dos responsáveis poderia comentar o caso porque estavam em reunião.


DENÚNCIA
Na próxima terça-feira é comemorado o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes. Segundo dados divulgados pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi), em 2009 foram denunciados 15.345 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes. O Disque 100, da Secretaria de Direitos Humanos (SEDH) da Presidência da República, registrou 9.638 casos de abuso sexual, 5.415 de exploração sexual, 229 de pornografia e 63 de tráfico de crianças. De janeiro a abril, já existem cerca de 4 mil registros de violência sexual contra meninos e meninas.

"É preciso tomar as decisões avaliando o fato e todas as circunstâncias. Não se pode partir do pressuposto de que a fala de uma criança tem menos valor que a de um adulto"
Laís Cerqueira Silva, coordenadora do Núcleo de Enfrentamento à Violência e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes do MP

* Nomes fictícios

Depoimentos

MÃE

;Aos 11 anos de idade, o marido da minha mãe tentou me beijar. Mordi a boca dele com toda a força que eu tinha. Lembro que o sangue escorreu. Assim que minha mãe chegou do trabalho, contei para ela. Ela não pensou duas vezes: expulsou de casa o homem por quem era muito apaixonada. Anos mais tarde, o fantasma do abuso sexual rondaria a minha vida de novo. Mas dessa vez, doeu muito mais. Tenho três filhos, duas meninas e um menino. As duas meninas foram vítimas de investidas do avô quando tinham 12 e 8 anos. Eu só soube anos mais tarde, quando a mais velha tinha 26 anos. Estávamos sentadas na porta de casa e ela disse que precisava contar uma coisa. Disse que o avô tocava em seu órgão genital e beijava a sua boca. Que isso também teria acontecido com a irmã, com duas vizinhas e com duas primas mais ou menos da mesma idade que elas. Ela contou tudo chorando. Senti vontade de matar aquele homem. Eu queria espancá-lo, vê-lo apodrecer na cadeia. Ela pediu muito para eu esquecer, que aquilo tinha ficado no passado. Nunca me senti tão culpada. Como eu não pude ver o horror que minhas filhas viveram bem debaixo do meu nariz? Porque elas não me contaram? Eu era muito mais nova que elas, e muito mais boba, morava na roça e contei no mesmo dia para a minha mãe. Porque elas não confiaram em mim? Nunca vou esquecer essa história. Minha raiva só amenizou um pouco no dia em que tranquei aquele velho dentro da casa dele, coloquei o dedo no nariz dele e falei tudo o que veio. Ele ficou mudo. Chorou e pediu perdão. Meu perdão ele nunca vai ter. Eu mesma não consigo me perdoar por não ter percebido.;
Ana*, 57 anos, dona de casa.

FILHA
;Meu pai trabalhava o dia todo. Os abusos aconteciam quando minha mãe saía para resolver qualquer problema na rua. Ficávamos eu e minha irmã. Não me lembro da primeira vez que aconteceu e nem quantas vezes. Mas ele dizia que era um carinho de avô. Beijava a minha boca e passava a mão nas minhas partes íntimas, por cima da roupa. Eu queria contar. Mas morria de medo do meu pai matar aquele homem e acabar na cadeia. Eu não ia me perdoar de ver meu pai na cadeia. Para evitar as investidas, quando o ouvia chegar corria para o quarto dos meus pais e escondia minha irmã mais nova no guarda-roupa. Eu entrava embaixo da cama. Ele entrava na casa chamando o nosso nome, ia a todos os cômodos. Às vezes, não dava tempo de correr e a gente passava por aquilo. Lembro que, em parte das vezes, eu escondia a minha irmã e ficava. Em outras, eu me escondia e ela ficava. Quando contei para minha mãe, ela sofreu tanto; Abri a ferida de novo dentro de mim. Pedi encarecidamente que ela não contasse para o meu pai. Ela contou. Fiquei em desespero. Lembro-me que, aos 26 anos, eu comecei a chorar e perguntar: ;Mãe, ele acredita em mim, não acredita? Por favor, diga que ele confia em mim;. Ela disse que ele acreditou, mas nunca conversei com ele sobre isso. Depois desse dia, nunca mais me senti obrigada a fazer sala para aquele homem. Também fui pouquíssimas vezes até a casa dele. Meu pai se afastou muito dele. Já se passaram 24 anos desde que fui abusada por aquele homem, mas nunca me esqueci da catinga do suor dele. E não esqueço da sensação horrível daquela boca nojenta na minha. Se posso tirar uma lição disso tudo é a seguinte: nesses casos, não dá para confiar em ninguém. O pai do meu pai sempre foi um homem acima de qualquer suspeita.;
Flávia*, 36 anos, administradora de empresas.

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