Cidades

Contravenção em guerra: bicheiros e responsáveis pelas máquinas caça-níqueis travam disputa por território

Relatório de um dos setores de inteligência ligados à Secretaria de Segurança, ao qual o Correio teve acesso, mostra que bicheiros e exploradores de máquinas caça-níqueis disputam os melhores pontos principalmente no Plano Piloto. Esquema envolveria até mesmo policiais

Guilherme Goulart
postado em 04/07/2010 08:51
A luta pelo poder da contravenção alcançou o Distrito Federal. Os bicheiros e os responsáveis pelas máquinas caça-níqueis que atuam na capital do país travam hoje uma disputa por território em busca dos melhores pontos. Relatório policial obtido com exclusividade pelo Correio Braziliense aponta para uma guerra entre os dois grupos, principalmente na área central de Brasília. Os confrontos por conta do controle da região do Plano Piloto, alerta o levantamento, estão cada vez mais violentos, a exemplo dos que ocorrem com frequência no estado do Rio de Janeiro.

O estudo, realizado em 2009 por um dos setores de inteligência ligados à Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal, aprofunda as disputas entre os responsáveis pelo jogo do bicho e o bingo eletrônico a partir das identificações e do histórico criminoso dos supostos chefes da contravenção candanga. A principal delas envolve José Olímpio e um sobrinho de um famoso bicheiro carioca. ;A Asa Sul e a Asa Norte são o principal foco de exploração das máquinas de caça-níqueis de José Olímpio. Nesses locais, ele tem disputado espaço com o contraventor do jogo do bicho Cesinha;, revela o relatório.

Segundo a investigação realizada para a confecção do relatório, o embate envolveria ainda policiais brasilienses contratados por ambos os lados. Eles atuariam, por exemplo, em apreensões e operações direcionadas contra cada organização. ;Olímpio e Cesinha estão em rota de colisão e travando ;brigas; constantes, ao ponto de um mandar fechar o ponto do outro. Ambos os contraventores têm em sua folha de pagamento policiais que dão apoio às atividades ilegais. Os confrontos entre os dois grupos pelo controle dos pontos têm sido constantes e violentos;, explica o documento.

Um dos pontos do levantamento aproveita para mapear a exploração do jogo do bicho no Distrito Federal. A exploração da jogatina na capital do país, assim, estaria dividida entre três facções (leia a arte). Cada uma gerencia e administra a própria região, sem concorrência ou conflito de interesses. O bicheiro identificado como Alfinito aparece à frente de 10 localidades. Entre elas, Lago Sul, Núcleo Bandeirante e Cruzeiro. Cesinha comandaria seis cidades e toda a região do Grande Colorado. Já o grupo sob responsabilidade de Senhor Poti responderia pela contravenção em seis pontos.



O trabalho policial confirma também a relação dos chefes candangos do jogo do bicho com os do Rio de Janeiro. ;Todos os bicheiros, proprietários de banca de bicho em Brasília, também exploram essa atividade no estado do Rio de Janeiro, berço de suas atividades;, relata. Por conta do vínculo interestadual, o documento arrisca uma previsão pessimista para o futuro da segurança pública no Distrito Federal: ;Com essa guerra de ;maquineiros; e bicheiros, em pouco tempo Brasília estará nos mesmos moldes do estado do Rio de Janeiro;, pressupõe.

Em família
Outro ponto do relatório destaca a atuação específica do empresário de bingo eletrônico José Olímpio no DF. Além de listar uma série de processos, condenações e inquéritos, o levantamento aborda o início das atividades do grupo comandado por ele na capital do país. ;Começou suas atividades na contravenção com o Bingão dos Importados e, anos depois, surgiram as primeiras máquinas caça-níqueis, quando começou a trabalhar nesse ramo;, indica. A época coincidiu com as primeiras denúncias(1) de lavagem de dinheiro contra o acusado.

A investigação policial ainda cita ligações dele com bicheiros de Brasília, a exploração de bingo eletrônico e o crescimento econômico por meio da atividade ilegal. Com o fim de duas leis que garantiam a jogatina no Brasil no início dos anos 2000 (leia O que diz a lei), ele teria passado a atuar por conta de liminares judiciais. ;Após a cassação de todas as liminares, Olímpio passou a trabalhar na clandestinidade, corrompendo o aparato policial para garantir o funcionamento do seu negócio e a não apreensão de seus equipamentos;, aponta a investigação.

Consta no relatório uma estimativa do faturamento semanal do investigado. Arrecadaria, apenas por conta do jogo ilegal, cerca de R$ 1 milhão. Três empresas mantidas em nome dos filhos ; uma do setor de informática, uma do ramo de engenharia e construção e outra de combustíveis automotores ; serviriam ainda como fachada para lavagem de dinheiro. O capital social de cada companhia duplica ou triplica a cada ano, como aprofunda o levantamento. Olímpio também usaria outros familiares como testas de ferro para os negócios irregulares.

A vontade de expandir a atividade teria feito com que a organização liderada por José Olímpio entrasse em concorrência com os pontos usados por bicheiros. ;José Olímpio explora com suas máquinas de caça-níqueis o jogo de bingo ilegal e os bicheiros donos das áreas entraram em uma guerra silenciosa contra Olímpio;, conclui o trabalho investigativo. Fontes policiais ouvidas pelo Correio confirmaram que o estudo de inteligência seguiu para a Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal, além da Polícia Civil do DF.

1 - Conexão italiana
Em 5 de maio de 2002, reportagem publicada pelo Correio descreveu as conexões da jogatina eletrônica no Brasil com a lavagem de dinheiro promovida pelo narcotráfico e a máfia italiana. José Olímpio e o bicheiro identificado como Arcanjo aparecem citados como donos ocultos de uma empresa investigada na época pela Polícia Federal. Ela seria a responsável pelas máquinas caça-níqueis distribuídas pela máfia italiana e usadas em Brasília.

Para saber mais
Tudo começou no Rio de Janeiro

Clique para ampliarA criação do jogo do bicho ocorreu no Rio de Janeiro em 1893. Conta a história que o barão João Batista Viana Drummond, fundador do Jardim Zoológico do Rio de Janeiro, explorou a primeira forma da jogatina para atrair mais visitantes ao endividado zoo local ; a ideia foi sugerida pelo mexicano Manuel Zevada. A intenção de Drummond na época era compensar o corte do repasse de verbas por parte do governo. Ele imprimiu o desenho de 25 bichos nos ingressos e a cada fim de tarde sorteava um deles. Quem tivesse o animal ganhava 20 mil réis. As apostas viraram mania no Rio de Janeiro a partir de 1895. A popularização do jogo do bicho, porém, fez com que a prefeitura proibisse o sorteio. O impedimento deu força à jogatina. Até então, muitos comerciantes compravam os ingressos no Zoológico e os repassavam na cidade. Em vez disso, passaram a fazer os próprios sorteios. Viraram bicheiros. A prática do jogo se tornou crime em 1946. Mesmo assim, continuou a se fortalecer, atingindo o auge na década de 1980. Também há relação estreita com as escolas de samba cariocas.


Ligações com o crime

Especialistas chamam a atenção para os contrastes provocados pelo jogo do bicho no Brasil. O país, por exemplo, admite apostas em corridas de cavalos, mas proíbe jogos de azar. Ainda assim, gerencia e administra loterias. Para o consultor em assuntos de segurança pública George Felipe Dantas, arriscar dinheiro em figuras de animais se aproxima das especulações em bolsas de valores. ;A sociedade em geral tem no jogo uma aspiração em investimento. Mas há histórico no Brasil contra os jogos de azar. O jogo do bicho conta com a legitimidade popular. O problema é a ilegalidade;, afirmou.

A irregularidade, assim, relaciona o negócio ilegal a outras atividades proibidas. É o caso da histórica relação dos bicheiros cariocas com traficantes de drogas e de armas. ;O negócio do jogo do bicho no Rio de Janeiro chegou a se tornar uma força política, em que se criou uma liderança com suporte comunitário. Com a decadência desse modelo, o narcotráfico tomou esse espaço. Durante algum tempo, até caminharam juntos, assim como ocorreu com a máfia de origem italiana e o tráfico de drogas no Estados Unidos;, disse Dantas.

Apesar da atuação vinculada ao crime e à contravenção, os bicheiros, salienta o especialista, sempre tiveram preocupação com a credibilidade diante da própria clientela. Não aceitam erros ou falhas dos apostadores, principalmente no momento de honrar as premiações. ;O jogo do bicho é cercado de todos os cuidados éticos. Talvez seja, paradoxalmente, uma das coisas feitas com mais correção no país. As máquinas de bingos têm vícios. O traficante coloca bicarbonato na cocaína. Mas o bicheiro mantém a máxima do vale o que está escrito;, explicou.

Sem rateio
A antropóloga Simone Simões Ferreira Soares se aprofundou no tema no início dos anos 1990. Pesquisou o assunto e entrevistou bicheiros e apostadores no Distrito Federal, no Rio de Janeiro e no Ceará. O trabalho, defendido como tese de doutorado na Universidade de Brasília (UnB), virou o livro Jogo do bicho: a saga de um fato social brasileiro. A primeira publicação científica brasileira sobre as origens e a tradição da jogatina traçou inclusive o perfil dos envolvidos. ;Cerca de 85% de quem joga é do povão. Os cambistas são ex-presidiários, aposentados e deficientes físicos. O negócio passa de pai para filho;.

A pesquisadora identificou que o sucesso do negócio se explica pela própria estrutura. Não há rateio entre os vencedores. Ganha-se pelo dinheiro apostado. ;Não existe outro jogo tão honesto. Nunca vi um jogador que não recebesse o dinheiro. Isso é um código de honra;, contou. Segundo ela, há vontade dos contraventores em se legalizarem. ;A minha conclusão é de que no Brasil existe uma contradição, pois o governo pratica o jogo de azar, mas proíbe o bicho. E o que percebi é que os bicheiros querem que o jogo seja legalizado, mas não oficializado. Assim, não ficaria sob responsabilidade do governo;, revelou. (GG)


E o bicho continua solto

Enquanto bicheiros e donos de máquinas caça-níqueis disputam território no Distrito Federal, os responsáveis pelos pontos de apostas em animais insistem em desafiar as autoridades da segurança pública da capital do país. A reportagem voltou a circular pelo região central de Brasília, duas semanas depois de denúncia feita com exclusividade pelo Correio Braziliense (leia Memória). Apesar de algumas bancas terem sido fechadas por conta de operação da Polícia Civil do DF, realizada um dia após a publicação, a contravenção persiste no Plano Piloto.

Ao ar livre e em qualquer hora do dia, bancos e paradas de ônibus erguidos nas imediações do Conjunto Nacional e do Setor Bancário Norte servem de estrutura para a jogatina. A praça localizada entre o shopping e o Teatro Nacional, a cerca de 1km do Congresso Nacional e do Palácio do Planalto, lota de apontadores. São homens de cabelos grisalhos, com mais de 50 anos, que a todo momento atendem clientes interessados em uma aposta. Por volta do meio-dia, há filas de pessoas em busca de uma sequência numérica vencedora ; há quatro sorteios diários, feitos no Rio de Janeiro.

O Correio também acompanhou a movimentação de um dos anotadores do jogo do bicho do Setor Bancário Norte. Ele recebe o valor das apostas e faz o jogo acomodado em um banco de concreto da parada de ônibus voltada para o início do Eixinho Norte. A reportagem flagrou o momento em que o homem, sentado de pernas cruzadas, separou e contou sem preocupação dinheiro e bilhetes. Levou vários minutos para contar dois maços de notas, acomodá-los em um envelope e guardá-los. Mais tarde, um motoboy a serviço do jogo do bicho faria a coleta e o entregaria em uma central da jogatina.

A ousadia dos bicheiros candangos fica ainda mais evidente ao se descobrir um dos pontos da contravenção em funcionamento no Conic. É uma sala comercial do Edifício Venâncio Júnior, onde as apostas acabam realizadas sem qualquer interferência. O local fica no 1; andar do prédio e conta com mesa e cadeiras para apontador e cliente, além de um gaveteiro de metal. Uma janela com vidro escurecido permite que se monitore o corredor e a escadaria logo em frente. Os comprovantes dos jogos levam a mesma marca das bancas do Setor Bancário Sul e do Núcleo Bandeirante: Rubinho Loterias.

Operação especial
A Polícia Civil do Distrito Federal realizou 90 flagrantes contra o jogo do bicho nos últimos três anos. De 2008 a junho de 2010, agentes e delegados acabaram com pontos da contravenção em 16 localidades da capital do país. A maioria das ações ocorreu em Brasília, Ceilândia, Taguatinga, Gama, Samambaia e São Sebastião (leia arte). O Plano Piloto, principalmente a área central, lidera a quantidade de ocorrências registradas pela corporação. São 22 no período ;- 14 só no ano passado ;, quase o dobro da segunda colocada.

O diretor-geral adjunto da Polícia Civil do DF, delegado Adval Cardoso de Matos, disse que as delegacias locais têm ordens da direção para coibir qualquer tipo de contravenção na capital do país. Alertou, porém, para a necessidade de um trabalho especial para reprimir atividades irregulares, como o jogo do bicho e o bingo eletrônico. ;As delegacias têm outras prioridades, como homicídios, roubos e tráfico de drogas. Mesmo assim, é para combater a jogatina legal. Mas, se não for feito um trabalho elaborado, pegamos apenas o idoso que faz as apostas nas ruas;, alertou.

Segundo Matos, a corporação investirá em uma ação planejada contra a atividade irregular. A intenção seria derrubar pelo menos uma das três centrais do jogo do bicho na capital do país. Duas delas dividem o Plano Piloto ao meio, a partir da Asa Sul e da Asa Norte. Quanto à disputa por espaço travada entre bicheiros e os responsáveis pela exploração das máquinas de bingo, o delegado disse que as possíveis desavenças, se há, acabam mantidas entre cada grupo. ;Se existem, é de forma velada. Não é explícita;, afirmou. (GG)


Memória
Cerco após denúncias

Há duas semanas, o Correio denunciou a exploração do jogo do bicho em seis cidades da capital do país: Plano Piloto, Núcleo Bandeirante, Taguatinga, Ceilândia, Vicente Pires e Cruzeiro. Reportagem de duas páginas, além de fotografias e vídeos, revelou a rotina e a liberdade com que os apontadores atendem os clientes no Distrito Federal. Os principais flagrantes da atividade irregular foram realizados na parte central de Brasília. Entre eles, a Praça dos Tribunais e o Setor Bancário Sul. Um dia após a publicação, a 5; Delegacia de Polícia (área central) realizou uma operação simultânea em quatro pontos do Plano Piloto. Equipes de agentes e delegados flagraram a contravenção na Rodoviária, Setor de Diversões Sul (Conic), Setor Comercial Sul (SCS) e atrás do anexo do Palácio do Buriti. Quatro apontadores e um motoboy a serviço da jogatina acabaram detidos. Com o motoqueiro, responsável pela coleta do dinheiro e dos bilhetes, os investigadores recolheram R$ 7,4 mil e uma lista com 54 pontos do jogo do bicho no Plano Piloto.


O que diz a lei

O artigo 58 do Decreto-Lei n; 6.259/44 determina prisão de seis meses a um ano e multa a quem ;realizar o denominado ;jogo do bicho;, em que um dos participantes entrega certa quantia com a indicação de combinações de algarismos ou nome de animais, a que correspondem números, ao outro participante, considerado o vendedor ou banqueiro, que se obriga mediante qualquer sorteio ao pagamento de prêmios em dinheiro;. A conduta é considerada de menor potencial ofensivo. Já a exploração do bingo eletrônico se enquadra na Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei n; 3.688/41). A pena prevista varia de três meses a um ano de prisão.

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