Cidades

Aos 90 anos e dona de memória prodigiosa, Benedicta é uma aula de história viva

A professora alfabetizou gerações inteiras e conta sua trajetória de vida em um livro de distribuição restrita

postado em 10/07/2010 08:32

O aspecto é de uma mulher simples, interiorana. A fala, baixa e discreta, dá espaço, com frequência, ao sorriso fácil. Por trás da aparência dessa matriarca à moda antiga, que chegou aos 90 anos recentemente, esconde-se uma mulher determinada, que pautou os rumos da vida em um sentido: educar os filhos e todos que estivessem ao seu redor. Seja nas fazendas mais longínquas, nos rincões de cerrado, atravessando pastos em lombo de burro, ela sempre dividiu com adultos, crianças e até idosos o que aprendeu nos bancos escolares: as operações matemáticas, o segredo das letras, os primeiros passos rumo a uma formação consistente. Poucas vezes foi remunerada por isso. Agora, a família decidiu que todos os parentes e amigos mais próximos precisam saborear as memórias de Benedicta do Nascimento Barreto, goiana de Formosa. Para celebrar as nove décadas, eles imprimiram 200 exemplares do livro que ela escreveu, em celebração à vida.

Benedicta do Nascimento Barreto: paixão pelo ensino das letras e números ajudou a formar até uma escola, no início da década de 1950No livro, ela conta as histórias que ouviu da mãe e as reminiscências mais antigas, que sua lembrança insiste em guardar. Ao longo de 110 páginas, recheadas com fotos e poemas escritos por ou para ela, Benedicta ; ou Bené, para os muitos filhos e netos ; relembra, tintim por tintim, a infância no interior, a paixão pela educação, o casamento, os filhos e um fato marcante em sua trajetória: a natureza de educadora. ;É vocação da gente. Já nasci com isso;, explicou. Foi esse talento que ela usou para educar os 16 filhos, parentes e amigos durante toda a vida e para, nos anos 60, ser professora fundadora de uma escola rural, fruto de um projeto do então presidente do Brasil, João Goulart.(1)

Um professor da região sabia que ela havia recebido educação básica e sugeriu que integrasse a equipe de professores. Em 1962, Benedicta passou a ser a única professora da Escola Rural Veridiano de Castro, instalada na Fazenda Santa Rita, onde morava. ;Os pais dos meninos da fazenda ficavam loucos ao ver o aprendizado deles. As mães me visitavam, levavam presentes;, recorda. À noite, era a vez dos adultos da região, em geral lavradores e funcionários das duas fábricas de cerâmica do local.

Alfabetização geral
A missão fez com que a professora alfabetizasse os próprios filhos e até ganhasse uma ajudinha extra. ;Eu era esperta, aprendia logo. Depois, passei a ajudar minha mãe a alfabetizar os adultos, que estudavam no turno noturno. Até hoje me lembro dos textos da cartilha: ;Titou matou o tatu;;, diverte-se Olinda Messias de Faria, 55 anos, oitava filha da farta prole de Benedicta.

Mas a experiência durou pouco. A professora conta que, com a queda de João Goulart, o projeto foi abandonado. ;Nos últimos meses, nem recebi meu salário;, lembrou. A escola foi temporariamente fechada e, mais tarde, repassada à Secretaria de Educação do Distrito Federal. Ainda em funcionamento, passou a se chamar Escola Classe Cerâmicas Reunidas Dom Bosco, e pertence a Planaltina. Depois dessa fase, Benedicta mudou-se de volta para a cidade e montou um armazém com o marido. Na década de 1970, veio para Brasília, com a intenção de ficar mais perto dos filhos que se deslocaram para cá.

A paixão pela sabedoria surgiu cedo. Quando tinha 11 anos, ela perdeu o pai, funcionário do pedágio de Formosa, que enfartou na lavoura que tinham nos fundos de casa. A mãe ainda viveu com os oito filhos naquelas terras por mais três anos, até instalar-se de novo em Formosa. Apaixonada pelos livros, Benedicta estudou no Colégio São José, que completa 100 anos e onde todos os seus descendentes também tiveram o primeiro contato com as letras e os números. Seu tempo era dividido entre os estudos, as tarefas domésticas e pequenos bicos para ajudar a mãe a sustentar a grande família.

A professora alfabetizou gerações inteiras e conta sua trajetória de vida em um livro de distribuição restritaBenedicta estudou o que no seu tempo era chamado de primário, e chegou a cursar o ano complementar, o que equivale hoje ao quinto ano do ensino básico. Seu sonho era continuar estudando, mas o dinheiro não dava. Aos 15 anos, tornou-se aprendiz de um alfaiate da cidade. Depois de ganhar experiência trabalhando de graça, decidiu virar costureira. Convenceu um vendedor a fazer fiado e levou uma máquina de costura pra casa. Cobrou uns trocados para ensinar às amigas os truques que já havia aprendido, conseguiu os primeiros clientes e, em pouco tempo, quitou a dívida. ;Fiz as roupas da minha família a vida toda. Meu marido só foi comprar camisa em loja depois de ter filho casado.;

Idas e vindas
O casamento veio cedo, aos 20 anos. E o escolhido foi um vizinho: Wilson Barreto, que morava na pracinha da igreja, pertinho da casa da família da futura mulher. Eles se conheciam de vista e, nas palavras dela, ;namoravam de longe;. Mas o namoro mesmo, conforme as tradições da época, com a família toda na sala, durou seis meses. Foi o tempo para que eles organizassem a festança.

Depois da união, o casal se mudou para a fazenda dos Barreto, conhecida como Mata-Cavalos, a 84km de Formosa. Com a lonjura e os filhos nascendo, Benedicta se ocupou da casa e da criação das crianças. Cada bebê que nascia significava uma ida à cidade e, dias depois, uma longa jornada de volta, com a criança enrolada em panos, debaixo de sol ou de chuva. Assim, 16 vieram ao mundo. A maternidade também trouxe dores e perdas. Em uma das gestações, ela nem sequer sabia que esperava gêmeos. Como não houve tempo para ir ao hospital, o marido fez o parto, em casa mesmo. O bebê do sexo masculino não resistiu e morreu, mas a menina vingou. Outro filho, Geraldo, foi picado por uma cobra e morreu aos 12 anos. A tristeza é rebatida pelo orgulho que os outros filhos proporcionam: todos concluíram o ensino fundamental e a maioria tem curso superior. Seis deles, cinco mulheres e um homem, decidiram seguir a inspiração materna e viraram professores.

De fazenda em fazenda, acompanhando a lida do marido lavrador, Benedicta chegou à Santa Rita e à sina de ser oficialmente professora. Mesmo longe das lousas e do giz há muitos anos, ainda surpreende a família com as lições, sempre afiadas na memória. Até hoje, repete as últimas palavras ditas pelo padre, na cerimônia de seu casamento: ;Dai os braços à pátria e os corações a Deus;. Reproduz com fidelidade as notícias que lia nos jornais de antigamente e que escutava atentamente pelo rádio de pilha, nos confins das fazendas. Os parentes e amigos se divertem ao escutar a notícia que ela decorou, na ponta da língua, sobre a derrota de Eduardo Gomes, que perdeu o posto de presidente da República para Eurico Gaspar Dutra, em 1945. Seus assuntos preferidos são política e religião.

Os 90 anos chegaram em 30 de junho, mas a comemoração será hoje, e em grande estilo.


1 - O PLANO DE EMERGÊNCIA
Em 1962, logo que assumiu a Presidência do Brasil, João Goulart criou o Programa de Emergência do Ministério da Educação e da Cultura (MEC), que encaminhou recursos aos estados, com o intuito de sanear o investimento nas escolas, ampliando matrículas e nível de escolaridade dos alunos. Na ocasião, os secretários de Educação vieram a Brasília assinar os convênios. A medida foi consequência de um estudo que revelou a precariedade do ensino no país. Apenas 46% das crianças de 7 a 11 anos estavam matriculadas no ensino básico. Menos de 15% delas chegavam a concluir a quarta série. Poucos jovens na faixa etária adequada tinham acesso a escolas de ensino médio. O plano criou o Fundo Nacional da Educação e determinou que 12% da receita obtida em impostos da União seria investido no setor. A ideia era alfabetizar todas as crianças e jovens entre 7 e 23 anos, antes que a década de 1970 chegasse. Com o golpe militar que assolou o país em 1964, ele foi deposto, e o projeto, abandonado.

Na ponta da língua

Texto do jornal Popular de Goiás de 1945, recitado por Benedicta do Nascimento Barreto.

Eleições de 1945 depois da saída de Getúlio Vargas.

;Eurico Gaspar Dutra vai ser chefe da Nação

O Eurico foi eleito, o Eduardo não foi não

Antes das eleições toda gente já dizia que Eduardo ganhava e Eurico perdia,

Mas Eurico ganhou com mais de um milhão de maioria na frente da oposição

Número um foi São Paulo

Número dois Minas Gerais Em qualquer desses Estados Eduardo está atrás

Isto é notícia certa, deu nos rádios e nos jornais

O Eduardo Gomes não teve sorte perdeu em Minas e perdeu no Norte

E lá em São Paulo que o fumo é forte

Viva Eurico Gaspar Dutra que teve votos demais

Viva o Estado de São Paulo

Viva o Estado de Goiás

Viva Pedro Ludovico

Que trabalhou tanto para o Estado a Capital de Goiás que tanto tem aumentado

Tirou ela das montanhas e das unhas dos Caiados

Em toda parte de Goiás o nome dele é cotado.;


Introdução do livro

Esta é a história da minha vida e a da minha família, a partir dos meus bisavós. É o relato de onde vim e de quem sou. É a minha caminhada.

Tenho muitas lembranças. Quando eu for, deixo-as como herança aos meus descendentes, em especial, aos meus filhos. Muitos não passaram pelas coisas difíceis pelas quais passei. Então contei um pouco dessas coisas aqui, para que lhes sirvam de lição.

No dia em que Deus me levar, vou em paz. Não temo e nem desejo a morte. Quem vive em comunhão com Deus não tem medo da morte. Eu vivo em comunhão com Deus.

Benedicta

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