Cidades

Colecionador de objetos guarda valiosas peças da história da capital

Entre elas, uma estante-bar que se sustenta em colunas do Palácio da Alvorada

postado em 09/06/2010 08:14
As colunas delgadas do Palácio da Alvorada estão para Brasília moderna como as colunas rotundas estão para a Grécia antiga. Compõem o brasão do Distrito Federal e, antes mesmo de a cidade ser inaugurada, já haviam sido reproduzidas nas fachadas e varandas das casas populares Brasil afora, na dianteira da Rural Willys da década de 1960, no logotipo do Uno Mille da década de 1990. O losango de lados côncavos colados um ao outro por um dos vértices dá a impressão de redes penduradas na varanda colonial e transmite a ilusão de que o palácio de vidro pousa levemente no cerrado.

Uma das mais importantes invenções de Oscar Niemeyer saiu do Alvorada e foi sustentar um móvel em madeira, uma estante-bar de pés palito, possivelmente fabricado na década de 1960, mas inspirado no mobiliário da década de 1950. O moveleiro desconhecido que criou a peça usou madeiras nobres brasileiras; pau-ferro, peroba e jacarandá (matéria-prima hoje ameaçadas de extinção), madeira laminada, tranças de fios de nylon e a arte da marchetaria(1). Desenhou uma estante-bar com quatro prateleiras e um baú fechado com porta frontal. Esse bar é sustentado por oito colunas do Alvorada. E a porta tem desenhos incrustados em madeira dos Dois Candangos, do Congresso, da Catedral, do Rito dos Ritmos, escultura de Maria Martins, e das Iaras, de Alfredo Ceschiatti, e novamente das colunas.

A peça tem uma irmã gêmea. As duas são do mesmo colecionador, Rauf Carneiro Filho, que se dedica a recolher e restaurar objetos e obras de arte das décadas de 1950 e 1960. O empresário comprou a primeira estante-bar com as colunas delgadas em 1991 num antiquário do Rio de Janeiro ;Quando a encontrei, fiquei totalmente maluco. E era caro (R$ 3.900), mas nem pensei duas vezes).; A segunda foi comprada cinco anos depois. Uma prima de Rauf a encontrou, casualmente, num grande site de compra e venda.

A ficha técnica da estante-bar se perdeu na história. Rauf não sabe quem é o autor, mas suspeita que foi um móvel feito para exposição. ;Certamente não foi produzido em série, não teria apelo comercial. Na época, deveria ser totalmente cafona. Ninguém compraria. Hoje, sim, ganhou outro status, representa um símbolo do século 20. Brasília, o símbolo do século que passou;. O colecionador calcula que a peça tenha sido feita em meados da década de 1960, quando boa parte das obras reproduzidas no móvel já estava pronta.

A estante-bar que se sustenta em colunas do Palácio da Alvorada ficou exposta numa loja do Casa Park, como uma entre incontáveis homenagens dos brasilienses aos 50 anos da cidade. O móvel inspirado em Brasília é a peça mais importante da coleção do empresário, dono de duas lojas no shopping Casa Park, uma de tapetes, outra de móveis das décadas de 60 e 70. O interesse pelos objetos datados nasceu quase junto com a cidade. Rauf é filho de um dos primeiros médicos de Brasília, que chegou aqui em 1958. O avô dele, Edmundo Eduardo Rappel, veio com Ernesto Silva, em 1956. O candanguinho nasceu dois anos e três dias depois da cidade, a 24 de abril de 1962.

Viveu infância de Plano Piloto. Estudou na 308 Sul ; de onde se lembra das salas verde, amarela, rosa e azul, cada uma delas com mesinhas de fórmica nas cores respectivas. Na Escola Classe 107 Sul, Rauf experimentou a convivência democrática entre os diferentes, como propunha Lucio Costa. ;Era uma relação de proximidade com a diferença social. Era o filho do médico com o da empregada, do porteiro. Isso me fez entender o humanismo. Me lembro de ter dado a minha sunga para o filho do porteiro tomar banho na piscina.;

O candanguinho que, adulto, passou a colecionar os móveis de sua infância, conserva a memória de como foi a infância da primeira geração nascida no Plano Piloto. ;A gente punha papagaio no dedo na W-3 Sul, matava bacurau, um pássaro preto, de bico grande, feio. Naquela época, a gente chamava mulher feia de bacurau.; Rauf Filho correu dos graminhas, os funcionários do Departamento de Parques e Jardins da Novacap, que vigiavam a grama e os moleques que arrebentavam os aspersores para ver um jorro d;água, uma cachoeira invertida, surgir debaixo do bloco. Perto da adolescência, a brincadeira dos primeiros filhos de candangos era surfar no teto dos elevadores dos blocos das superquadras.

Não bastava, porém, guardar as intangíveis reminiscências. Era preciso transformá-las em objetos, ocupar o espaço físico, perenizar o passado. O ex-menino Rauf Carneiro coleciona também pequenos objetos que têm a marca da nova capital. Um relógio de madeira em forma de Congresso Nacional. Um outro, sustentado por duas colunas do Alvorada e acompanhado por uma Catedral estilizada. Tudo em madeira. Pratos decorativos com desenhos de palácios de Brasília. Uma flâmula comemorativa da inauguração. Duas bombonieres, uma delas fabricada nos Estados Unidos e enfeitada com; as colunas do Alvorada. Cinzeiros, canecas, copinhos, garrafinhas, pequenas lembranças fabricadas nos anos 60 em comemoração ao surgimento de uma cidade moderna no Planalto Central do Brasil.

Além do bar, Rauf guarda também uma mesinha de televisão, do mesmo modo sustentada pelas colunas etéreas de Oscar Niemeyer. São objetos que têm as características próprias do mobiliário da década de 50. E marca indelével: a leveza, inspirada nos três pés palito do módulo lunar que registram o começo da era espacial. O colecionador avisa que o bar e a mesinha com as colunas do Alvorada não estão à venda. ;Pelo contrário, eu vendo até o corpo pra ter objetos do começo de Brasília.;

1 - Marchetaria
A arte de incrustrar desenhos de madeira em madeira vem dos egípcios antigos. Foi muito usada entre as décadas de 40 e 50. Depois, ficou cafona. Hoje é peça de antiquário.

Entre elas, uma estante-bar que se sustenta em colunas do Palácio da Alvorada

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