Cidades

Bravos candangos: Cidade das ambições

A história de Joaquim José Vieira, o goiano que aos 15 anos deixou a roça e veio a pé para Brasília. Caminhou 350km para encontrar o lugar com o qual havia sonhado desde criança. Mas o que achou não era nada daquilo

postado em 12/06/2010 08:19
O menino-lavrador que nunca havia saído da roça vivia sonhando com um lugar bem longe para onde iria um dia. Sonho sonhado de olhos fechados. Joaquim José Vieira (;quase igual a Tiradentes;) já era um adolescente quando ouviu no rádio a notícia de que a nova capital do país estava sendo construída a 350km do lugar onde morava, Posse (GO). Ele se juntou a três conterrâneos e desceu a pé o nordeste goiano rumo a um quadradinho que havia muito estava riscado no mapa do Brasil. Foram sete dias a pé, do primeiro ao sétimo dia de janeiro de 1957.

Em 1957, Joaquim José caminhou sete dias, a partir de Posse, em Goiás, para encontrar a nova capital, uma cidade ainda em construção, e, ao chegar, não gostou do que viu. Hoje, ele garante: Se alguém falar mal de Brasília, eu brigo.Quando o menino chegou à cidade sonhada, não era nada daquilo. ;Não gostei. Não era o lugar que eu sonhei. No meu sonho, a cidade tinha prédios e prédios, e eu não conhecia o que eram prédios. Ouvia os outros falar de prédio, mas não tinha conhecimento.; O que encontrou foi um clarão no meio do cerrado e um palácio de tábuas, o Catetinho. ;Não vi nenhuma casa de telha. As casas eram feitas de lona e de tábua, era só o que existia.;

Se não era a cidade dos sonhos, Joaquim poderia ter pego o caminho de volta. ;Não era a cidade que eu queria. Não teve uma qualidade boa pra eu me enfeitar e dizer ;é aqui mesmo que quero ficar;, mas por precisão de vida achei por bem ficar;. Foi trabalhar no que sabia fazer, na lavoura. Começou plantando hortaliças para os japoneses. ;Naquele tempo, Juscelino abriu um consulado por causa daquelas guerras do Japão, aquela coiseira toda e então os japoneses se espalharam igual pipoca pelo Brasil;, diz Joaquim, com seu jeito peremptório de quem acredita no que está falando. A primeira plantação de hortaliças na nova capital foi feita nas proximidades do Catetinho, conta o goiano-sonhador. ;A terra era boa. Era à beira de um córrego.;

Até ali, nenhuma grande diferença no ritmo de trabalho. O adolescente continuava a trabalhar ;a qualquer hora do dia ou da noite. Japonês gosta de gente trabalhadora. Japonês nunca gostou de gente preguiçosa e desonesta;. Mas Joaquim estava de olho na Novacap. Queria um emprego ;fichado;. Já havia aprendido que carteira assinada era garantia de alguma segurança. Não muito tempo depois, descobriu que não era bem assim. ;Emprego não eleva ninguém. Emprego serve pra transparecer, mas emprego nenhum dá bem-estar financeiro pra ninguém, a não ser que a pessoa faça suas defesas.; Joaquim fez as deles: ao mesmo tempo em que trabalhava fichado, cuidava de um bar, desde o tempo em que morou no Acampamento da Rabelo, na Vila Planalto. Há mais de 40 anos, vive no Gama.

O garoto que havia aprendido a desenhar o nome, que andava a cavalo léguas e léguas para ouvir as notícias no rádio, que guardava qualquer pedaço de jornal só por causa das fotos, foi trabalhar de entregador de material de construção, mas não gostou do ofício. ;Vou ter de inventar uma profissão, isso que estou fazendo não é profissão.; Foi então que ouviu no alto-falante da Cidade Livre o anúncio de vagas de armador, operário que monta as ferragens de uma obra de construção civil. ;Achei o nome bonito. Fiquei observando o que era um armador e achei aquilo importantíssimo.;

Não demorou para o menino descobrir que o candango era um ambicioso. ;Lá [em Posse] o povo não tinha ambição. E aqui você tinha que ter ambição, tinha que crescer o seu lado porque senão você não chegava em nada. Eu já tinha ambição. Já tinha sonhado que existia coisa melhor, que iria morar num lugar diferente, mas não sabia nem onde nem como.; Joaquim também percebeu que, ao contrário da vida no interior goiano, na nova capital ;ninguém se envolvia com a particularidade de ninguém, cada um queria fazer o seu. De tanto ver o outro fazer, você queria fazer melhor ainda. Era um jogo de vontade. Ninguém pensava em maldade, pensava em fazer a sua parte.;

Fé no sonho
No princípio, Joaquim foi movido pela ambição, a sua somada à dos que o rodeavam. Mas, como muitos deles, não acreditava que daquela algaravia toda pudesse surgir uma cidade real. Quando as obras começaram a se firmar no horizonte, passou a acreditar no sonho. ;Se aqui é o Palácio do Planalto, se ali é o palácio disso, se acolá é o palácio daquilo, só pode ser coisa de boa qualidade. Depois, comecei a ver o nome das coisas. Antes, eu não tinha noção de coisa nenhuma. Eu tinha vindo do nada, e se eu vim do nada, eu nada sabia.; Mais um pouco, e o goiano de Posse começou a defender Brasília do ataque de quem não queria a mudança da capital. ;Eu tinha discussões grandes;, diz ele, reforçando bastante a pronúncia do ;graaaande;.

Enquanto exercitava a ambição, Joaquim José se engraçava com as moças da nova capital, do jeito que era possível, dadas as circunstâncias. ;Aqui ninguém se casava de jeito nenhum. Aqui não tinha moça pra casamento. Quem vinha pra cá vinha sobressaltado. ;Eu não te conheço, você não me conhece, ninguém conhece ninguém;. O que mais se casou em Brasília ; posso falar? ; foi puta. Mulher que vinha de tudo quanto é lugar. Muitas delas se casaram com pessoas de bom valor porque não achavam companheiras da medida que fosse a eles;, relata o goiano, com seu jeito muito particular de compor as frases.

A família
Depois de olhar de lado, para conferir se a mulher, Idália, não estava ouvindo, ele conta: ;Achei uma moça muito bonita, mas não me casei com ela porque eu não era muito chegado a casamento desse jeito. Ela se chamava Terezinha, era nova e bonita, era muito bonita. Passei muito com ela. Ela queria ter um companheiro, como na música: ;Eu vou tirar você desse lugar;;;. Joaquim deixou a moça da Placa da Mercedes, como era conhecida a zona boêmia da Cidade Livre, e algum tempo depois se casou com uma baiana, Idália. ;Já fiz seis filhos nessa mulher e está tudo de maior, gente muito inteligente. Dei condições pra cada um sobreviver.; O casal tem 12 netos, e três imóveis no Gama, um deles um prédio de dois andares, no qual, no térreo, os dois cuidam de um bar.

O menino que sonhou com uma cidade para abrigar suas ambições está com 69 anos. Já fez ponte de safena, mamária e radial, já perdeu um prédio inteiro que ele construiu e que afundou no terreno, continua a tocar um bar no Setor Sul do Gama, conhece várias capitais brasileiras, mas nenhuma tira dele o amor por Brasília. ;A hora em que saio da divisa, uma coisa me puxa de volta. Não consigo passar mais de três meses fora de Brasília. Quando volto, me alegro todo.; Mas de uma década para cá, Joaquim não tem estado muito satisfeito com a cidade. ;Passei a não gostar das autoridades de Brasília, da incompetência, da má qualidade e do desrespeito à população. A matéria-prima é boa, alegre e satisfeita. E se alguém falar mal de Brasília, eu brigo.;

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