A Universidade de Brasília (UnB) estuda uma maneira de regulamentar os tipos de trotes permitidos no local, depois do episódio da quinta-feira última, quando alunos de engenharia civil estimularam os calouros do curso a alimentarem uma rixa com estudantes de arquitetura. Entre as frases de ordem entoadas pelos iniciantes da engenharia estavam: ;Arquiteto bichinha, só brinca de casinha;, ;1, 2, 3, 4, 5, mil. Trote solidário vai pra p...;. A decana de Assuntos Comunitários da UnB, Raquel Nunes, vai propor a votação de uma norma na Câmara de Assuntos Comunitários que defina limites para o trote ainda este semestre.
A UnB mantém projetos para estimular ações solidárias na recepção aos novatos. ;Nosso foco são as ações solidárias. Mas é necessária uma resolução que regulamente esse tipo de acolhimento;, garantiu a decana. O reitor da UnB, José Geraldo de Sousa Junior, também se manifestou contrário ao ocorrido. ;Esse tipo de manifestação é residual. Temos notado cada vez mais a participação dos estudantes no trote com cidadania e solidariedade;, afirmou.
A UnB será palco de manifestações contra a homofobia e o trote violento na próxima semana. O DCE organiza o protesto. O assunto divide opiniões na UnB. André Luiz Henrique da Silva, 23 anos, aluno do mestrado em botânica, morador do Recanto das Emas, é contrário a essa prática. ;Uma menina do Departamento de Artes quebrou o dente. Os veteranos emparedaram todo mundo e jogaram balões com água nas costas deles. Foi tão forte que a menina bateu a boca na parede;, relatou. O Correio não encontrou nenhum representante do Centro Acadêmico de Artes Cênicas ou Plásticas da UnB para confirmar a denúncia.
Há, porém, aqueles que não se importam em ser recepcionados com as brincadeiras. ;Eu passei pelo trote e acho uma boa iniciação. Aqui, é tudo muito tranquilo, não tem violência. Ninguém se machuca. E, além disso, só participa quem quer;, afirmou o aluno do 6; semestre de engenharia elétrica Erick Yuiti Ohara, 19 anos, morador de Águas Claras.
Trauma
O pedagogo Olimpo Ordonez, professor da Universidade Católica de Brasília (UCB), onde o trote é proibido, ressalta os perigos desse tipo de prática. ;Nas instituições onde há o trote, ele a cada ano é mais violentos. Quem foi vítima quer se vingar. Isso cria rancor;, explicou. A psicóloga educacional Regina Pedrosa, da UnB, também reprova a atitude. ;O trote banaliza a violência e vai para além da universidade;, alertou (veja Palavra de especialista).
Se a brincadeira não é saudável, pode virar caso de polícia. A delegada-chefe da 2; Delegacia de Polícia (Asa Norte), Mônica Loureiro, responsável pela área da UnB, afirmou não ter recebido, até o fechamento desta edição, nenhuma queixa sobre o incidente ocorrido na quinta-feira. Mas explicou que quem se sentir ofendido com um trote pode procurar retratação. ;A pessoa pode registrar ocorrência por lesão corporal. Nos casos de ofensa verbal, isso pode caracterizar crime contra a honra. Se alguém ofende o conceito que a pessoa tem de si mesma corre o risco de responder por isso;, explicou a delegada.
Não somente a UnB como várias universidades do DF e do Brasil têm incentivado a prática do trote solidário. Taynara Cândida, 17 anos, aluna do 3; semestre de ciências sociais, ajuda a promover um café da manhã para receber quem acaba de chegar. ;A gente venda os olhos de todo mundo e leva para uma sala. Ao chegar, mostramos o café da manhã e damos uma festa depois. É legal ver a surpresa deles. Todo mundo já chega apreensivo pelo trote;, afirmou.
Nosso foco são as ações solidárias.
Mas é necessária uma resolução que regulamente esse tipo de acolhimento;
Raquel Nunes , decana de Assuntos Comunitários
Ritual vai mudar
Com toda a repercussão que as rimas consideradas homofóbicas provocaram, os alunos do curso de engenharia civil começam a discutir novas formas de inserir os calouros ao ambiente universitário. Vinícius Pereira, 20 anos, um dos organizadores do último trote, acredita que as brincadeiras podem ser reavaliadas pelo curso. ;Estamos pensando em fazer algo diferente, algo que não precise diminuir o outro;, afirma. O veterano ressalta que a intenção das rimas não era manter um preconceito, uma homofobia contra os alunos de arquitetura. ;Acho que eles levaram para uma esfera muito grande, mas estamos dispostos a conversar, ponderar e encontrar outros meios. O nosso trote não precisa ser agressivo. Pode ter brincadeiras, mas sempre com respeito.;
Vinícius afirma que o trote solidário é bem-visto entre os alunos da engenharia civil e que o grito que hostilizava a iniciativa foi uma grande infelicidade. ;Um dos veteranos puxou o grito e acabou que todos seguiram. Mas logo vimos que foi errado.;
Interação
O estudante do 4; semestre de engenharia civil Felipe Sá, 19 anos, que não participou do trote da última quinta-feira, acredita que as palavras de ordem são um tipo de brincadeira. ;Eles (estudantes de arquitetura) chamam a gente de mestre de obras, de pedreiro, e nem por isso nos sentimos mal. Outros cursos têm formas de ofensa também, mas todo mundo sabe que é brincadeira. Isso não é uma coisa nova na universidade.;
Participante do trote quando era calouro, Felipe defende a forma de boas-vindas aos novos alunos do curso. ;Antes de tudo, é brincadeira e serve para os novatos interagirem com gente de outros semestres;, afirma. O jovem também destaca que ninguém é obrigado a se submeter às atividades e não as considera como violência.
;Não acho violento porque senão os calouros denunciariam. Eles não reclamam nem com a gente, nem com o DCE, nem com a reitoria;, observa Felipe. Ele aparece em uma das fotos publicadas na edição de ontem, que se refere ao trote realizado pelos alunos de engenharia civil no ano passado.
A recepção dos calouros do primeiro semestre de 2010 repete as mesmas atividades daquele ano: refrões homofóbicos, sopa de mistura de ovos e temperos, além de submeter os novos alunos a andarem na posição de elefantinho. (CM)
Palavra de especialista
Abusos levam à violência
;O grupo dos veteranos muitas vezes abusa dos calouros e chega a praticar atos que passam para a violência. Isso só é visto como violência quando vai para as vias de fato físicas ou de humilhação. Mas em princípio o trote já é em si mesmo um ato de violência. É um ato de demarcar a relação, de mostrar um poder. Muitos calouros se submetem porque não conseguem se colocar contra. Por ficar tão naturalizado, as pessoas perderam a noção do que significa um trote e muitos acham divertido. Isso se repete a cada semestre e a violência se torna banal. Ninguém reage mais. Na sociedade como um todo você passa a ver pessoas que cometem atos violentos e já nao têm um senso crítico. A pessoa fica insensível;, Regina Pedrosa, professora do departamento de psicologia escolar e do desenvolvimento da UnB.