Juliana Boechat
postado em 03/06/2010 07:00
Brasília não para de crescer. Com 2 milhões de habitantes, a capital não lembra em nada o cenário encontrado pelo presidente Juscelino Kubitschek e pelos milhares de trabalhadores que chegaram aqui em 1956 para erguer a cidade. Há mais de 50 anos, cada um partiu da sua terra natal rumo ao centro do país em busca de emprego e de melhores condições de vida. Moraram em acampamentos com as famílias, dormiram em alojamentos, viviam em condições precárias, mas orgulhavam-se de ajudar na construção da nova capital federal. O trabalho valeu tanto a pena que muitos ficaram para acompanhar o desenvolvimento do Distrito Federal. Aproveitando as comemorações do cinquentenário de Brasília, os produtores culturais Kleber Moraes e Zelito Passos decidiram dar voz e rosto a esses trabalhadores com o projeto Brasília outros 50. A dupla está produzindo seis documentários para ouvir os relatos de pioneiros de algumas cidades do DF. Depois de prontos, os filmes são exibidos gratuitamente, ao ar livre, com direito a apresentações de artistas locais e nacionais.A exibição do primeiro vídeo, realizada na semana passada na Vila Planalto, reuniu cerca de 3 mil moradores do local. ;Vimos que não havia um retrato fiel das pessoas que realmente construíram Brasília. Buscamos isso e estamos muito satisfeitos com o resultado;, comemora Kleber Moraes. O trabalho surpreendeu até mesmo os organizadores do projeto. O vídeo sobre a Vila Planalto deveria ter apenas 15 minutos, mas acabou com 35 minutos de duração. E alguns depoimentos ainda ficaram de fora. ;A história é muita rica, é muita gente;, diz. Planaltina será a próxima homenageada. A cidade receberá o filme que conta a sua história em 12 de junho. Ao longo do ano, moradores de Sobradinho, Núcleo Bandeirante, Taguatinga, Ceilândia ; que farão parte de um único vídeo ; e Gama também poderão assistir a história da formação da comunidade em que vivem. Conheça abaixo alguns dos pioneiros da Vila Planalto retratados no primeiro documentário da série Brasília outros 50.
Personagens da cidade...
A cantora
Vera Lúcia Gouveia Alvarenga, 64 anos, construiu a vida no acampamento da Ebe. Ali chegou com 15 anos para morar com os pais e não saiu mais. ;Não penso em me mudar nunca. Não conheço um lugar melhor para morar no DF. Aqui, você sente que está em uma chácara, mas está entre dois palácios (da Alvorada e do Planalto);, elogia. As fotos em preto e branco mantêm vivas as memórias da casa de madeira onde casou e teve quatro filhas, das feirinhas construídas onde hoje fica o Setor de Clubes Norte e das apresentações na TV Nacional e em clubes da região.
Durante 10 anos, ela soltou a voz com o nome artístico de Cláudia. ;Fiz bailes com um primo, cantei para ministros e até para o presidente da República (à época Juscelino Kubistechek);, lembra. Em 1974, ela decidiu se dedicar totalmente à criação das suas herdeiras, que adoravam brincar com os filhos dos vizinhos. As crianças, todas com idades próximas, estudaram juntas, brincaram na rua e, até hoje, mantêm o contato. ;Hoje, elas são madrinhas de casamento e dos filhos umas das outras;, conta, rindo. ;A Vila Planalto mudou completamente. Mas ainda é um bairro muito familiar;, disse.
O LÍDER COMUNITÁRIO
Antônio Donizete da Silva, 53 anos, assiste da janela de casa ao desenvolvimento da Vila Planalto. Mas em 1975, quando chegou à pequena comunidade e se deparou com as condições precárias, decidiu agir. ;Encontramos o esgoto a céu aberto, barracos feitos com madeiras podres e um sistema muito ruim de água potável e energia;, disse. Em 1985, Donizete e a mulher montaram um grupo de oração. Todas as segundas-feiras, os dois passavam nas casas para rezar, refletir e discutir um objetivo comum: transformar a Vila Planalto em um local agradável para viver. O grupo ganhou força e contou com o apoio do então governador José Aparecido de Oliveira. ;Muito do que a vila tem hoje foi realizado com o nosso esforço;, orgulha-se.
O líder comunitário lembra bem da época em que o trabalho do grupo estagnou-se. ;Era um trabalho muito bonito. Acredito que tenha sido o movimento popular mais importante do país;, enaltece. Hoje, lembra com carinho dos sonhos de transformação. ;Pensávamos em quiosques de artesanato e de comidas típicas e um projeto que valorizasse a memória e história da vila. Mas, infelizmente, nem tudo acontece como sonhamos.;
O DONO DA PRAÇA
José Juvenal Ramalho, 69 anos, passa o dia na praça à frente de casa. Ali, joga baralho com os amigos, toma o cafezinho da tarde e cuida do local. O amor pelo quadradinho de asfalto é tão grande, que a comunidade batizou o espaço de Zé Ramalho. ;Passo 365 dias do ano aqui. Só vou para casa para almoçar e dormir. Eu tomo conta dela;, conta. Zé chegou sozinho e solteiro na região onde hoje fica o Paranoá, em 6 de fevereiro de 1960. Em pouco tempo, foi contratado pela Novacap para transportar materiais de construção para as obras da capital. Descontente com o serviço, decidiu voltar para o Ceará.
Mas a ideia não vingou. Pouco tempo depois, ele conseguiu um trabalho como segurança, que rendia um salário mais alto e garantia menos esforço físico. De volta a Brasília, conheceu JK. ;Como eu sou do interior, era uma grande honra conhecer o presidente;. E, em seguida, uma mineira de Patos de Minas que conquistou o seu coração. ;Eu vivia em um verdadeiro quartel. Ali, não entrava nem mulher, nem pinga;, riu. Após ganhar um lote na Vila Planalto, Zé Ramalho se mudou com a família e nunca mais deixou o lugar. Vive hoje rodeado por cinco filhos, seis netos e um bisneto.
O PADEIRO
Conhecido por todos como padeiro, Severino José Barboza, 94 anos, nunca fez um pão em toda a vida. Nascido na Paraíba, o homem de boa memória chegou em Brasília em 11 de maio de 1960. Ficou encarregado de transportar areia para as obras de construção da capital. Mas não gostou do serviço. ;Eu queria trabalhar por conta própria. Eu tinha coragem;, relembra. Decidiu, então, entregar pães e leite nas casas da Vila Planalto. Todos os dias, por volta das 4h, ele buscava 5.500 pães e mais de 100 litros de leite na padaria. De bicicleta, entregava o café da manhã dos vizinhos. ;E eu já sabia exatamente o que cada família queria;, contou.
O simpático Severino, que gosta de fazer o bem e prega a amizade, passou por algumas dificuldades. Certa manhã, os pães que ele havia deixado nas portas das casas foram roubados. Pouco tempo depois, teve a casa de madeira incendiada. ;Fiquei embaixo das árvores. Mas consegui construir a primeira casa de alvenaria da região. Quem faz bem, recebe o bem em troca, não é mesmo?;, questiona. Severino viveu com duas mulheres e, hoje, mora com uma neta na casa em que construiu. Toda noite recebe amigos para jogar dominó. ;Tenho muita amizade em Brasília e, no fim das contas, é isso que vale;, conta, orgulhoso.