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"Brasília é a minha terra"

Aloysio Campos da Paz deixou no Rio a tradição de quatro gerações de médicos para construir um legado próprio no Cerrado. Na chegada, Foi chamado de %u201Cotário%u201D. Depois,Fundou o Sarah, modelo de medicina ortopédica

postado em 05/06/2010 07:30
Diretor do Hospital Sarah Kubitschek, Aloísio Campos da PazNum dia da primeira quinzena de maio de 1960, um ortopedista recém-formado saiu de casa, na 106 Sul, para se apresentar no primeiro emprego. Estava vestido de branco até os pés ; ;roupa que os médicos, os babalorixás e os atendentes de farmácia usavam na época;. Afundando em poeira, caminhou até uma estrada por onde transitavam caminhões cheios de operários. Sem demora, um deles parou e perguntou aonde o candango vestido de branco avermelhado pretendia ir. ;Vou ao Hospital Distrital de Brasília;. Começou então uma discussão entre os peões de obra até que se chegou a um consenso. O caroneiro queria ir para a obra da Pederneiras. Naquele tempo, os endereços eram identificados pelo nome da construtora do prédio.

No cruzamento dos dois eixos, onde a Rodoviária estava sendo construída, o caminhão parou. ;É aqui;. O jovem médico Aloysio Campos da Paz seguiu por uma picada rumo ao hospital. ;De repente, cheguei num barracão de madeira, pintado de azul, escrito assim ;Primeiro Hospital Distrital de Brasília;;. Na entrada, havia um homem numa cadeira de balanço. Duvidando da veracidade do que via, Campos da Paz perguntou: ;Aqui é o Hospital Distrital?; O candango sentado respondeu: ;Bom, chegou mais um otário. O que é que você faz?;. O ortopedista foi orientado a seguir em frente por um corredor até um lugar que supôs ser o seu novo local de trabalho. ;Havia uma pilha de atadura de gesso com um candango acocorado em cima;.

Àquela altura, o médico já tinha percebido onde havia aterrissado e qual era a lógica que movia a construção da capital e, por extensão, o serviço médico. Logo, o candango acocorado, ex-tratorista, de nome Dalvino, foi transformado em técnico de gesso. ;Foi o primeiro que eu treinei e ele depois treinou gerações;.

Tudo o que estava acontecendo nos primeiros dias de chegada a Brasília era um nada diante do que viria.

O primeiro ortopedista da nova capital que havia se preparado para atuar em ortopedia infantil tinha caído no que parecia ser um hospital de campanha de um campo de batalha. ;Foi uma loucura. Os caminhões chegavam e literalmente despejavam no pátio do barracão os candangos feridos em acidente de trabalho;. O que salvou o recém-formado foi um livro, Fraturas y luxacones , que até hoje ele guarda na estante de sua sala no Sarah da 301 Sul. ;É todo cheio de diagramas, para tal coisa, faça tal coisa, e eu andava com aquele negócio debaixo do braço;.

Antes de vir para Brasília, o horizonte de Campos da Paz era o oceano. Aqui, conheceu o BrasilPor que a nova capital?
O que trouxe aquele casal promissor para Brasília? Ele é filho de uma família de médicos consagrados. Ela era bibliotecária do Senado, mas tinha a opção de continuar no Rio. O avô do ortopedista, Manoel Venâncio Campos da Paz, exerceu a medicina tão intensamente quanto praticou a política. Foi um dos fundadores da Aliança Libertadora Nacional (ALN), movimento comunista criado em 1935 para fazer frente ao avanço do fascismo no Brasil. O neto Campos da Paz conta que o avô está citado em Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos.

O que trouxe o casal para Brasília foi o desejo de fundar o próprio futuro. ;Eu era a quinta geração de médicos, praticamente todos eles professores de medicina. Minha mulher e eu vimos em Brasília a oportunidade de a gente se realizar não pelo nome. No Rio, meu nome era nome de praça, de rua. Na Faculdade de Medicina, eu ia fazer prova e o sujeito, em vez de me perguntar sobre a matéria em questão, começava a perguntar como vai o fulano, o beltrano e me mandava embora. Se eu ficasse lá, ia ser mais um por causa do nome, não por causa de uma realização pessoal.;

Não bastava, porém, começar do nada numa cidade nascente. Aloysio Campos da Paz logo percebeu que aquele volume insano de trabalho ;era um aventureirismo incompatível com o futuro;. Se ele quisesse construir uma carreira médica como a que acabou construindo, teria de aprender com os grandes. Foi fazer pós-graduação na região que havia acumulado grande experiência em ortopedia por conta da Segunda Guerra Mundial, a Grã-Bretanha. ;Todos os grandes cirurgiões tinham sido cirurgiões de guerra e foi lá que surgiram coisas como prótese total do quadril, cirurgia da mão, e que depois vieram a ser vanguarda.;

Se estava no topo do mundo da pesquisa de sua área de conhecimento, por que voltar? E por que voltar para Brasília? ;Porque era minha terra, já era minha terra. Fui pra voltar. A decisão já estava tomada. Ficou bem claro pra mim que toda aquela aventura do início seria incompatível com a responsabilidade que eu teria no futuro;. Foi pensando em Brasília que Campos da Paz percorreu 16 cidades da Grã-Bretanha em busca do conhecimento. ;Meu chefe sabia que eu ia voltar, tanto que ele investiu muito em mim pra que eu pudesse construir a base. O volume de informações que recebi, seja sob o ponto de vista técnico, seja de gestão, seja sob o ponto de vista filosófico, foi enorme para um garoto de 26 anos.;

Solidão, sempre
O golpe de 31 de março de 1964 já estava se aproximando quando Campos da Paz voltou a Brasília. Mas nem a interrupção brutal da utopia brasileira atrapalhou o projeto de futuro de Campos da Paz. Porém, a cidade tinha se transformado no quartel-general do regime de exceção. Circunstância que impunha um isolamento intelectual a quem não se alinhava com o pensamento de direita. O ortopedista se define ideologicamente como sendo de esquerda, ;mas não essa esquerda burra;. Indagado se não se sentiu sozinho em determinado momento, ele retruca imediatamente: ;Em determinado momento, não. Sempre. O país não é propriamente inteligente.;

Da solidão do Planalto Central, Campos da Paz cultivou ao longo de meio século interlocutores de primeira grandeza. Cita alguns: Leandro Konder, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, Lucio Costa. ;Tive oportunidade de conhecer e conviver com figuras notáveis.; Mais que isso, Brasília ensinou o carioca a mudar a trajetória do olhar. ;Meu horizonte era o Oceano Atlântico, eu vivia de costas para o país. Passei a conhecer o Brasil. O significado de Brasília foi esse: o Brasil dava as costas para o Brasil. A relação era com o oceano e com o que estava do outro lado do oceano. Não era com o país. Brasília obrigou o Brasil a se interiorizar, foi esse o grande significado dela, a conquista do país.;

Cinquenta anos depois, o surgimento ;de uma classe média sem valores; permitiu que Brasília perdesse o fio da utopia. ;O que é que o empresário brasileiro desses que emergiram aí mais quer? Quer abrir um escritório em Miami;. Aloysio Campos da Paz diz que seus interlocutores sabem qual foi o significado de Brasília para o Brasil. ;Nenhum deles é paulista;, brinca. ;Paulista tem grande dificuldade de entender qualquer coisa que não seja a Avenida Paulista.;

Aloysio Campos da Paz tem 75 anos, é casado com a candanga Elsita, tem três filhos, quatro netos e está escrevendo um livro de memórias. É fundador e atual cirurgião-chefe da rede Sarah de Hospitais de Reabilitação.

Na estante de sua sala, ergue-se em posição vertical o volume Registro de uma Vivência, autobiografia de Lucio Costa, edição esgotada.

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