Cidades

Muitos casais encontram uma forma de driblar a Lei da Adoção

Cansados de esperar, muitos casais estão optando por levar as crianças para casa por meio da guarda provisória, em vez de enfrentar todo o processo oficial na Vara da Infância e da Juventude

Helena Mader
postado em 24/05/2010 08:12
Francinaldo e Lucimara estão na fila há mais de um ano para adotar uma criança e se queixam da demora: Nem mesmo crianças órfãs ou abandonadas escapam do famoso jeitinho brasileiro. Diante da longa demora para conseguir adotar bebês menores de um ano, casais na fila da adoção burlam a lista de espera para ter um filho nos braços com mais rapidez. Em vez de procurar a Vara da Infância e da Juventude e seguir um processo oficial de adoção, eles levam a criança para casa apenas com a guarda provisória e, muitas vezes, sem nenhum tipo de documentação. A medida é uma forma de driblar a nova Lei da Adoção, que entrou em vigor em novembro de 2009 e trouxe normas mais rígidas para garantir a segurança do trâmite legal. O Ministério Público do Distrito Federal está preocupado com essa estratégia, que coloca em risco todos os envolvidos no processo, principalmente as crianças.

A ação de casais à margem da lei pode ser comprovada por números e deve ser foco de discussão amanhã, quando se comemora o Dia Nacional da Adoção. No ano passado, 180 crianças foram acolhidas em uma família substituta, uma média de 15 por mês. Este ano, a Vara da Infância e da Juventude registrou apenas quatro adoções em mais de quatro meses ; média de menos de uma adoção por mês. O número despencou porque esses acolhimentos passaram a ser feitos ilegalmente, sem o acompanhamento da Justiça.

A Lei n; 12.010/09, aprovada em agosto do ano passado e sancionada três meses depois pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi criada com o objetivo de diminuir o tempo que meninos e meninas passam nos abrigos até serem inseridos em uma família substituta. A nova legislação proibiu a prática da adoção direta ; quando a genitora entregava o bebê à família que escolhesse, sem a intermediação da Justiça. Os tribunais só entravam no caso para homologar uma situação já consolidada.

Até a sanção da lei, essa era a forma preferida pelos candidatos a pais. No ano passado, 62% das adoções foram diretas, 15% dos processos foram abertos por familiares das crianças e apenas 13% dos casos tiveram intermediação da Vara da Infância. E essa prática tão arraigada não sumiu rapidamente dos hábitos dos brasileiros.

Com as mudanças na lei, apenas a Vara da Infância e da Juventude pode indicar para quem esses meninos e meninas serão entregues. Os candidatos devem estar na fila e ter passado por um curso de capacitação. Há apenas três exceções em que a adoção pode ser feita diretamente: quando os interessados forem madrasta ou padrasto da criança, por parentes diretos com os quais haja vínculos de afinidade ou nos casos em que o casal que vai adotar tem a guarda legal da criança por mais de três anos. É justamente nesse parágrafo da legislação que as famílias interessadas em burlar a lei se apoiam.

Alerta
Para fazer a adoção direta sem entrar na fila, muitas pessoas recorrem à solicitação de guarda provisória para, depois de três anos, entrar com o processo formal de adoção. A promotora de Defesa da Infância e da Juventude Fabiana de Assis Pinheiro alerta para o risco que essa prática representa. ;A guarda é um mecanismo jurídico muito mais frágil do que a adoção, que é incontestável, irrevogável. Já a guarda pode ser suspensa a qualquer momento, seja por solicitação da genitora, que decide pegar a criança de volta, ou por iniciativa da família interessada em adotar, que pode também devolver essa criança à mãe ou até mesmo a um abrigo;, explica a promotora.

O Ministério Público recebeu exemplos recentes de casos como esses. Em um deles, a mãe biológica enfrentava problemas financeiros e decidiu entregar a guarda de seu bebê a um casal conhecido, já que a adoção direta é proibida. Alguns meses depois, ela arranjou um emprego fixo, se arrependeu da atitude e decidiu retomar a guarda do filho. O casal, que sonhava em adotar a criança e já havia desenvolvido um vínculo afetivo com ela, perdeu a guarda.

Em outra situação acompanhada pelas promotoras de Defesa da Infância e da Juventude, um casal que tinha a guarda provisória de um garoto de três anos decidiu devolvê-lo à mãe biológica quando ele começou a apresentar graves problemas de saúde. Como a genitora não queria mais o menino, ele foi mandado a um abrigo. Se em ambos os casos houvesse um processo de adoção formal, não haveria questionamentos ou a possibilidade de devolução da criança.

A promotora Fabiana Pinheiro conta que, antes da lei, recebia uma média de 50 pedidos de adoção de bebês todos os meses. ;Agora, esse número se reduziu a praticamente zero. Também diminuiu muito o número de crianças entregues. Onde estão esses interessados em adotar? Onde estão essas crianças? Está bem claro de que muita coisa está sendo feita à margem da lei;, afirma Fabiana.

As mudanças na Lei da Adoção, com a proibição da chamada adoção direta, foram criadas para evitar a possibilidade de eventuais transações comerciais de crianças. Isso acontecia com muita frequência e eram comuns casos de mães que cobravam valores em dinheiro para entregar seus filhos aos casais interessados em adotá-los. Muitas famílias também se sentiam na obrigação de ajudar essas genitoras, com pagamento de cestas básicas, aluguel ou ajuda para outros filhos da mãe biológica. ;Com esse tipo de adoção (direta), a criança deixava de ser sujeito e passava a ser objeto;, justifica a promotora de Defesa da Infância e da Juventude Luísa de Marillac. ;A intermediação da Justiça nesse processo é muito importante. Os casais são preparados para a adoção e os riscos para as crianças são muito menores;, acrescenta a promotora.

A realidade
30 crianças foram entregues para adoção este ano 4 foram adotadas formalmente 170 meninos e meninas estão cadastrados para adoção atualmente

Fila que se arrasta
O tempo médio de espera para quem deseja um bebê com menos de um ano de idade é de, em média, quatro anos. O casal de advogados Carlos, 31 anos, e Márcia, 32, (nomes fictícios) estava na fila da adoção há mais de dois anos quando, no fim de 2009, uma mulher ofereceu entregar seu recém-nascido. Eles hesitaram, mas acabaram aceitando a proposta. A nova lei já estava em vigor e, portanto, o casal sabia que enfrentaria dificuldades para formalizar a adoção.

O garoto de cinco meses está na família desde que nasceu, mas Carlos e Márcia ainda não conseguiram legalizar a situação. Não têm sequer a guarda da criança. ;Nosso argumento é que essa proibição da adoção direta não valeria para a gente, já que estávamos na fila havia muito tempo. Passamos pela análise das equipes da Vara, ou seja, o objetivo da lei de garantir a segurança da criança está resguardado;, afirma Carlos. ;O menino acolhido informalmente pelo casal é negro e tem problemas de saúde ; perfil que na maioria das vezes reduz o interesse dos candidatos à adoção. ;Se não estivesse com a gente, certamente ele estaria largado em um abrigo. Vamos comprar essa briga;, finaliza o advogado.

Queixa
Quem continua na fila reclama das adoções à margem da lei, que tornam a espera ainda mais longa. O servidor público Francinaldo Silva, 40 anos, e a assistente técnica Lucimara Ramos Silva, 33, decidiram adotar uma criança há quase quatro anos. Entre a escolha e a efetiva inscrição na fila, esperaram mais de 12 meses. Eles reclamam da lentidão do processo. ;A fila não anda, é desanimador. A gente quer fazer tudo certinho, como a lei manda. Mas só se dá bem quem faz as coisas de forma errada;, reclama Francinaldo.

Lucimara já pensa em alternativas para realizar o sonho da maternidade. ;No cadastro, informamos nosso desejo de receber uma criança menor de dois anos. Estamos pensando em ampliar essa faixa de idade para ver se o processo anda mais rápido;, conta a assistente técnica. ;Me sinto passada para trás quando vejo que a fila só anda para quem dá um jeitinho. Já nos ofereceram crianças, mas tenho medo e prefiro aguardar;, conta Lucimara. (HM)

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