Cidades

Depois de descobrir um câncer nos seios, Maria Lucília da Silva reconstruiu a vida

Além de ter que retirar os seis e enfrentar o desconforto da doença, o casamento acabou. Com dois filhos para criar, ela refez seu modo de viver, inventou uma prótese caseira e descobriu, assim, um jeito de ajudar outras pessoas

Juliana Boechat
postado em 27/05/2010 08:21
Lucília, em plena atividade: Durante um banho, em 1989, Maria Lucília da Silva identificou pequenos caroços nas mamas. Como não havia sentido qualquer tipo de alteração no corpo até então, a cabeleireira pensou que poderia ser um coágulo de leite. Com o passar do tempo, surgiu a preocupação. A insegurança e o medo de ouvir a verdade, porém, a impediram de procurar um médico pelos próximos seis meses. Mas não teve jeito. Quando se deparou com o resultado da biópsia realizada nos nódulos, ela soube que os anos seguintes seriam difíceis. Ela tinha duas opções: acomodar-se no fundo do poço ou dar a volta por cima e enfrentar o câncer de mama(1). Na época com 32 anos e mãe de duas crianças, Lucília escolheu a segunda opção. Desenvolveu, então, uma prótese caseira para mulheres que retiraram a mama, trabalha como voluntária no Hospital de Base e hoje se diz uma amante da vida.

Em menos de um mês, Lucília estava sem os dois seios. ;No início, eu queria ficar livre da doença. Mas é um baque muito forte para a mulher. É uma mutilação.; Durante dois anos ; de 1990 a 1992 ;, ela se redescobriu como mulher e foi obrigada a tomar as rédeas de uma nova vida. A vergonha de usar um vestido ou uma blusa decotada a fez criar uma prótese de espuma para colocar dentro do sutiã. O fim do casamento incentivou a então dona de casa a fazer um curso técnico de cabeleireira e de costura para sustentar os filhos de 11 e 5 anos. ;É difícil demais curar o câncer. Ele tira a sua dignidade, te coloca lá embaixo. Além dos preconceitos que você sofre. É o que tem de mais agressivo para uma mulher;, desabafou.

Os dois filhos foram o maior incentivo para a cura da doença de Lucília. E o grande trampolim para a retomada da vida aconteceu em 1992, quando ela fez a reconstituição dos dois seios. Como na época não havia implante de silicone, ela foi submetida a uma cirurgia que retirava gordura da barriga para implantar no busto. ;Valeu muito a pena. Temos que lutar pela vida, deixar o medo de lado, nos amar e amar a vida: é o nosso bem maior.; Animada e de bem com a vida, Lucília hoje se sente livre para usar blusas justas, com decote, e vestidos variados. E alguns dias de semana ainda trabalha no pequeno salão de beleza improvisado na garagem de casa, no Gama. ;Foi assim que criei meus filhos, construí a minha casa e hoje pago meu carro. Consegui tudo o que eu queria;, orgulha-se.

Quando superou a doença, Lucília decidiu ajudar outras mulheres que passam pelo sofrimento com a doença. Em 2005, aderiu ao voluntariado da Rede Feminina de Combate ao Câncer, do Hospital de Base. O grupo de mulheres trata do câncer de mama e do colo do útero e realiza visitas às pacientes no ambulatório, doa lanches, acolhe e ensina os direitos das cidadãs. Após um ano de trabalho, a cabeleireira percebeu que algumas mulheres carentes também enfrentavam dificuldades como, por exemplo, a demora de conseguir prótese de silicone e para a reconstituição dos seios. ;Na minha época, eu também não tinha condições. Pedi dinheiro emprestado à família e me virei para criar uma prótese para usar um simples vestido;, lembra.

1 - Cuidado após os 35

No Brasil, o câncer de mama é o que mais mata mulheres. A doença é temida por elas devido à alta frequência e os efeitos psicológicos, que afetam a sensualidade e a imagem feminina. O câncer é relativamente raro antes dos 35 anos, mas, acima dessa faixa etária, sua incidência cresce rápida e progressivamente. Os hospitais, no entanto, atendem meninas de até 15 anos com nódulos nas mamas. Quanto mais cedo for detectada a doença, mais eficaz é o tratamento.


"O câncer tira a sua dignidade, coloca lá embaixo. Além dos preconceitos que você sofre. É difícil demais para a mulher"
Maria Lucília da Silva, cabeleireira


Depoimento
Autoestima é tudo

;Eu sempre trabalhei com serviços gerais e demorei para pedir ajuda de um médico com medo de ser prejudicada no trabalho. Há quatro anos, deitada na cama, senti um caroço bem grande. Mas não dei importância e deixei complicar. Um ano depois, eu paguei uma mamografia. Depois do diagnóstico, fui ao Hospital de Base, sentei na sala de espera e esperei ser atendida mesmo sem ter marcado consulta. Isso foi numa sexta-feira e eu me internei na terça seguinte. No meu aniversário, em 12 de junho, eu já estava sem um seio. Nessa época, passei por momentos difíceis na família e em relação à doença, mas encarei tudo com muita garra e com apoio das minhas irmãs e dos meus filhos. O apoio psicológico é muito importante, mesmo assim a gente tem altos e baixos. Eu fiquei muito para baixo, mas não me preocupei com a aparência física ; era minha família que estava com problemas. Hoje, a minha autoestima está bem a cima do que estava. Fiz há pouco tempo a reconstituição e estou em fase de acabamento;.
Evanilda Bolzan de Sousa, 51, Gama, funcionária de serviços gerais


Uma invenção bem bolada

Ainda em 1990, a psicóloga de Lucília a incentivou a criar uma prótese de espuma dentro de casa. ;Eu queria ir em um casamento. Mas sem os seios, eu parecia um homem;, contou. A experiência deu tão certo que a cabeleireira utilizou o bojo de espuma por dois anos, até conseguir a operação de implante dos seios. Com o passar do tempo, ela incrementou a criação. E, há dois anos, levou o acessório à Rede Feminina de Combate ao Câncer. Dessa forma, as mulheres que não têm condições financeiras de fazer a operação de reconstituição ou estão à espera de uma prótese do governo ; demoram de seis meses a um ano para chegar até as mãos da vítima do câncer ; podem se sentir à vontade na hora de se vestir de forma feminina e sensual.

O enchimento é feito com espuma, chumbinho utilizado em pescaria e revestimento de algodão. ;Temos que ver tamanho e o peso do seio da mulher. É tudo adaptado para elas se sentirem confortáveis;, conta Lucília. As próteses são distribuídas de graça às mulheres que passaram pela retirada de uma ou das duas mamas (veja quadro). ;É gratificante ajudar as pessoas que passaram por situação parecida com a minha. Gosto de dar meu testemunho e estimular essas mulheres a enfrentar a doença;, disse. Segundo Lucília, cerca de 3 mil próteses foram produzidas pelo grupo voluntário nos últimos dois anos.


Como funciona
A Rede Feminina de Combate ao Câncer funciona no Corredor 5 do Hospital de Base do Distrito Federal. Além de encontrar as próteses externas da mama, as pessoas encontram produtos à venda. Todo o valor adquirido é revertido para a ajuda às vítimas do câncer de mama e de colo do útero. O grupo também atende pelo telefone 3315-1221.

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