Guilherme Goulart
postado em 13/06/2010 08:30
;Eu sonhei hoje com um gato caindo do telhado. Se caiu, é porque é burro. Então, anota aí: é burro na cabeça;, diz o cliente de um dos apontadores do jogo do bicho da área central de Brasília. O senhor de cabelos brancos e pasta preta presa ao braço escreve em um bloquinho o primeiro palpite. O apostador, um jovem vestido de camisa e calça social, vai além. Pede que ele conclua a aposta cercada no cachorro. O apontador fecha o número e passa o telefone para conferência do sorteio. Entrega ainda o comprovante da jogatina: um papel com o nome da loteria fictícia e a tradicional mensagem ;vale o que está escrito;.A cena descrita acima ocorre com frequência no Setor Bancário Sul e comprova que a atividade irregular raramente é coibida no Distrito Federal. Os flagrantes da contravenção podem ser vistos a qualquer hora em todas as cidades da capital do país. Em quatro dias de reportagem, o Correio escolheu seis localidades para acompanhar o esquema de apostas ilegais: Plano Piloto, Núcleo Bandeirante, Taguatinga, Ceilândia, Vicente Pires e Cruzeiro. Os apontadores atendem centenas de pessoas ao longo do dia. Alguns contam com sistema eletrônico.
Apesar da ilegalidade do negócio, a maioria dos envolvidos não se preocupa em esconder a atividade. Os pontos são fixos. Cada um fica responsável por um determinado local, onde passa manhãs, tardes e noites a anotar os jogos. A depender da quantidade de pessoas a circular pela região, formam-se filas ao redor dos apontadores. Alguns montam quiosques e usam cadeiras de braço ou mesas de plástico para preencher os blocos, impressos em gráficas e com espaços para as sequências numéricas características do jogo do bicho. A arrecadação do dinheiro é quase ininterrupta.
Um dos espaços mais concorridos a serviço dos bicheiros fica no Setor Bancário Sul. Um senhor cuida de dois locais. O que fica em frente ao Edifício São Paulo pode ser reconhecido por uma casinha envidraçada. É onde estão em exposição vários blocos de anotação, e, por meio do vidro, os clientes podem conferir os resultados do dia. Se o apontador não está por ali, é bem provável que esteja logo abaixo, na Praça dos Tribunais. Ele mantém uma cadeira de braço em frente ao Superior Tribunal Militar. É só chegar e fazer uma fezinha, como se diz na linguagem do jogo.
A organização dos bicheiros da região conta inclusive com serviço telefônico 24 horas. Por meio de uma gravação, o apostador confere os resultados dos últimos sorteios (leia acima). Eles ocorrem quatro vezes ao dia: 11h, 14h30, 18h30 e 21h30. Durante a reportagem, um homem se incomodou com fotografias e vídeos feitos pelo Correio nas proximidades da casinha envidraçada. Ao ser perguntado se ocorria ali jogo do bicho, negou. Limitou-se a dizer que quem lá trabalha vende apenas loterias oficiais do governo.
Além do Setor Bancário Sul e do Setor Comercial Sul, há apontadores regulares na Esplanada dos Ministérios. Eles circulam ao redor dos edifícios públicos, mas mantêm as bancas na parte de baixo, perto dos anexos. Um deles usa uma picape verde como estrutura para o jogo do bicho. Não é segredo para quem circula pela região. A equipe do jornal passou pela região central de Brasília por três dias. Enxergou duplas de policiais militares em todos os locais, mas não testemunhou nenhuma abordagem contra a jogatina.
Máquinas
No Núcleo Bandeirante, chama a atenção a informatização do jogo do bicho. Enquanto na área central de Brasília ainda se usam bloquinhos e papel-carbono para a marcação das apostas, os apontadores da cidade atestam os palpites com o auxílio de máquinas portáteis. Os equipamentos são idênticos aos dos cartões de débito e de crédito do comércio formal. Contam ainda com uma impressora. O Correio teve acesso ao recibo de um jogo eletrônico depois de sorteados os números vencedores. Consta o nome da mesma loteria fictícia dos boletos entregues no Setor Bancário Sul.
Uma mulher comanda uma banca no mercado local. Passa o dia com um desses aparelhos na mão. Ela conversou rapidamente com a reportagem, mas evitou fotos e gravações. Disse que vive do jogo do bicho, que lhe proporcionou a compra de um apartamento e um carro. ;Atendo todo o Núcleo Bandeirante;, avisou. A clientela dela faz fila para garantir uma aposta. Alguns motoristas nem descem do carro para arriscar dinheiro em um dos 25 animais listados pela jogatina. O trabalho dela é acompanhado ao longe por olheiros.
Outro ponto de bastante movimentação fica no centro de Taguatinga. Na altura da C8, um apontador usa a entrada de um edifício para organizar uma banca. O homem de cabelos brancos passa o dia sentado em uma cadeira em frente à escadaria do prédio. Formam-se filas em frente ao responsável por receber os palpites dos clientes. O negócio também conta com vários olheiros, que se revelam atentos a qualquer presença estranha ao comércio.
O Correio ligou para o telefone celular do responsável pela jogatina no local. É o mesmo número que ele fornece aos apostadores para a conferência dos resultados. Ele, porém, não quis dar entrevistas. Além da área central da localidade, a reportagem flagrou a contravenção na QNM 32/34. A atividade irregular também ocorre no Cruzeiro, no centro comercial Cruzeiro Center. Mesas de plástico de bares locais e bancos de concreto servem como banca para uma apontadora. Mais uma vez cenas de filas ao redor do jogo do bicho se mostram frequentes.