Jornal Correio Braziliense

Cidades

TCDF aponta caos na saúde

Auditoria do Tribunal de Contas do Distrito Federal comprova a realidade que os usuários do sistema de saúde pública conhecem bem. Demora para agendar consultas e a falta de infraestrutura são apenas alguns dos problemas

Uma auditoria feita pelo Tribunal de Contas do Distrito Federal (TCDF) no sistema de saúde pública da capital federal chegou a uma conclusão que é bastante óbvia para os usuários: um conjunto de falhas que se estendem da infraestrutura precária até a falta crônica de medicamentos. A análise feita pelo tribunal de janeiro de 2006 a abril de 2008 revela gastos excessivos com serviços terceirizados e negligência na aplicação de recursos para a modernização dos equipamentos e para a compra de remédios. O documento destaca a dificuldade enfrentada pela população para agendar consultas e exames, apesar de a relação médico/habitante no DF ser o melhor do país. As consequências da desordem, embora conhecidas dos pacientes, assustam..

Os números apurados pela auditoria foram fornecidos por 88 das 115 unidades de atendimento de saúde do Distrito Federal. O primeiro ponto observado pelo TCDF são as restrições impostas à população, por motivos diversos, para que seja cumprido o artigo 196 da Constituição Federal, que garante o acesso universal e igualitário à saúde. O grande inimigo do paciente é a dificuldade em conseguir vaga para ser atendido em postos e centros de saúde. Um exemplo são os números registrados em novembro de 2007: 34% dos usuários que buscaram atendimento em 70% das unidades de saúde não conseguiram uma consulta.

A especialidade que registrou o maior índice de recusas foi a angiologia, que trata doenças das veias e vasos sanguíneos. Das 4.101 pessoas que tentaram um agendamento, 2.985 saíram sem ser atentidas. Ou seja, 73% dos pacientes não tiveram acesso a um médico. No Centro de Saúde n; 2 de Planaltina, por exemplo, a cada 24 pacientes atendidos na clínica médica, 200 voltam para casa sem se consultar. Quem decide aguardar precisa ter paciência. Em 81% das especialidades, o tempo médio de espera é superior a três meses (veja quadro).

Conseguir um horário na agenda nem sempre é sinônimo de atendimento adequado. Segundo o TCDF, a capital federal tem média de 1,3 médico para cada mil habitantes, superior à meta de 1/1000 estipulada pelo Sistema Único de Saúde. Mas, como o modelo do DF é focado em hospitais e não em centros de atenção básica à saúde ; consideradas pontos de primeiro atendimento ; a consequência são unidades regionais superlotadas e sem capacidade de atender a demanda. O Ministério da Saúde recomenda que apenas 15% dos atendimentos sejam feitos em hospitais, priorizando os casos mais graves. No DF, o número chega a 50%. Além disso, a distribuição irregular de pessoal, negligenciando a oferta de médicos em postos de saúde, ;pode prejudicar a promoção de ações voltadas à Atenção Básica nas áreas em que estão localizados;, alerta o documento.

A falta de funcionários compete com a precariedade dos equipamentos e da infraestrutura das unidades. Até a escassez de máquinas de esterilização de instrumentos médicos foi constada, o que pode impedir a continuidade de determinados procedimentos médicos. Espaços pequenos, mal ventilados e mal iluminados, manutenção demorada ou inexistente de equipamentos, além da defasagem tecnológica compõem um lista de problemas que parece não ter fim. Segundo as diretorias regionais, 44,7% das instalações necessitam de reforma para funcionar normalmente.

Por fim, a auditoria constatou um número elevado de horários de consultas que permaneceram vagos. Para o tribunal, existem duas explicações: pacientes que simplesmente não aparecem ou desmarcam o compromisso em tempo inábil para o encaixe de outro; e fraude no sistema de marcação, que não é feita por uma central reguladora, mas pelas próprias unidades. O acúmulo de funções de servidores e o compartilhamento de senhas possibilitam o agendamento de consultas fictícias e a comprovação de que elas aconteceram. Por fim, o documento critica o sistema utilizado pela Secretaria de Saúde, cuja ;central de regulação não dispõe de informações sobre a totalidade da demanda por serviços regulados e da respectiva oferta;.

O número
1.731 dias

Tempo por que um paciente espera por uma consulta com um angiologista na rede pública, segundo a auditoria do TCDF.


Principais problemas encontrados

# Alto número de usuários que têm acesso negado a consultas médicas e odontológicas

# Elevado tempo de espera para atendimento de consultas e exames, que, consequentemente, atrasam a marcação de retornos

# Indisponibilidade de consultas durante o horário de funcionamento das unidades

# Não há controle de capacidade de atendimento e de demanda da população por serviços

# Existem unidades que não têm médicos há anos

# Os meios materiais e logísticos são insuficientes ou inadequados para as unidades

# A regulação de consultas e exames não se estende a todos os serviços, não havendo, assim, informação sobre a demanda e oferta de determinados procedimentos

# O TCDF constatou um grande número de vagas para consultas e exames não utilizado, despertando a possibilidade de fraude no sistema usado pela Secretaria de Saúde

# Metade dos atendimentos na rede pública é feita nas emergências, quando o Ministério da Saúde recomenda apenas 15%

# Dificuldade de acesso a consultas em postos e centro de saúde, concentrando os atendimentos em hospitais



Memória
Enfermeira ferida


Em 19 de junho, a demora no atendimento nos hospitais do Distrito Federal acabou em uma grave agressão contra uma servidora do Hospital Regional de Ceilândia. A enfermeira Vilma Lobo, de 47 anos, cuidava de uma paciente em um dos boxes da emergência, onde trabalha desde 1981, quando uma confusão começou nos corredores da unidade de saúde. Como supervisora do setor, a enfermeira foi sondar o que acontecia. No caminho até a sala de medicação, onde acontecia o tumulto, as colegas contaram rapidamente o motivo da fúria da mulher ; cujo nome de batismo é Osmair Miliano Pinto, de 28 anos ; que é conhecida como Maíra. O travesti chegou ao hospital em uma ambulância do Corpo de Bombeiros, acompanhando um paciente que sofrera uma crise convulsiva, mas já havia recebido os primeiros socorros e aguardava atendimento médico.

Assim que Vilma se aproximou do travesti, ele perguntou: ;É você que não quer atender?;. Não houve tempo de a enfermeira responder. Osmair, que é soropositivo, pegou uma seringa com a qual havia coletado o próprio sangue e o injetou na mão esquerda da enfermeira-chefe do pronto-socorro. Foram três picadas. ;Agora, você é a mais nova integrante da turma, colega;, debochou Osmair, depois do ataque. Desde a agressão, a enfermeira está tomando medicamentos na tentativa de barrar a contaminação e aguarda o resultado dos exames que vão revelar se ela foi contaminada pelo vírus.


GDF tem plano de ação

O Governo do Distrito Federal (GDF) reconheceu ontem os problemas ;gritantes e graves;, nas palavras da secretária de Saúde, Fabíola de Aguiar Nunes, do sistema ao apresentar o Plano de Ação da Gestão de Saúde no DF, cujas medidas visam sanear o desabastecimento de medicamentos e melhorar o atendimento até dezembro. O governador Rogério Rosso confessou que ;ninguém faz milagre em seis meses;, mas que o seu governo recebeu ;uma rede e um sistema de logística, tanto em insumos quanto em infraestrutura, com muita coisa a ser feita;.

Descentralização foi a palavra-chave da apresentação. Uma maior autonomia financeira para os hospitais regionais ; como prevê o decreto assinado por Rosso em abril ;, o fortalecimento de postos e centro de saúde para desafogar a superlotação dos hospitais, a priorização de casos graves e a capacitação de profissionais foram apontados como os principais pontos do plano. ;Pretendemos reorganizar o nível central, mas também dar condições adequadas de controle social nas unidades regionais. Regionalizar o controle social nos permite receber uma contrapartida da população e ajustar os serviços com base nas suas necessidades;, afirmou Fabíola.

Uma das cargas mais pesadas será de competência da recém-criada Secretaria Extraordinária de Logística e Infraestrutura de Saúde (Seelis), comandada pelo médico Hebert Teixeira Cavalcanti. A secretaria tem a missão de contratar serviços terceirizados, adquirir medicamentos, equipamentos hospitalares e outros insumos para equipar a rede pública. Antes, o processo de compra de materiais era feito por uma central de compras subordinada à Secretaria de Planejamento, Orçamento e Gestão.

Como resposta à falta de remédios, um dos problemas que mais afetam a população, Cavalcanti afirmou que 325 pedidos estão parados no TCDF, sendo que 178 correspondem à aquisição de medicamentos. ;O tribunal suspende o processo quando há falhas ou itens nos contratos que precisam ser esclarecidos. Nos próximos dias, devemos receber muitos deles para corrigir os erros e seguir com a licitação;, avisa. Do TCU, os documentos seguem para análise da Procuradoria-Geral do DF. Outra ferramenta para providenciar estoques imediatos, explicou o secretário, é a adesão às atas de preços de licitações feitas em outros estados e municípios. ;Evitamos, assim, a morosidade de todo o processo de abrir uma licitação. Mas esse é um recurso que não nos garante grandes quantidades;, completou. Ele recomendou a utilização dos recursos do programa de descentralização ; atualmente cada hospital conta com R$ 150 mil por mês ; para resolver demandas urgentes do dia a dia, mas criticou o uso indiscriminado das compras emergenciais, autorizadas por lei. ;Esse deveria ser o último recurso. É preciso planejar para que, no futuro, a reposição seja automática.;

Para o secretário, os problemas enfrentados com os serviços de manutenção e aquisição de equipamentos são resultado do uso indevido e, em alguns casos, até da ausência de contratos. Segundo ele, a preocupação é regularizar a situação dos prestadores de serviço e abrir novos processos licitatórios. Cavalcanti também citou a falta de planejamento como mais um fator de comprometimento. ;Vemos unidades com demandas semelhantes pedindo equipamentos completamente diferentes e inadequados às suas estruturas.; (AS)


"Pretendemos reorganizar o nível central, mas também dar condições adequadas de controle social nas unidades regionais. A regionalização nos permite receber uma contrapartida da população e ajustar os serviços com base nas suas necessidades"
Fabíola de Aguiar Nunes, secretária de Saúde