Cidades

Mulher luta por pensão da companheira

Depois da morte da parceira, com quem viveu por 10 anos, vendedora ambulante pede na Justiça o direito de receber o benefício previdenciário da mulher, que era servidora do GDF

postado em 14/07/2010 08:09
Mais do que assinaturas em papéis, o casamento é, antes de tudo, a união de dois corações. Sabendo disso, é possível afirmar: Maria Aparecida de Jesus casou-se com Maria Alves. Embora a lei brasileira não reconheça a união entre duas mulheres como um casamento ;de verdade;, as duas sentiam-se mais casadas que muitos casais formados por homens e mulheres. Ignoraram o preconceito e amaram com exclusividade uma a outra durante 10 anos.

A Justiça reconheceu a união e o direito à pensão de Carlos RobertoMaria Alves morreu aos 52 anos, em dezembro de 2008. Agora, Maria de Jesus luta por um direito concedido com facilidade a quem ama o sexo oposto: o de receber uma pensão na Justiça referente ao salário que a companheira ganhava. Maria Alves era técnica de raios x da Secretaria de Saúde do DF e recebia R$ 2,6 mil mensais, dinheiro que sustentava a casa. O advogado dela é José Alves, irmão de sua companheira. A tentativa, porém, esbarra em algumas dificuldades.

Para entender a razão da família Alves acreditar no merecimento de Maria de Jesus sobre a pensão é preciso conhecer a história das duas. Antes de falecer, Maria Alves ficou quase cinco anos deitada em uma cama, impossibilitada de movimentar o lado esquerdo do corpo, depois de sofrer um acidente vascular cerebral (AVC). Foi quando Maria de Jesus virou dona de casa e enfermeira em tempo integral. Ela cuidava da doente com resignação. Aceitava inclusive o mau humor da mulher por estar impossibilitada de viver como gostaria. Dava banho, trocava a roupa, alimentava e penteava os cabelos dela com a delicadeza de quem cuida de algo precioso. Maria Alves fumava três carteiras de cigarro todos os dias. O corpo acabou apresentando a conta do vício.

A mulher festeira teve de se conformar com a nova condição. Sentia-se como um vegetal. ;E continuou fumando. Ela acendia o cigarro com dificuldade e o pendurava no canto direito dos lábios;, relata. Maria Alves tinha personalidade forte.

Primeira e única
As duas se conheceram uma década antes, em 1998, no bar mantido por Maria, no Gama. Depois daquela noite, nunca mais se separaram e logo começaram a morar juntas. Maria Alves foi a primeira e única mulher de Maria de Jesus. ;Antes de viver com ela, morava onde eu nasci, no Piauí. Lá, eu já sentia desejo por mulher, mas não dava para manifestar por causa da minha família;, lembra Maria de Jesus.

Se Maria Aparecida de Jesus, atualmente com 38 anos, tivesse ficado viúva de um homem, hoje ela ganharia uma pensão para garantir o próprio sustento. Ao optar por viver com outra mulher, acabou sem nada. Ela não tem renda fixa e agora mora de aluguel. Vende churrasquinhos na Rodoviária do Plano Piloto, atividade que não garante o sustento. Encontrar um emprego novo anda difícil. Maria de Jesus tem o primeiro grau completo e pouca experiência no currículo. Ela decidiu então entrar na Justiça com um pedido de pensão. Mas não chegou a essa decisão sozinha. Teve o amparo do irmão da companheira. O processo corre na 2; Vara de Família do Gama.

José Alves intercedeu por Maria de Jesus por gratidão. ;Minha irmã ficou em cima de uma cama durante quase cinco anos. Quem cuidou dela foi a Maria. Homem nenhum aguentaria o que ela passou;, afirma José. O processo se baseia no princípio da dignidade humana, garantida na Constituição Federal.

O processo também usou como argumento a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n; 178, ajuizada pela procuradora-geral da República Deborah Duprat no Supremo Tribunal Federal (STF), em 2009. A PGR sustenta que a união entre pessoas do mesmo sexo ;é, hoje, uma realidade fática inegável, no mundo e no Brasil;. A ação deve ser apreciada pelo STF ainda este ano. ;Só estou pedindo o que os heterossexuais recebem. O direito deve ser igual para todos;, argumenta Maria de Jesus.

Iprev
Como Maria Alves era servidora da área de saúde do GDF, o advogado poderia também se basear na Lei Distrital Complementar n; 818, que prevê o pagamento de pensão para companheiros de servidores que vivam união homoafetiva estável (morem na mesma casa e mantenham uma relação duradoura), por meio do Instituto de Previdência (Iprev). Como o instituto passou a existir em 2009 e Maria Alves morreu em 2008, há dificuldades, já que a lei não fala sobre retroatividade (veja O que diz a lei).

;O instituto é novo e acredito que esse pagamento começará a ser feito quando os companheiros morrerem;, informa o diretor de previdência do Iprev, Francisco Jorgivan.Depois da criação do instituto, o servidor deve informar em um cadastro a existência da união estável e pode citar como dependente o parceiro homossexual. O diretor do Iprev aconselha as pessoas que mantêm esse tipo de relacionamento a deixarem uma declaração, por escrito, reconhecida em cartório. O advogado de Maria de Jesus optou por ir direto à Justiça. ;Precisamos primeiro ter o reconhecimento dessa união. Depois disso, podem incluí-la no cadastro da fundação;, explicou o advogado.

"Só estou pedindo o que os heterossexuais recebem. O direito deve ser igual para todos"
Maria Aparecida de Jesus , vendedora ambulante


Avanços no Poder JudiciárioMaria Aparecida parou de trabalhar para cuidar da parceira que sofreu por quase cinco anos as sequelas de um AVC: salário da parceira sustentava as despesas da casa

Desde que o parceiro de 14 anos de convivência, Antônio Martins da Silva, morreu em virtude de um câncer em 2006, Carlos Roberto Gonçalves Santos, 44, não deixou de lutar pelos seus direitos conjugais. A falta de legislação específica para as uniões homoafetivas não foi barreira para o cabeleireiro, que conseguiu, na última sexta-feira, por uma decisão do Juizado Especial Federal Cível, o direito de receber a aposentadoria vitalícia do companheiro que trabalhava no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

A sentença é do juiz federal Enio Laercio Chappuis. Nela, o magistrado julga procedente o pagamento do benefício previdenciário a Carlos Roberto defendendo que ;a sociedade, hoje, não aceita mais a discriminação aos homossexuais. O Supremo Tribunal Federal vem reconhecendo a união de pessoas do mesmo sexo para efeitos sucessórios. Logo, não há por que não se estender essa união de pessoas do mesmo sexo para efeito previdenciário;.

Na decisão, o juiz determina ainda que sejam pagos os valores retroativos a 2006, ano do falecimento de Antônio Martins. Agora, o Incra terá que reembolsar a pensão devida de janeiro de 2006 a outubro de 2009. Isso porque, desde o ano passado, o cabeleireiro vem recebendo a aposentadoria de R$ 1,7 mil graças a uma liminar também concedida pela Justiça.

O Incra ainda não foi comunicado oficialmente da decisão publicada na sexta-feira. A decisão pode ser questionada e, segundo a assessoria de comunicação do órgão, deve ser esse o próximo passo, já que ;não há, ainda, orientação expressa da Advocacia-Geral da União (AGU) sobre a união homoafetiva e os direitos civis.;

Antes de entrar na Justiça, Carlos chegou a tentar o benefício por meio de um processo administrativo dentro do Incra. Porém o pedido foi negado sob o argumento que ;a entidade familiar na citada união homoafetiva foi julgada inexistente em razão de suas próprias características.;

Comemoração
Não é a primeira vez que Carlos Roberto Gonçalves Santos consegue aval jurídico para a conquista de seus direitos. No ano passado, ele assegurou 50% dos bens do parceiro: uma Parati 1998, o salão de beleza, um computador e uma televisão. Além disso, ganhou uma indenização por danos morais da família do companheiro que alegava que ele tinha o vírus HIV. ;Eu tinha um salão com oito funcionários. Hoje, só trabalha eu e minha irmã porque quando esse boato se espalhou, os clientes sumiram. Depois, provei que era mentira;, relata o cabelereiro, morador do Guará.

Vitórias como a de Carlos reforçam a importância da revisão da legislação brasileira em relação às uniões homoafetivas. Por enquanto, a maioria dos juízes tem baseado suas decisões em jurisprudências e ;brechas; da lei, como, por exemplo, considerar as uniões homoafetivas como sociedade de fato(1) e não como união estável, já que a última só é reconhecida quando há relacionamento entre homens e mulheres.

;Os casos como esse ainda são isolados no Brasil, mas dá visibilidade para uma situação que precisa ser resolvida. O Judiciário está bem à frente do legislativo na questão dos direitos homossexuais;, analisa Márcio Marins, secretário da região Sul da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais.

1 - Brecha legal
O Código Civil Brasileiro entende a sociedade de fato com um tipo de relação não, necessariamente, afetiva. Pode ser feita entre sócios de uma empresa, amigos etc.
Espera-se que as pessoas envolvidas na sociedade contribuam com dinheiro ou trabalho para a construção de patrimônio. Esse contrato assegura o direito à parte do montante.

O que diz a lei

Desde 2009, o pagamento de pensão a companheiros de homossexuais é um direito assegurado em lei no Distrito Federal. A Câmara Legislativa aprovou o texto que prevê o benefício, desde que seja comprovada a união estável com um servidor do GDF. A proposta que estende oficialmente os direitos de casais homossexuais tramitou na Câmara durante um ano, antes da sanção. Tudo começou em junho de 2008, quando foi votado o projeto de lei complementar que criava o Instituto de Previdência do DF (Iprev). Com a medida, os distritais estabeleceram o regime próprio de aposentadoria e pensões dos servidores do governo local. O pagamento da pensão para casais homossexuais foi inserido por meio de emenda no projeto.

O texto chegou aprovado na Câmara, mesmo com a resistência da bancada evangélica, mas foi vetado pelo governo. Apesar disso, o tema foi reformulado em um novo projeto, elaborado pelo próprio Poder Executivo. O texto do governo voltou à Câmara em menos de um ano e recebeu a aprovação dos deputados e a sanção do então governador José Roberto Arruda. Antes disso, Pernambuco e Rio de Janeiro eram os únicos Estados a conceder o benefícios aos funcionários públicos gays.

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