Cidades

Servidora ajudou a prender motorista alcoolizado que matou nora e neto em acidente

Agora, ela quer terminar a faculdade de direito para auxiliar outras famílias

postado em 27/06/2010 08:41
Não há barreiras para a força de Dulce Gonçalves da Fonseca. A mulher de aparência frágil, estatura baixa, calçada em sapatos cor de uva de estilo boneca, olhos azuis e cabelos loiros se transforma em uma fortaleza quando decide defender um ideal. Quando fala do acidente de trânsito que matou a nora, Ana Paula Soares, 22 anos, e o neto, o pequeno Lucas, 4, a voz doce de Dulce assume um tom firme e ecoa longe. Ao lutar por Justiça não apenas para si, mas em nome de todos aqueles que sofrem a dor sem fim de perder alguém amado para a violência, ela surpreende e emociona a todos. Amanhã (segunda-feira), o sofrimento de Dulce completa exatos dois anos. Mas a dor não veio sozinha, trouxe com ela um poder imenso de superação.

A servidora pública de 56 anos jamais vai esquecer o dia 28 de junho de 2008. Até então, ela, que é nascida em Pirenópolis (GO), morava com o filho, a nora e o neto, em uma casa confortável em Vicente Pires. A família planejava uma viagem à praia. Estava tudo acertado: eles sairiam no mês seguinte rumo ao litoral. Tudo mudou, no entanto, quando o motorista de um caminhão carregado com ossos de animais, que, segundo a polícia, dirigia sob o efeito de álcool, invadiu a contramão de uma das faixas da DF-190 ; via que liga Santo Antônio do Descoberto a Ceilândia ; e sepultou os planos e sonhos de toda uma família.

No carro, estavam o filho de Dulce, William Gomes da Silva, 32 anos, que dirigia o veículo; o filho dele, Lucas e a esposa, Ana Paula; a mãe dela, Nilma Soares, o sobrinho do casal, Luiz Henrique Soares de Souza, 2. Apenas William e Nilma sobreviveram à tragédia. Foi assim que terminou o que seria um animado passeio de fim de semana e começou a luta de Dulce. O acidente ocorreu quando a lei seca tinha apenas oito dias de vigência. O condutor do caminhão, Márcio Carlos Batista Fontenele, desceu do veículo visivelmente alterado, segundo testemunhas. ;As primeiras palavras ditas por ele diante do carro em chamas foram: Meu Deus! Isso tudo é culpa minha. Eu e minha pinga matamos eles;, relata Dulce. O motorista acabou na cadeia.

Sete dias depois de ser preso, Márcio estava prestes a voltar para casa. A ausência de antecedentes criminais, o fato de não ter passagem pela polícia e de ter permanecido no local da tragédia, pesaram em favor dele. Mas Dulce não permitiu. Ela ainda estava no Hospital de Base, dedicando cuidados ao filho e à sogra dele, que ficou com o rosto muito machucado, quando recebeu uma ligação de amigos avisando que o motorista seria solto. Naquele momento, Dulce sentiu o chão se abrir pela segunda vez. Entrou no carro e saiu do Plano Piloto rumo ao Fórum de Ceilândia, onde o processo corria. ;Eu cheguei lá em cinco minutos, não via nada na minha frente. Nunca dirigi tão rápido;, lembra.

Invasão
No fórum, a servidora pública encontrou-se com a filha Eliene Gomes da Silva, 36 anos. As duas quebraram todas as barreiras de segurança e invadiram a sala do promotor. Iniciaram um protesto solitário, mas barulhento e desesperado. ;A gente gritava de dor. Como aquele homem ia voltar para a rua e acabar com a vida de outras pessoas? Ia comemorar com cachaça. Eu disse ao promotor: ;se fosse alguém da sua família, o senhor ia sentir ou tudo isso seria só imagem de televisão?;.;

Minutos depois, uma funcionária da diretoria do fórum decidiu ouvi-las, assegurando que levaria o recado à juíza. ;Expliquei que três pessoas haviam morrido e outras duas estavam no hospital em estado grave;. A magistrada repensou a decisão e optou por não libertar o responsável por todo aquele sofrimento. Essa foi apenas a primeira vitória de Dulce. Durante alguns dias, ela percorreu as chácaras às margens da DF-190 e a cidade de Santo Antônio do Descoberto em busca de testemunhas da colisão. ;Alguém precisava ter visto o acidente. O carro pegou fogo e o meu filho só sobreviveu porque outras pessoas pararam e apagaram as chamas com vários extintores de incêndio. Onde estavam essas pessoas?;, perguntava-se.

Detetive
A mãe, sogra e avó estava ferida por dentro e percorreu casa por casa da região até encontrar quem procurava. Cinco dias depois, encontrou oito pessoas dispostas a colaborar. Uma delas dirigia o carro que seguia atrás do caminhão e viu a tragédia ocorrer.

O depoimento desse homem foi fundamental para a condenação do acusado de tirar a vida das duas crianças e de Ana Paula. ;O juiz se baseou no depoimento desse rapaz para condenar a primeira pessoa no DF por dirigir alcoolizada e tirar vidas. Ele contou toda a verdade: disse que o caminhão vinha pela contramão, em alta velocidade, desgovernado. E o motorista desceu sem saber nem o que tinha acontecido de tão bêbado.;

Mas a luta de Dulce não acabou na busca por testemunhas. Durante meses, ela reuniu documentos na tentativa de comprovar a gravidade do crime. Esteve na delegacia de Ceilândia que cuidava do caso e acompanhou todo o andamento do inquérito instaurado para apurar a responsabilidade pelas mortes. Estava presente até nas perícias. ;Anexei fotos da minha nora, do meu neto. Colhi depoimentos de parentes e amigos. Quis mostrar como a vida da gente tinha sido devastada;, detalha.

Certo dia, Dulce descobriu que, mesmo diante do resultado do bafômetro, que apontou concentração de álcool elevada no sangue, a carteira do motorista do caminhão não havia sido suspensa, como indica a lei seca (leia O que diz a lei). ;Fui uma detetive. A Justiça não vem para quem dorme. Eu andava com uma cópia da lei embaixo do braço. Entrei na delegacia e falei para o delegado: ;uma vida vale quanto? R$ 900 (multa prevista pela legislação)?;. Só então, cassaram a carteira do caminhoneiro;.

Para sempre
A batalha de Dulce trazia um agravante: antes do caso dela, nenhum motorista havia sido punido com rigor por beber, dirigir e, consequentemente, matar nas vias do DF. Os argumentos reunidos por ela para convencer autoridades a favor da condenação por homicídio doloso (com intenção de matar) não se esgotavam. ;Ele não tirou só a vida deles. Meu filho é um morto-vivo. Não vai a festas de criança, não consegue superar. Essa dor é perpétua. Um carro é uma arma e as famílias são as vítimas das vítimas.; Em 13 de novembro do ano passado, o juiz condenou o caminhoneiro Márcio Carlos Batista Fontenele, levado a júri popular, a 19 anos e seis meses de prisão em regime fechado, sem a possibilidade de recorrer em liberdade.

Apesar de ter conseguido o que tanto buscou, a mobilização de Dulce ainda não acabou. Ela quer mostrar a todos que a luta é válida. Ingressou na faculdade de direito e está cursando o segundo semestre. Ela pretende advogar em nome daqueles que têm a voz silenciada ou são intimidados por não conhecerem seus direitos. Associou-se também à Subsecretaria de Proteção às Vítimas de Violência (Pró-vítima). ;Eu nunca vou parar nem medir distâncias para ajudar quem passa por esse sofrimento.; Dulce quer acalmar também o coração daqueles que ainda não tiveram o mesmo êxito que ela.

;A impunidade é algo que enlouquece a gente. Conheci no Pró-vítima, o Kleber, pai do Patrick, que tinha sete anos quando morreu atropelado por um bêbado na calçada, em Águas Lindas, em 2008. Até hoje, não houve Justiça. O motorista que atropelou o menino anda pela rua normalmente e até zomba da família dele. O Kleber estava tão pertubado, que ficou vagando no meio do mato, todo sujo. Desapareceu. Eu também estaria assim se não tivesse visto a condenação. Vamos espalhar cartazes e procurar por ele;, afirma.

Várias outras famílias esperam por um pouco de alívio. Pedro Davison, 25 anos, o ciclista atropelado no Eixão; Pedro Gonçalves, 16, o adolescente que morreu na W3 Sul; A lista não termina. E é em nome deles, dos seus entes queridos e de muitos outros que Dulce grita por dentro. Em breve, com mais uma vitória: o diploma em mãos e a sensação de que vencerá sempre, para poder continuar de pé a cada novo dia.


O QUE DIZ A LEI
A Lei Federal n; 11.705/08, conhecida como lei seca, em vigor desde 20 de junho de 2008, fixou a tolerância zero à combinação álcool e volante. Quem desrespeita a norma é punido de duas formas. Quando o teste aponta até 0,29 miligrama de álcool por litro de ar expelido dos pulmões, o condutor recebe sanção administrativa, com multa de R$ 957, anotação de sete pontos na carteira e ainda está sujeito a ter suspensa a permissão para dirigir durante um ano. Se o teste aponta índice igual ou superior a 0,3mg/l de álcool, além da punição administrativa, o motorista responde criminalmente por dirigir alcoolizado. É detido e só sai da cadeia após pagar fiança, que varia de R$ 600 a R$ 2 mil. O teste do bafômetro revelou que o teor alcoólico de Márcio Fontenele era de 1,24 miligrama por litro de ar expelido pelos pulmões. Na avaliação de especialistas, a condenação do caminhoneiro por homicídio doloso é um marco importante para conter a impunidade nos crimes praticados no trânsito. A maioria dos casos é tratada como culposa (sem intenção de matar), com pena máxima de seis anos de reclusão.

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