Jornal Correio Braziliense

Cidades

Registros e mapas dos anos 1700 já apontam os principais entroncamentos rodoviários do DF

Eles foram construídos sobre o traçado de estradas de terra abertas por viajantes e desbravadores do Planalto Central

Muito antes de Lucio Costa traçar as linhas de Brasília, elas já estavam marcadas no chão deste pedaço de Goiás no qual está compreendido o Distrito Federal. Não foi por arquitetos ou grandes especialistas em urbanismo, mas sim por anônimos, moradores da região, destemidos e incansáveis viajantes que por aqui transitaram mais de dois séculos atrás. Registros e mapas dos anos 1700 apontam que os principais entroncamentos rodoviários do DF já eram utilizados por essa gente esquecida pela história recente de desenvolvimento.

As vias sempre foram extensas, mas estavam longe de serem largas e cartesianas, como as atuais. Geralmente, tinham a largura de um carro de boi(1), pouco mais de dois metros. Os caminhos serviam para transportar escravos para o litoral do Brasil; já foram rota de fuga dos pedágios informais; trilha de escoamento do ouro das cidades goianas de Pirenópolis, Luziânia e Cidade de Goiás; e serviram para transferir o gado para fazendas mais prósperas. Sem a tecnologia do século 20, eles eram descobertos no olhar, baseado no relevo e no curso dos rios. De posse de recursos mais avançados, o candango que construiu Brasília só ratificou as trilhas dos antigos habitantes e edificou rodovias a partir do que estava marcado no chão.

É o que ficou comprovado nos mapas históricos de Wilson Vieira Júnior, historiador, e Lenora Barbo, arquiteta. Eles fazem mestrado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (UnB) sobre sítios históricos no Distrito Federal e seus caminhos. Foi assim com a Estrada Parque Indústria e Abastecimento (Epia), cujo nome oficial é DF-003; a Estrada Parque Contorno (EPCT), a DF-001; parte das BRs 020 (que liga o DF à Região Nordeste do país), 040 (rumo à Região Sudeste) e 060 (para Goiânia). Elas foram pavimentadas, quando da construção de Brasília,obedecendo ao traçado original. Em alguns casos, o trajeto é exatamente o mesmo: o asfalto ;atropelou; o antigo caminho de boi, estreito, de terra batida, cercado do cerrado nativo.

Em outros, serviu como referência. É o caso da Estrada Parque Paranoá (DF-005), que margeia ao leste o Lago Paranoá. Há séculos, a trilha era sobre a serra, onde estão hoje as cidades do Paranoá e de Itapoã. Já a rodovia distrital é ao pé do relevo. Milhares de trilhas cortavam a região do DF. Algumas podem ter sido feitas pelos índios em período pré-colonial (antes do ano de 1500). De acordo com Vieira Júnior, há mapas datados de 6 mil a 8 mil anos com estudos sobre grupos que andaram pelo sertão do Planalto Central. O fato de haver escrituras rupestres e objetos líticos próximos a formações rochosas em sítios arqueológicos em diversos pontos na divisa norte do Distrito Federal indica que os nativos circulavam por essas bandas.

Pedágio
Os colonos e as bandeiras, nos anos 1700, ajudaram a abrir mais caminhos, ao mesmo tempo que se aproveitaram dos trajetos feitos pelos índios nativos(2). Nos tempos do Império, os fazendeiros que se estabeleciam por aqui pediam ao rei a concessão de estradas que cortassem suas terras. Uma vez concedida, a estrada tinha que ser conservada e limpa pelo dono da propriedade. Em contrapartida, poderia ser cobrado pedágio aos viajantes. O pagamento poderia ser em mercadoria ou em dinheiro vivo, mas já era prática comum da época não emitir recibos, para não ter de pagar (mais) impostos ao Império.

Outras estradas foram abertas para fugir dos pedágios. Essas rotas eram chamadas de picadas. A DF-130, por exemplo, é uma delas. A rodovia que liga Planaltina (DF) a Luziânia estava nos mapas da Missão Cruls(3), em 1894. A comissão do belga Luiz Cruls também andou por onde hoje está a Epia, até acampar à beira de um córrego, situado nos limites do Parque Nacional de Brasília.

No livro A história da terra e do homem do Planalto Central, de autoria do historiador goiano Paulo Bertran(4), morto em 2005, consta mais caminhos históricos na região do Plano Piloto. ;Para o norte, havia uma estrada de Luziânia passando pela região do Plano Piloto, até Planaltina e em seguida para Belém (PA). Era um símile da rodovia federal Belém-Brasília;, registrou, confirmando que a BR-080, projetada pelo engenheiro Bernardo Sayão, usou antigos caminhos de terra batida como referência.

Não há, no entanto, confirmação histórica de que aquela tradicional foto do encontro do Eixo Monumental com o Eixão, ambos os caminhos de barro e cercados por vegetação rasteira, feita antes da construção da nova capital, fosse caminhos de outros séculos. ;Havia cursos na região do Plano Piloto, mas não podemos afirmar que esse cruzamento já existia há 100 ou 200 anos;, explica Vieira Júnior.

Ouro perdido
O que se buscava no sertão goiano de 200 anos atrás era ouro. As bandeiras faziam incursões no meio do nada para marcar território e encontrar uma rota alternativa do ouro no Brasil que não fosse Minas Gerais. Luziânia era uma das melhores fontes. Pirenópolis e Cidade de Goiás, também. Por isso, a maioria dos entroncamentos viários herdados dos antigos moradores tinha direção a essas localidades. A BR-040, que hoje passa por Valparaíso até chegar em Luziânia, era um caminho de tráfego intenso e já estava marcada.

Atualmente, a Epia é uma importante rodovia de apoio ao tráfego no Plano Piloto. Como é proibida a circulação de caminhões de carga no Eixão, eles atravessam a cidade pela rodovia. Recentemente expandida pelo governo local, a pista mantém o trajeto que consta nos mapas do século 18. Inclusive com a mesma função de ligar norte e sul. O que indica que, quando planejaram o posicionamento geográfico de Brasília ; voltada para o oeste ;, os homens de Juscelino Kubistchek já contavam com aquele antigo caminho de carro de boi. ;Não foi uma coincidência. Sabia-se exatamente o que estava sendo feito ao planejar a cidade margeada por aquele curso;, defende Vieira Júnior.

Uma das trilhas que bifurcava da Epia de três séculos atrás tinha direção ao oeste, até chegar próximo ao Rio Ponte Alta, situado entre Samambaia e Recanto das Emas, perto do Gama. Dali, dividia-se em duas: para o noroeste e para o sudoeste. A que seguia para o sul se encontrava com a margem do Ribeirão Engenho das Lajes e continuava seu curso. Este percurso hoje tem nome: BR-060, a rodovia federal que liga Brasília a Goiânia. O asfalto não foi colocado exatamente em cima da trilha, mas acompanha toda sua extensão, desde a divisa até o encontro com a Epia.

Real da Bahia
A mais famosa estrada antiga do DF é a Estrada Real da Bahia. Há registros de 1734 no livro Viagem pela Estrada Real dos Goyazes, publicado em 2006, de autoria de Vieira Júnior com Rafael Carvalho Cardoso e Deusdedith Alves Junior. Apesar de o rei nunca ter chegado perto desse caminho, ganhou o nome de real porque era uma concessão do Império. Tinha 2,8 mil quilômetros de extensão, desde o litoral da Bahia até a fronteira do Brasil com a Bolívia. No Distrito Federal, a estrada passa por Planaltina, Sobradinho e Brazlândia, até chegar a Formosa (GO). A trilha desse caminho no DF coincide com o divisor de águas das bacias do Rio Paraná com a do Rio Tocantins. ;Era mais fácil caminhar na cabeceira dos rios do que subir e descer com equipamentos e animais;, diz o historiador Wilson Vieira Júnior.

1 -
Intactas
Algumas trilhas permanecem intactas. É o caso
de uma que cortava a região onde se localiza o Parque Nacional de Brasília. Esse caminho seguia em direção ao oeste, vindo da Cidade de Goiás.
Foi interrompido pela Barragem de Santa Maria, espelho d;água de 6 km; construído em 1961.

2 - Xavantes
Há registros de xavantes em Goiás desde o século 18. Caiapós e Crixás, também. Em comum, eles tinham a característica de serem bravos guerreiros e andarilhos. Algumas tribos vieram fugidas do litoral, tomado pelos colonizadores portugueses. Começaram a ser aniquilados pelo sanguinolento Bartolomeu Bueno da Silva, conhecido como Anhanguera.

3 - Exploração
A Comissão Exploradora do Planalto Central do Brasil foi formada em 1891 e tinha por missão identificar um local para que fosse feita a transferência da capital. Foi liderada pelo astrônomo Luís Cruls e integrada por médicos, geólogos e botânicos, que fizeram um levantamento sobre topografia, clima, geologia, flora, fauna e os recursos materiais da região do Planalto Central. A área ficou conhecida como Quadrilátero Cruls e foi apresentada em 1894 ao Governo Republicano.

4 -Historiador
Nascido em Anápolis, o professor da UnB Paulo Bertran Wirth Chaibub era um dos maiores entusiastas da história de Goiás. Dedicou-se intensamente aos estudos da época do Brasil Colônia na região onde se instalou Brasília. Faleceu em 2 de outubro de 2005, vítima de problemas cardíacos. Seus trabalhos estão disponíveis gratuitamente na internet, no site: www.paulobertran.com.br.