Cidades

Sete em cada 10 acolhimentos são de meninos e meninas com menos de um ano de idade

Exigência sobre o perfil da criança adotada é um dos motivos que levam casais a burlarem a Lei da Adoção

Helena Mader
postado em 24/05/2010 08:19
A disputa por um bebê na fila de adoção, que leva casais a burlar a lei na tentativa de acelerar o processo, está relacionada ao perfil das crianças desejadas pelas famílias. Mais de 70% dos acolhimentos realizados no ano passado foram de meninos e meninas com menos de um ano. Quem deseja adotar garotos com idade acima dos cinco anos praticamente não precisa aguardar. Crianças nessa faixa etária representam 95% dos cadastrados para acolhimento. Mas a busca por um recém-nascido motiva as tentativas de dribles na legislação ; que podem até mesmo levar à cadeia.

Além da prática de pedir a guarda provisória em vez de abrir o processo de acolhimento formal, algumas famílias têm recorrido a uma estratégia ainda mais perigosa: a adoção à brasileira. Nesse caso, um casal tenta registrar um bebê de terceiros como se fosse seu. As famílias que forem flagradas nessa situação podem responder por crime de falsidade ideológica, previsto no artigo 242 do Código Penal. A pena de reclusão varia de dois a seis anos.

No início deste mês, duas mulheres foram presas em Ceilândia depois de serem pegas na tentativa de efetivar uma adoção à brasileira. Uma operadora de caixa de 47 anos acabou detida ao tentar registrar uma menina recém-nascida como se fosse sua filha biológica. A mãe do bebê ; uma doméstica de 23 anos ; também foi presa. Funcionários da Vara da Infância e da Juventude ainda analisam o futuro da criança, cuja guarda pode ser entregue a parentes. Se não houver possibilidades de manter os laços familiares, a recém-nascida será entregue para a adoção.

Presidente do Projeto Aconchego ; um organização que trabalha com pais que adotaram ou querem acolher crianças na família ; a psicóloga Soraya Rodrigues Pereira conta que, depois das mudanças na lei, muitos casais têm cogitado a possibilidade da adoção à brasileira ou de pedir apenas a guarda provisória em vez de tentar a adoção oficial junto à Vara da Infância e da Juventude. ;Damos todas as orientações e informamos quais são as exigências legais. Mas é fato que muitas pessoas estão dando um jeito de burlar a legislação;, comenta Soraya. ;É fácil observar isso porque as adoções formais praticamente acabaram. É raro chegarem crianças para os casais que estão na fila;, acrescenta a psicóloga. O Projeto Aconchego é cadastrado pela VIJ para oferecer o curso preparatório que é obrigatório para as pessoas que querem se cadastrar na fila de espera.

Análise
Enquanto os pedidos de adoção são feitos à Vara da Infância, as solicitações de guarda provisória devem ser apresentados às varas de família do Tribunal de Justiça. Cabe aos juízes avaliar o caso e, se entenderem que a solicitação de guarda nada mais é do que uma adoção disfarçada, eles podem recusar a demanda.

O juiz Francisco Oliveira Neto, vice-presidente de Assuntos da Infância e da Juventude da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), destaca a importância da Justiça para evitar as tentativas de burlar a Lei da Adoção. ;É uma situação disfarçada e não podemos permitir que isso aconteça. É inadmissível que esses pedidos de guarda se transformem em um ;test drive; para a adoção;, diz o juiz. ;A guarda é um instituto frágil, ao contrário da adoção. É preciso ficar alerta para saber se há um disfarce, um desvio de finalidade nessas solicitações;, acrescenta o vice-presidente da AMB.

Francisco Oliveira Neto conta que um estudo social bem feito com a família que pleiteia o benefício pode indicar as reais intenções. ;É preciso ter contato com a pessoa que vai receber a guarda, durante as audiências, além da análise social do caso. As varas dispõem de equipes técnicas com assistentes sociais para isso;, finaliza o magistrado.

"É uma situação disfarçada e não podemos permitir que isso aconteça. É inadmissível que esses pedidos de guarda se transformem em um ;test drive; para a adoção"
Francisco Oliveira Neto, juiz e vice-presidente de Assuntos da Infância e da Juventude da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB)


Programa de orientação
A 1; VIJ, na Asa Norte, tem um programa de orientação para essas gestantes. No local, há assistentes sociais e psicólogas de plantão para orientar as genitoras que não têm condições ou interesse de ficar com o recém-nascido. Elas são informadas de que podem desistir da entrega a qualquer momento e ainda têm garantido o direito de fazer todo o pré-natal na rede pública de saúde.

A gerente substituta da Sessão de Adoção da Vara da Infância e da Juventude, Niva Campos, explica que as gestantes interessadas em entregar os bebês para acolhimento em famílias substitutas têm todo o apoio psicológico necessário. ;Elas precisam saber que essa é a melhor forma de garantir que essa criança será inserida em uma nova família com toda a segurança. Os casais cadastrados na VIJ passam por preparação e avaliação;, lembra Niva. ;Muitas gestantes preferiam a adoção intuito persona (adoção direta) porque conheciam um casal e simpatizavam com essas pessoas. Mas isso pode ser arriscado;, acrescenta a gerente da sessão. Todo o processo é sigiloso, ou seja, tanto quem entrega como quem recebe o bebê fica no anonimato.

Quando a genitora é inserida no programa da Vara da Infância, o bebê sai do hospital direto para um abrigo. O processo de destituição (1) é feito rapidamente para que a criança possa ser adotada pelos casais mais bem colocados na fila de espera. ;Só podemos fazer o contato depois que o bebê nasce porque existe uma chance de a genitora desistir de entregá-lo. Isso geraria muita frustração no casal que está aguardando;, finaliza a gerente.


1 - Risco
A legislação brasileira privilegia sempre a manutenção de meninos e meninas com suas famílias biológicas. A destituição do pátrio poder só acontece quando a Justiça comprova que a permanência da criança com pais ou parentes representa um risco ou quando não há interesse de nenhum representante da família em ficar com essa criança. Isso também é feito quando a gestante entrega o bebê para adoção logo depois do parto, desde que sejam seguidas as normas de orientação prévia.


Saiba mais

O que diz a Lei Federal 12.010/09, conhecida como Lei da Adoção:

; O poder público deve proporcionar assistência psicológica à gestante e à mãe, no período pré e pós-natal.

; A assistência deverá ser também prestada a gestantes ou mães que manifestem interesse em entregar seus filhos para adoção.

; As gestantes ou mães que manifestem interesse em entregar seus filhos para adoção serão obrigatoriamente encaminhadas à Justiça da Infância e da Juventude.

; Toda criança ou adolescente que estiver inserido em programa de acolhimento familiar ou institucional terá sua situação reavaliada, no máximo, a cada seis meses.

; A permanência da criança e do adolescente em programa de acolhimento institucional não se prolongará por mais de dois anos.

; A manutenção ou reintegração de criança ou adolescente à sua família terá preferência em relação a qualquer outra providência.

; Sempre que possível, a criança ou o adolescente será previamente ouvido por equipe interprofissional, respeitado seu estágio de desenvolvimento e grau de compreensão sobre as implicações da medida, e terá sua opinião devidamente considerada.

; Tratando-se de maior de 12 anos de idade, será necessário seu consentimento, colhido em audiência.

; Na apreciação do pedido serão levados em conta o grau de parentesco e a relação de afinidade ou de afetividade, a fim de evitar ou minorar as consequências decorrentes da medida.

; Os grupos de irmãos serão colocados sob adoção, tutela ou guarda da mesma família substituta, ressalvada a comprovada existência de risco de abuso ou outra situação que justifique plenamente a excepcionalidade de solução diversa, procurando-se, em qualquer caso, evitar o rompimento definitivo dos vínculos fraternais.

; A colocação da criança ou adolescente em família substituta será precedida de sua preparação gradativa e acompanhamento posterior, realizados pela equipe interprofissional a serviço da Justiça da Infância e da Juventude, preferencialmente com o apoio dos técnicos responsáveis pela execução da política municipal de garantia do direito à convivência familiar.

; O deferimento da guarda de criança ou adolescente a terceiros não impede o exercício do direito de visitas pelos pais, assim como o dever de prestar alimentos.

; A inclusão da criança ou adolescente em programas de acolhimento familiar terá preferência a seu acolhimento institucional.

; Podem adotar os maiores de 18 anos, independentemente do estado civil.

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