Cidades

A mulher que recolhe a morte

Em 12 anos de profissão, ela já buscou mais de 4 mil cadáveres, nos quatros cantos do DF. Dramas e comédias da impagável Ana Cristina Neves, a auxiliar de necropsia do IML que coleciona histórias e sonhos

postado em 30/05/2010 08:35
Aconversa estava marcada para as 10h30. Ela estaria de folga. Trabalha em escala de plantão ; 24 horas por 72. Pontualmente, a equipe chegou. E ela se maquiava, numa sala ao lado. Não, não estamos num salão de beleza. ;Quero ficar mais engraçadinha;, explicava ao repórter. ;Se você achar que tá demais, avisa, viu?. Nada de exagero.;

Em 12 anos de profissão, ela já buscou mais de 4 mil cadáveres, nos quatros cantos do DF. Dramas e comédias da impagável Ana Cristina Neves, a auxiliar de necropsia do IML que coleciona histórias e sonhosOs retoques ; um pouco de base, batom, sombra lápis e rímel ; foram feitos por uma colega de profissão, que se prontificou a ajudá-la. E ela se olha no espelhinho. ;Nossa, fiquei outra pessoa!” Os outros colegas a cumprimentam. Uma moça da limpeza, impressionada com tamanha transformação, pede para tirar uma foto do celular. ;Você tá linda...;, balbuciava.

É ali, naquele lugar ; onde uma gente vai atrás de corpos, presos chegam algemados para exame de corpo de delito, vaivém sem fim, dor, mistério, vida e morte ; que aquela moça, agora maquiada, de cabelos longos e pretos, trabalha. Estamos no Instituto Médico Legal de Brasília (IML). Passa das 10h45.

E lá vem ela. Ana Cristina da Silva Neves preenche todos os espaços. E isso não é força de expressão, não. Ana Cristina é grande mesmo. E não só em tamanho ; mede 1,73m. É grande de espaço. ;Ih, menino, acho que até dei uma emagrecida, cortei a Coca-cola, evito massa, mas acho que já passei dos 150kg;, ela diz, assim mesmo, sem firulas. Cristina fala de tudo, conta tudo. E ri, de si mesma e dos seus espaços.

Ana Cristina trabalha com a morte, mas, ainda assim, fala de vida. Suga a vida. Enche-se de vida, até quando fica séria. Ela é auxiliar de necropsia do IML. Uma das quatro mulheres (das nove na função) que recolhe cadáveres ; vítimas de crimes, acidentes e morte natural ; nos quatro cantos do DF. ;Nestes 12 anos, já recolhi mais de 4 mil corpos;, contabiliza.

E revela, emocionada: ;Depois de ver tantos mortos, entendi que a única coisa que iguala o ser humano é a morte. É o mesmo odor. E não importa se o morto morava numa mansão do Lago Sul, tinha carro importado. Aqui, no IML, fica igualzinho ao corpo que recolhi no Lixão da Estrutural;. Algumas pessoas, pena, ainda não conseguiram perceber isso.

A conversa ; longe daquela certeza, pelo menos física, do fim ; vai começar. A amiga, a agente de polícia Ana Cristina Queiroz, 40 anos, que a ajudou na maquiagem, acompanha-a. ;Você tá poderosa, hein?;, dizia a moça loira que prende bandidos, elogiando o visual da colega que recolhe defuntos.

Anatomia
Cristina nasceu em Taguatinga, há 36 anos. ;Minha mãe me teve no antigo Hospital São Vicente de Paulo ; é, aquele mesmo, que hoje cuida de doido. Já viu por que sou assim, né?;, brinca. Filha de um mecânico e de uma dona de casa, tem uma irmã, mais nova. Em Taguatinga, cresceu. ;Sempre fui cheinha;, diz.

Na escola, descobriu-se fascinada pelo corpo humano. ;Adorava ciências, achava o máximo estudar os órgãos e seus mistérios.; Aos 12 anos, a menina se mudou, com a família, para Ceilândia. Lá, virou, por pouco tempo, evangélica. ;Cantava na igreja;, conta. E se apaixonou pela leitura. ;Lia sobre as cidades e dizia que um dia ainda ia conhecer o Brasil.;

Veio o ensino médio. A adolescente, mais cheinha ainda, fez o curso de auxiliar de enfermagem. Decidiu que trabalharia em hospital. E arrumou emprego em dois deles. ;Sempre no centro cirúrgico, como instrumentadora e auxiliar de anestesista.; Em 1992, apareceu uma chance de estágio no IML. ;Eu tinha 19 anos. Vi um colega fazendo a necropsia no corpo de uma psicóloga, morta num acidente de carro. Naquele dia, decidi que era aquilo que queria pra minha vida.;

Mas o estágio acabou. E Ana Cristina voltou à sua vida. Ensaiou ser camelô, na Feira de Ceilândia e em Brasilinha. ;Era tanta poeira em Brasilinha que as calças ficavam brancas. Aí, eu dizia que era uma nova cor: bordô. Chiquérrimo. O povo comprava tudo...;

Mas a vida de camelô não a empolgou. Em 1995, ela soube de um concurso para o IML, nível fundamental. Anatomia era o forte. Não hesitou. Passou. ;Esperei três anos pra ser chamada.; E brinca: ;Dizia a mim mesma: ou entraria no IML pela porta da frente ou por trás, numa bandeja bem pesada;.

Rezas e rap
Ana Cristina, finalmente, chegara aonde sempre quis. Ia recolher corpos, depois abri-los, para que médicos desvendassem a causa mortis, e os fecharia. Há 12 anos, esse é o ofício da ;Gorda do Rabecão;, como é chamada pelas pessoas assim que chega. E coleciona histórias de dramas e de comédias. Sim, a morte não é cômica, nunca será. Mas com Ana Cristina pode ser.

Ela mesma conta: ;Uma vez, cheguei numa casa no Recanto das Emas e o marido da mulher tava morto na sala. O povo da rua queria rezar um terço. Eu tinha mais mortos para recolher naquele dia. Aí falei: ;Minha gente, não temos tempo. Vamos rezar três Ave-Marias e três Pai- Nosso e tá bom. Tá entendido?;.

Tem mais: ;Uma vez, fui recolher um cara assassinado na Estrutural. Um rapaz me viu e disse: ;E aí, gordinha, cabulosa essa morte, né?;. Aí, ordenou, cheio de moral: ;Esse corpo só sai depois que a gente cantar um rap;. O povo cantou em volta do cadáver, estendido na rua...; Acabou não: ;E a mulher e a amante brigando pelo defunto? Tava na hora de levar o corpo e elas em pé de guerra. Coloquei no Rabecão e as duas ficaram se abraçando. Tem cada uma. Até morto o defunto fez confusão...;

Por duas vezes, em 12 anos, Ana Cristina chorou. ;Quando fui recolher o corpo de um motoboy de São Sebastião, assassinado por bandidos que quiseram a moto dele. O pai me contou que tinha perdido a mulher, de câncer, há poucos meses, e que agora ia enterrar o filho, que sonhava vencer na cidade.;

E a cena que ela nunca esqueceu: ; Uma criança de dois meses teve morte natural, em Ceilândia. A mãe não deixava que o filho saísse no gavetão. Fiz uma coisa que não podia. Trouxe o bebê nos meus braços, como se ele estivesse vivo. Nesse dia, eu não aguentei. Não sou mãe, mas senti a mesma dor;.

E a dor pode doer dentro de casa. No Natal de 2000, o pai dela foi assassinado. ;Um cara em saidão roubou um supermercado e meu pai denunciou. Ele soube e matou meu pai a tiros. Eu não recolhi o corpo dele, porque tinha mudado meu plantão naquele Natal, mas fui vestir. Eu precisava fazer isso.; Comovida, insiste: ;Tem muita gente na rua que me acha bruta. Na verdade, coloquei uma parede de defesa pra encarar as tragédias de todo dia;.

Reggae agarradinho
Para não enlouquecer, Ana Cristina viaja. Lembram-se da promessa que fez a si mesma de conhecer o Brasil? Pois é. Em férias, ela, com uma amiga aventureira, pega a estrada. Conheceram quase todo o Norte e o Nordeste. Pararam no Maranhão. ;E de carona. Viajei até em caminhão que levava galinha viva...;

Em São Luís, a ;Gorda do Rabecão; causou frisson. Dançou tambor de crioula e reggae agarradinho, como se dança por lá, e soltou a voz. ;Não posso ver um microfone que já me acho. Já cantei até em churrascaria. Na Praia de Ponta d;Areia tinha um palco armado, perto dos quiosques. Não deu outra. Cantei sertanejo, forró e axé. O povo achava que eu era cantora profissional e minha amiga deu uma de empresária. Comemos arroz com toucinho e cuxá (prato típico maranhense) de graça;, se acaba de rir.

Longe do Rabecão e do cheiro forte da morte, que iguala todos, Ana Cristina anda felicíssima. Voltou para a antiga paixão, que estava estremecida. ;Eu era amante, há 10 anos, mas agora ele se separou da mulher e assumiu nossa relação. Veio morar comigo. Estamos juntos há dois meses;, comemora. ;Quero emagrecer mais e ficar linda, maravilhosa para o meu amor...; Dá-lhe, menina!

O regime servirá também para realizar um antigo sonho: passar na roleta do ônibus que pega em Ceilândia e a leva ao IML. ;Uma vez fiquei entalada numa e foi um auê. Jurei que nunca mais tentaria, enquanto não emagrecer. Pago a passagem e desço pela frente.; Promessa cumprida. No fim da entrevista, pergunto, afinal, do quê ela tem medo. ;Só de perder as pessoas de quem gosto. Mais nada. Os mortos não fazem mal a ninguém. Quem assusta é gente viva;.

Esta é Ana Cristina, a mulher que, recolhendo a morte, passou a acreditar cada dia mais em si mesma: ;A vida é valiosíssima. Amo viver, adoro cantar;. E reflete: ;Quando eu vou buscar um corpo, sei que aquela pessoa não terminou ali. Foi apenas uma passagem...; Na despedida, ela diz ao repórter e ao fotógrafo, depois de um forte abraço: ;A gente se vê por aí, meninos. Qualquer coisa, é só ligar...; Gelamos. Ah, meu Pai...

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