postado em 20/06/2010 08:36
Os caminhos de Roque José e Terezinha não se encontraram à toa. Há um universo de diferenças e semelhanças entre eles, a começar pelo contraste das idades: ele tem 36 anos e ela 72. Roque é pernambucano, Terezinha nasceu em Natal (RN). Os dois começaram a cantar e a tocar repente, o ritmo típico do Nordeste, ainda crianças, cada um na sua terra, sem saber que o outro existia. Quando Roque começou a descobrir a música, aos 5 anos, Terezinha já tinha 41, era viúva e mãe de 15 filhos.Ambos abandonaram o local onde nasceram para ganhar a vida. ;É importante lembrar também que a gente é do signo de leão;, acrescentou Roque, nos primeiros minutos da entrevista. Há quem pense que os dois são marido e mulher ou mãe e filho. Mas eles são simplesmente grandes amigos e repentistas. As duas vozes casam-se perfeitamente. O encontro dessa dupla parecia programado, uma jogada do destino. Mas acabou acontecendo bem longe do Nordeste, no Rio de Janeiro.
Somente em Brasília, onde vieram parar há 13 anos, os dois encontraram o que procuravam. Não o sucesso capaz de garantir um contrato com uma grande gravadora ou a participação em programas de TV. Ganharam, no entanto, os aplausos do povo nas ruas da capital. O endereço de Roque José e Terezinha hoje fica em Ceilândia, na Casa do Cantador. Mas não é difícil ser pego de surpresa nas ruas do DF e acabar envolvido com o som dos pandeiros e da entonação típica em praças do Setor Comercial Sul, do Setor de Diversão Sul e pela Esplanada.
Onde estão Roque e Terezinha está a alegria e um amontoado de gente. Há quem se apaixone e se deixe levar pela cultura nordestina, mesmo sem nunca ter estado por lá. A dupla interage com o público, faz piada musicada com a plateia e entre si. O sotaque típico permanece intacto. Assim como a simpatia. Os temas do repente variam. Vão da vida no sertão à política. Tudo na base da sátira.
O início
Mas essa história começou bem antes de eles ganharem as ruas do DF. Eram 10h de uma manhã de sol, há 13 anos, quando Roque José da Silva, à época um rapaz magrinho de 23 anos, chegou ao Rio de Janeiro, vindo de Chã Grande, em Pernambuco. Carregava com ele apenas a roupa do corpo e o sonho em dar certo na vida. Cansado de cortar cana, ele quebrou a foice que usava na lavoura e seguiu rumo ao Sudeste de carona na boleia de caminhões pau-de-arara. A vontade de fugir aumentou ainda mais com a morte da mãe. Não havia dinheiro sequer para pagar o enterro. Depois disso, a angústia que há muito batia na porta de Roque se instalou de vez. Para ele, a capital fluminense era mais do que a cidade maravilhosa. Era a oportunidade de esquecer o que vivera até ali.
No dia ensolarado em que Roque pisou pela primeira vez naquela terra, ele sentiu-se acolhido pelo som que vinha do meio de uma roda de pessoas. Ali estavam duas senhoras. Elas tocavam pandeiro e cantavam. Eram repentistas. Roque se aproximou e reconheceu o rosto de um de seus ídolos. Era Terezinha, uma das artistas de rua mais queridas de Natal nos anos de 1970 e 1980. Quando esteve no Rio de Janeiro, ela chegou a ser convidada para se sentar no sofá da apresentadora Hebe Camargo, fato do qual se orgulha, sem disfarces. ;Eu via ela cantar na televisão e pensava: ;um dia vou me encontrar com ela;;. Naquele dia, ela estava ali, diante dele. Tentava a vida ao lado da irmã, Lindalva.
O rapaz se aproximou e pediu para conhecê-la. Terezinha, acolhedora como toda boa nordestina, se dispôs a escutar a história do jovem. ;Eu cantei com ela, mostrei o que sabia fazer. Logo de cara, a embolada dela combinou com a minha. Foi maravilhoso;, relata Roque. Lindalva logo ficou enciumada. ;A gente (Terezinha e a irmã) brigava o tempo todo. Eu já queria trocar de dupla;, confessou Terezinha. ;Eu cantava desde os cinco anos, também fazia dupla com o meu irmão. Meu pai levava a gente de pau de arara para cantar em feiras como a de Caruaru. Mas a gente cantava com fome. O dinheiro não dava para nada. Terezinha se reconheceu em mim;, relembra Roque.
Desencontro
Terezinha é, na verdade, Otília Dantas Lima, mas só na Certidão de Nascimento. ;Imagina só que nome mais esquisito para uma repentista. É difícil, não é tão bom quanto Terezinha. Então troquei;, explica. A parceria entre ela ; uma senhora baixinha, vaidosa e ;arretada;, que gosta de combinar saia branca com blusa florida, sandália rasteira e embelezar o sorriso com batom ; e Roque José da Silva ;um rapaz de olhos miúdos, cabelos negros e pele morena queimada, de visual mais ;urbano;, que usa óculos Ray Ban e pochete ; prometia durar para sempre. Mas Terezinha decidiu vir para Brasília. ;O povo falava bem demais dessa cidade eu tive que conhecer;, lembra.
Mas Roque não podia viajar para longe, não tinha dinheiro. Seguiu para São Paulo, onde era mais fácil chegar. ;Lá, passei fome, comi do lixo. Encontrei uns rapazes que queriam me fazer artista. Mandaram eu pintar o cabelo de loiro e botar brinco. Um dia, a Lindalva ; a irmã ciumenta da Terezinha ; tava de passagem e me viu assim. Rápido ela deu um jeito de me mandar pra Brasília também;, conta.
Depois disso, eles nunca mais se separaram. A relação provoca ciúmes nas namoradas de Roque (sim, no plural) e nos amados que passaram pela vida de Terezinha. Roque ;se juntou; com sete mulheres e teve quatro filhos, dois deles já pensam em seguir a profissão do pai e estão a caminho do DF.
Terezinha casou-se aos 14 anos, ficou viúva três anos mais tarde e passou outros 20 com um namorado, com quem teve 15 rebentos. Mas se separou. Carrega no braço uma tatuagem com as iniciais de um dos homens que passaram pela vida dela depois disso. ;Tô velha, mas não tô morta, né?;, brinca. ;Isso é fogosa que você precisa ver. Meu irmão veio passar uns dias aqui e ela deu uns beijos nele;, entrega Roque.
Alegria
O clima entre os dois é de alegria o tempo todo. Roque agarra Terezinha, beija aquela que chama de ;minha veia;. Ela recusa os afagos, finge que não gosta do carinho e xinga ele de ;sem futuro; na hora de cantar o desafio do repente. ;Mas o nosso amor é igual ao de mãe e filho;, garante a repentista. ;Sem ela, eu não seria ninguém, não teria carreira como tenho hoje. Ela é a minha amiga e mãe;, declara-se.
Há dois anos, eles conseguiram gravar o primeiro DVD. O cenário não poderia ser outro: a Casa do Cantador, em Ceilândia. Tudo muito sem pompa e improvisado, como gostam Roque José e sua eterna Terezinha. Eles também são, com frequência, contratados para shows e até para cantar em sindicatos durante greves, como aconteceu na terça-feira última. ;Mas a gente gosta mesmo é da rua, do calor do povo;, diz Roque. Sorte dos brasilienses.
Música regional
O ritmo também é conhecido como desafio, porque cada cantador faz um verso e o outro deve responder, geralmente de forma provocativa, mas bem-humorada. Há dois tipos mais conhecidos: o de viola e o de embolada (com pandeiro), que é o gênero de Roque e Terezinha. Essa arte exige agilidade e criatividade e a origem da música remete aos trovadores medievais. Nela, há uma mistura de poesia, sons e muito improviso.