Começa o horário do intervalo em uma escola de ensino fundamental de Santa Maria. Gritaria, corre-corre, grupinhos de meninas de um lado e de meninos do outro. Um olhar mais atento, porém, aponta para um garoto do 6; ano rodeado de alunos mais velhos, todos do 9; e último ano do colégio. Eles o erguem pelos pés, mãos e braços e passeiam, rindo, pelo pátio. Só largam o menino de 11 anos depois da intervenção de uma funcionária. A criança, visivelmente sem graça, olha com vergonha ao redor e tenta se recompor. Reclama em voz baixa e dá a entender que a humilhação virou rotina.
A exposição sofrida pelo estudante brasiliense tem nome: bullying. E o Distrito Federal lidera, no Brasil, esse tipo de abuso repetitivo, segundo pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os envolvidos na Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar ouviram em 2009 alunos das redes privada e pública de 6.780 instituições de ensino das 27 capitais da Federação. Todos do 9; ano do ensino fundamental. Do universo candango, 35,6% dos entrevistados admitiram sofrer ridicularizações no ambiente escolar (leia arte). Belo Horizonte e Curitiba aparecem em seguida.
Para realizar o estudo, o IBGE pediu que meninos e meninas respondessem à seguinte questão: Nos últimos 30 dias, com que frequência algum dos seus colegas de escola te esculacharam, zoaram, mangaram, intimidaram ou caçoaram tanto que você ficou magoado, incomodado ou aborrecido? Os alunos tiveram três opções de resposta. Dos estudantes do DF, 29,1% confirmaram sofrer bullying raramente ou às vezes, enquanto 6,5% admitiram ser vítimas da perseguição por parte dos colegas quase sempre ou sempre. Participaram do levantamento 2.970 adolescentes de 54 escolas e 94 turmas da capital federal.
O garoto de 11 anos matriculado no ensino fundamental público de Santa Maria está entre os que experimentam com frequência o assédio. Na última quinta-feira, a brincadeira de mau gosto testemunhada pelo Correio se revelou como mais uma entre as mais variadas formas de humilhá-lo diante dos demais. Os responsáveis pela agressão são sempre os mais velhos. ;Todo dia isso acontece. Penso às vezes em não vir mais para a aula. É muito chato. A gente reclama, mas não muda nada;, lamenta o menino franzino.
Assim como ele, muitos alunos do 6; ano, a antiga 5; série, aparecem como alvos preferidos das turmas mais avançadas. Os mais novos não escapam das gozações. A reportagem conversou com pelo menos 10 deles. Todos tinham alguma história desagradável para contar. ;A 5; série sofre. Eles sempre jogam a gente na lata do lixo ou ficam dando totozinhos (rasteiras). A gente se sente humilhado;, afirma um estudante de 12 anos. Outro colega de 11 anos caiu de cabeça no chão depois de derrubado. ;Eu bati a cabeça e acabei indo para a diretoria. Foi muito ruim. Até pedi para a minha mãe me mudar de escola;, explica.
Inferiorizado
A pesquisa também mediu o bullying por tipo de escola e por sexo. Quase 40% dos alunos candangos vítimas dos abusos no ano passado eram de instituições particulares. E 34,6%, matriculados na rede pública de ensino. Ao conversar com garotos do 9; ano do ensino fundamental de um colégio privado da Asa Norte, o Correio descobriu diferenças em relação às humilhações praticadas no centro de ensino de Santa Maria. Ficou evidente que as brincadeiras de mau gosto dificilmente vão além de ameaças e do assédio psicológico. Agressões físicas são raras. Pelo menos dos portões para dentro.
No caso do grupo de cinco meninas e dois meninos ouvidos pela reportagem, todos reclamaram de dois colegas de mesma idade e da própria turma. O alvo deles são normalmente os mais diferentes física ou culturalmente. ;Eles sempre dão um jeito de debochar de alguém. Talvez porque ;se achem; só porque moram em um bairro melhor do que os dos outros. Ou incomodam uma menina porque ela tem olhos puxados ou uma outra que é bastante tímida. Às vezes, isso magoa. E a gente, para não criar confusão, acaba ficando quieta;, conta uma estudante de 14 anos.
Um garoto da mesma idade reagiu mal a uma das provocações dos dois colegas. Fez uma pergunta durante a aula e acabou alvo de chacotas de um deles. ;Me senti humilhado, inferiorizado. Isso acaba inibindo a gente;, revela. Em outra ocasião, mais uma intervenção da dupla fez com que a professora de inglês suspendesse a exibição de um vídeo passado em sala de aula. ;Ela (a professora) criticou o gesto deles e toda a turma acabou punida;, reclama outra aluna. Duas jovens do ensino médio também disseram que são comuns as provocações contra fãs de mangá, histórias em quadrinho feitas com estilo japonês.
Vaidade
As estudantes candangas sofrem menos agressões e humilhações do que os meninos. Segundo os dados levantados pelo IBGE, 31% delas reconheceram sofrer o assédio no ambiente escolar ; 26,7% raramente ou às vezes e 4,3% quase sempre ou sempre. Já 41,3% dos garotos entrevistados se viram vítimas de bullying. Ao contrário deles, elas raramente partem para a agressão física. As humilhações ocorrem com mais frequência por questões de vaidade, que envolvem roupas, cabelo e maquiagem, e também por ciúmes.
Duas colegas de turma do 7; ano do ensino fundamental de uma escola pública do DF ouvidas pela reportagem reclamaram das ameaças diárias praticadas pelas alunas mais velhas. ;Elas ficam falando mal do nosso cabelo ou não nos deixam chegar perto dos meninos mais velhos. Às vezes, até partem para a agressão;, revela uma delas, de 12 anos. A outra garota diz que o segredo é não dar muita atenção às brincadeiras de mau gosto. ;O melhor é não dar bola. Se a gente se mostra incomodada, a coisa piora e aí, sim, elas não largam do pé;, ensinou a garota, também de 12 anos.
Depoimento
Sofrimento frequente
;Nós sofremos nas mãos deles. O povo da 8; série fica dando totozinho, dá cascudo, joga casca de mexerica nos outros. Muitas vezes, eu não venho à aula por causa disso. É ruim, muito ruim. Hoje, os meninos da 8; série pegaram no pé de um garoto menor e o levantaram. Direto, eles nos jogam no lixo. Já me senti humilhado porque fica todo mundo rindo. Eles batem porque a gente é pequeno. E não adianta reclamar com os professores. Muitos deles não acreditam. Acho que quando a gente crescer e ficar mais velho, não vamos fazer esse tipo de coisa.;
; Estudante do 5; ano, de 11 anos, de uma escola pública de Santa Maria
EDUCAÇÃO
Combate ao bullying na pauta
Governo do DF e sindicato das escolas particulares desenvolvem ações para acabar com as ofensas e agressões nos colégios da capital
Guilherme Goulart
O combate ao bullying no Distrito Federal é feito dentro da sala de aula. Iniciativas das redes de ensino pública e particular candangas revelam que não existem tabus nos debates e ações promovidos para debelar o problema. A Secretaria de Educação do DF, por exemplo, criou conselhos de segurança nas escolas públicas como estratégia para identificar e minimizar as mais diferentes formas de violência praticadas no ambiente escolar. Entre elas, as humilhações e provocações praticadas entre crianças e adolescentes.
Esses conselhos contam com a participação de diretores, professores, orientadores educacionais, pais e estudantes. Em 305 das 600 instituições públicas na capital do país, os grupos já foram instalados. ;Os conflitos existem nas escolas. É objetivo dos conselhos fazer a mediação deles e discutir estratégias. Uma das atribuições é justamente identificar o bullying, uma violência que ocorre entre iguais. Ou seja, de aluno para aluno;, explica a subsecretária da Educação Integral da Secretaria de Educação do DF, Ivanna Sant;Ana Torres.
Reuniões, debates e palestras sobre o tema ocorrem com frequência nos colégios em que os conselhos estão em funcionamento. O trabalho dos grupos também se faz em parceria com outros agentes públicos, como a Polícia Civil, a Polícia Militar e a Secretaria de Saúde do DF. ;Esse tipo de problema deve ser trabalhado em casa e na sala de aula. Por conta disso, acho que não somos a capital brasileira do bullying, como diz a pesquisa do IBGE. Talvez sejamos a unidade da Federação que mais discute o assunto e, assim, conhecemos mais o termo;, avalia Ivanna.
O Centro de Educação Infantil (CEI) 210 de Santa Maria aparece como uma das instituições públicas do Distrito Federal com o conselho de segurança estruturado. As reuniões do grupo ocorrem às quartas-feiras à noite, nas dependências do próprio colégio. ;A diretoria, os professores e os orientadores educacionais trabalham diretamente com os pais os problemas dos filhos, como dificuldades na fala, sexualidade e limites. Mas também combatemos o bullying, que existe na educação infantil;, explica a diretora do CEI 210, Lidi Ane Oliveira Nascimento.
Um dos casos recentemente discutidos e trabalhados pela escola é o de um menino de 4 anos. O garoto tinha dificuldades em conviver com negros, além de evitar objetos de cor preta. A orientadora educacional Ione Patrícia Ferreira ajudou a contornar a situação a partir do desenvolvimento de várias atividades. Segundo os professores e os diretores, a intervenção e a mudança de comportamento da criança ocorreram antes mesmo de os colegas negros se sentirem rejeitados ou excluídos. O resultado foi percebido em uma festinha, na qual o garoto dançou com uma professora que pintou o rosto com tinta preta.
Em Santa Maria, a Diretoria Regional de Ensino (DRE) prevê palestras sobre o bullying em todos os colégios da cidade. Mas também admite dificuldades nas unidades que abrigam muitos alunos, como é o caso da escola de ensino fundamental onde os alunos do 6; ano se tornaram alvos dos mais velhos. ;O bullying exige intervenções constantes. E o trabalho de prevenção precisa ser desenvolvido desde a educação infantil, e sempre dando atenção aos pais;, afirma a chefe do Núcleo de Monitoramento Pedagógico da DRE de Santa Maria, Flávia Maria Barbosa.
Atenção aos sinais
Especialistas e educadores concordam que pais e professores devem ficar atentos aos primeiros sinais de bullying. Desculpas para faltar às aulas, pouca motivação nos estudos e pedidos repentinos de mudança de sala podem revelar o problema (leia arte). Segundo Flávia Barbosa, quem sofre e quem pratica as brincadeiras abusivas e repetitivas têm perfis parecidos. ;As vítimas são normalmente os mais tímidos e mais pacientes. Os que praticam têm perfil de liderança, às vezes são mais fortes do que os demais;, descreve.
Para a socióloga Miriam Abramovay, o bullying é mais um dos fenômenos graves que ocorrem nas escolas do Brasil. Enquanto o termo virou conceito por conta de um estudo realizado na Noruega, no Brasil, explica a especialista, as relações de conflito ultrapassam as agressões verbais e ameaças. ;Classificamos três tipos de violência nos ambientes escolares brasileiros. Vão desde aquelas previstas no Código Penal até as que ocorrem no cotidiano, como um bate-boca, a pichação e o racismo;, detalha a coordenadora de pesquisa da Rede de Informação Tecnológica Latino-Americana (Ritla).
As dificuldades da vida escolar do país são descritas no livro Revelando tramas, descobrindo segredos: violência e convivência nas escolas, publicado pela própria Ritla em 2009. Além de Miriam, assinam a publicação Anna Lúcia Cunha e Priscila Pinto Calaf. ;Esses conflitos são problemas sociais e não individuais. O que temos de entender é que eles prejudicam a qualidade do ensino. É preciso adotar políticas públicas para solucionar essa problemática;, defende a socióloga, que estuda o assunto há cerca de 10 anos.
Denúncias
O bullying no DF também recebe atenção das escolas privadas. O Sindicato dos Estabelecimentos Particulares de Ensino do Distrito Federal (Sinepe-DF) faz treinamento e capacitação de educadores há oito anos. A entidade também organiza palestras. Foram quatro no ano passado em centros de ensino localizados fora do Plano Piloto. ;Estamos extremamente atentos. Não fazemos de conta que o tema não existe. As crianças devem ter informação até para poder denunciar;, alerta a presidente do Sinepe-DF, Amábile Pácios.
O incentivo às denúncias aparece no site do sindicato, responsável pela publicação de dois livros sobre o assunto. Na página inicial, há um cartaz da campanha do Disque 100, da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. Os atendentes recebem a comunicação de casos de violência contra crianças e adolescentes, como agressões físicas, verbais, psicológicas e morais e os repassam para os representantes do MP e do Conselho Tutelar da região. Não é preciso se identificar.
Caso de polícia
No mês passado, uma adolescente de 12 anos registrou ocorrência na Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA) por estar sofrendo bullying no Centro de Ensino Fundamental 24, em Ceilândia. Ela recebeu um apelido pejorativo dos colegas e a situação ficou fora de controle, chegando até a comunidade. Na época, a escola orientou a jovem a registrar o caso na polícia. Segundo o delegado Francisco Antônio da Silva, a ocorrência é curiosa por ser o primeiro caso nesse sentido apurado pela DCA.
Nesse mesmo centro de ensino de Ceilândia, localizado na QNQ 3, foi registrado neste ano outro caso de bullying. De acordo com o supervisor pedagógico do colégio, João Batista de Oliveira, trata-se de cyberbullying. ;Tivemos problemas entre alunas que se ameaçavam e se xingavam nas redes sociais;, explica. O supervisor disse que a questão foi resolvida após uma conversa entre as meninas. ;Agora, uma das envolvidas até está participando dos programas de conscientização;, comemora.
Peça de teatro
João de Oliveira lembra que, no ano passado, a escola promoveu uma série de palestras e atividades voltadas para o combate à prática de bullying e cyberbullying. ;Recebemos o programa Superação Jovem, da Fundação Ayrton Senna, que propõe que seja trabalhado o protagonismo juvenil. Vieram vários projetos e, entre as propostas, surgiu a discussão do bullying.;
Pesquisas com professores, alunos e servidores foram feitas antes de o programa ser realmente produzido. ;Os alunos prepararam uma peça de teatro. Na época, a situação ficou resolvida. Mas este ano já tivemos dois casos;, lamenta. Depois do cyberbullying e do caso que foi parar na polícia, a escola reativou o programa.