postado em 29/05/2010 07:56
Num dia, entre dezembro de 1956 e março de 1957, o pai perguntou para a filha, como quem brinca de jogo de adivinhação: ;Se você fosse fazer uma cidade, o que você acha que tinha que ter?;. O pai era arquiteto, um dos mais respeitados e talentosos do Brasil. A filha era estudante do 3; ano de arquitetura. Passados 53 anos, Maria Elisa Costa não se lembra da resposta que deu ao pai e nem sabia a razão daquela pergunta. Guardou na memória a reação de Lucio Costa: ;Você não pensou nisso, não pensou nisso, não pensou nisso;;, dito como quem brinca de inventar uma cidade de mentira.Mais um tempo se passou e o pai voltou à filha. Esticou um croqui feito com lápis grafite e sombreado com lápis azulado sobre a mesa do escritório. Não era um desenho concluído. Era o que hoje se pode identificar como o Eixo Monumental com a Asa Sul, meio Plano Piloto. A família morava onde até hoje Maria Elisa vive, uma cobertura do Leblon (Rio de Janeiro) de frente para o mar. O arquiteto, porém, trabalhava no que eles chamavam de ;terraço de trás;, uma varanda parcialmente coberta, de costas para o Atlântico, revestida e recheada, dos pés à cabeça, de livros, revistas, recortes de jornais, croquis.
O pai começou a descrever à filha o projeto que estava desenvolvendo. Era a primeira vez que ele expunha para alguém e, quem sabe, para ele mesmo, as ideias da cidade que estava criando. Homem de temperamento tranquilo, Lucio Costa estava, a seu modo, excitado com a apresentação para o público composto por uma filha só. Ao final, a camisa estava encharcada de suor e ;certamente não era apenas pelo calor do verão;, diz ela.
Veio mais um período de silenciosa criação, que se desenvolvia em múltiplos papeizinhos nos quais o urbanista desenvolvia o projeto de cidade e toda e qualquer outra ideia, fosse ou não de arquitetura e urbanismo, tal qual um escritor, um poeta, um inventor literário. ;É como se o pensamento dele tivesse o hábito de sair pela ponta do lápis no papel que aparecesse na sua frente;, conta Maria Elisa. Basta ver, ela sugere, o acervo que já faz parte do site Casa de Lucio Costa. Os papeizinhos de Brasília estão na exposição Lucio Costa ; Arquiteto, aberta no Museu da República até 8 de agosto.
Acervo
A solitária invenção continuou até que um dia Lucio Costa levou seus escritos para serem datilografados por um profissional no centro do Rio de Janeiro. A criação foi condensada em 16 folhas manuscritas em papel tamanho ofício. Era a memória descritiva do projeto. Antes de mandar datilografar, o arquiteto pediu ao colega de repartição no então Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), Carlos Drummond de Andrade, que fizesse a correção ortográfica do texto. ;Lucio nunca obedeceu a nenhuma reforma ortográfica. Escrevia ;prompto; no lugar de ;pronto;, ;summario; no lugar de sumário, ;sciencia; no lugar de ciência e por aí vai.; Foi a única intervenção do poeta no texto do pai, diz a filha. ;Ele trabalhou intensamente o texto, como se constata nos múltiplos rascunhos que vieram à tona.;
Faltando 10 minutos para o fim do expediente, em 11 de março de 1957, último dia de inscrições ao concurso do Projeto do Plano Piloto de Brasília, duas garotas desceram do carro, sob uma chuva forte, e entregaram o conjunto de papéis, cartões e croquis no guichê do Ministério da Educação e Saúde Pública, o Palácio Gustavo Capanema, primeira obra monumental da arquitetura moderna, feita por uma equipe liderada por Lucio Costa, entre o final da década de 1930 e o começo da década de 1940.
Quase 20 anos depois, numa noite de lua cheia, num show em comemoração aos 19 anos de Brasília e aos 40 de Roberto Carlos, Maria Elisa Costa estava no canteiro central da Esplanada. Acabado o espetáculo, disparados os fogos de artifício, a arquiteta se sentou na grama para esperar que a multidão se dissolvesse. De costas para o palco, ela começou a observar a correnteza de gente que descia em direção à Rodoviária. Em perspectiva, via os ministérios enfileirados como um jogo de dominó, os painéis coloridos e feéricos do Conjunto Nacional.
Só então a filha do arquiteto soube, de si para si, que havia sido a primeira pessoa a ver, em pedaços de papel, o surgimento da capital do Brasil. ;E naquele instante eu estava ali, dentro dela! Passei bem uma meia hora sem conseguir sair do lugar.; Não era a primeira vez que Maria Elisa vinha a Brasília. Desde que o pai venceu o concurso do Plano Piloto, a nova capital passou a ser, de certo modo, projeto da filha.
Passo a passo
Logo depois que a cidade começou a ser construída, Maria Elisa passou a acompanhar os primeiros movimentos na Divisão de Urbanismo da Novacap com a equipe que ficou desenvolvendo o projeto na sobreloja do Ministério da Educação, no Rio. As plantas do levantamento aerofotogramétrico eram desdobradas sobre 70 portas suspensas sobre cavaletes ;e o pessoal sentado em cima, literalmente, para marcar os locais. Era o chão do Brasil no Ministério da Educação;, conta Maria Elisa.
Em 1959, recém-formada, a filha foi ajudar a desenvolver o projeto do pai. O primeiro projeto que Maria Elisa desenvolveu para Brasília foi o das calçadas da 700 Sul. Mais adiante, ela projetou a pracinha do Setor de Diversões Sul, aquela em frente ao Conjunto Nacional: ;Coloquei no papel ideias do meu pai;. Mais adiante ainda, e novamente a partir da concepção de Lucio Costa, ela desenvolveu os estudos do documento Brasília Revisitada, 1957/1985, com o arquiteto Adeildo Viegas de Lima.
Quando o arquiteto Carlos Magalhães assumiu a Secretaria de Viação e Obras do governo José Aparecido, Maria Elisa voltou a trabalhar em Brasília, como assessora do secretário. Desde então, participou de conselhos de defesa da cidade, todos eles sem nenhum poder deliberativo, exceto o primeiro, criado por José Aparecido. ;Foi o Cauma (o primeiro conselho) quem segurou Brasília antes do tombamento.;
Um ano depois de a cidade ser inaugurada, Maria Elisa se casou com Eduardo Sobral, filho de uma família genuinamente candanga. A única filha, Julieta, passava boa parte das férias de julho, na infância, em Brasília, para ter contato com os primos. São razões afetivas que continuam a trazer a arquiteta à cidade, numa espécie de sucessivos encontros de preservação afetiva. Seja o afeto pela família do ex-marido, seja o afeto pela invenção do país. ;Vejo Brasília como uma partitura musical. As escalas são urbanas. O que importa é preservar não apenas as partes isoladas, mas o resultado da interação entre as escalas.;
De onde vem o menosprezo brasileiro pela capital do país? ;É atávico;, analisa ela. ;É a dificuldade brasileira de dar valor aos seus valores; uma espécie de síndrome de país colonizado. Não saber dar valor a Brasília é o auge da subserviência cultural! Menosprezar Brasília é menosprezar o Brasil e, portanto, a si próprio.;