Cidades

Construções de garagens particulares e cercas vivas desrespeitam o projeto urbanístico

Adriana Bernardes
postado em 22/07/2010 08:10
Do desejo de criar uma cidade única, nasceu um conceito inovador para quem vive em apartamentos. Ao debruçar-se sobre a prancheta para traçar o Plano Piloto, o urbanista Lucio Costa vislumbrou um aglomerado de prédios entremeados por uma grande quantidade de árvores. Pensou ainda que esse lugar deveria ter apenas uma entrada para evitar o trânsito de passagem ; quem entra em uma superquadra, não o faz para cortar caminho, mas porque é ali o seu destino final. Ele imaginou ainda prédios com no máximo seis andares erguidos sobre pilares sob os quais o espaço deveria ser livre, propriedade de todos e com acesso livre aos pedestres.

Em dois blocos da 110 Sul, os acessos a alguns prédios foram fechados para abrigar garagens particulares: alteração feita há mais de 20 anos continuan gerando confusãoPassado meio século da inauguração da capital, somente parte do que o urbanista imaginou saiu do papel. Do que se concretizou até agora, há distorções que ferem gravemente o tombamento da cidade. Um dos exemplos mais emblemáticos são as construções embaixo dos pilotis. Em dezenas de prédios, os vãos que deveriam ser livres foram transformados em salas de ginástica, quartinhos de despejo, bicicletários e até mesmo em garagens.

É o que acontece na SQS 110, nos blocos G e H. Na última terça-feira, a reportagem flagrou os carros estacionados debaixo dos pilotis. Como se não bastasse, os moradores construíram um puxadinho sobre área pública e sinalizaram o local com aviso de que o estacionamento é privativo. O pilotis que deveria ser livre, claro e ventilado tornou-se um ambiente escuro. O Correio tentou conversar com o síndico dos dois prédios, mas os porteiros informaram que ambos estavam trabalhando e não podiam informar os números de telefones deles. Apesar de a reportagem ter deixado recado, nenhum dos síndicos retornou para falar sobre o assunto.

Porteiro há 25 anos no Bloco H, Valdivino Ferreira da Silva conta que a privatização do estacionamento público existe há pelo menos 27 e já deu muita confusão. ;Quando para algum carro, a gente diz que a vaga é do morador, mas tem gente que bate o pé e diz que é área pública. Uma vez um coronel furou os quatro pneus de um carro que parou na vaga dele. Outra vez, um juiz parou, a moradora foi reclamar e ele estacionou mesmo assim;, relembra.

A 104 Sul é outro exemplo de privatização de área pública. Quem chega ao bloco D se depara com as vagas cobertas por um puxadinho. O pilotis é praticamente todo bloqueado. A construção, feita no mesmo padrão do prédio, abriga pequenas salas transformadas em depósito pelos moradores. Por telefone, o síndico do prédio, Luiz Fernando Mendonça, explica que, desde a década de 70, o prédio é do mesmo jeito e que, no passado, os porteiros moraram nos quartinhos erguidos debaixo dos pilotis.

Ao comentar sobre os riscos que esse tipo de alteração representa para o tombamento, Luiz Fernando avalia que será difícil conciliar a transformação da cidade com as regras rígidas do plano original. ;Quantas pessoas morrem no Eixão porque não se permite colocar a mureta no meio da pista por causa do tombamento? De uma maneira geral, todos ; especialmente os mais antigos ; querem a cidade tombada. Mas hoje tem muito mais carros, mais pessoas e isso gera novas necessidades;, destaca.

A administração de Brasília assegurou que nenhuma das alterações citadas na matéria são autorizadas pelo governo. Mais uma vez, a responsabilidade por coibir as invasões de áreas públicas é da Agência de Fiscalização (Agefis). ;Estamos fazendo um levantamento topográfico para identificar o que é invasão e vamos iniciar as derrubadas;, informou Nilo Martins, assessor de imprensa da Agefis. Ele destacou que a agência existe há apenas dois anos e meio e que as irregularidades estão sendo combatidas aos poucos.

Cercas vivasAs plantas fecham o acesso dos pedestres ao prédio que fica no Sudoeste
Outro modo de privatizar o que deveria ser público são cercas vivas ao redor do pilotis. Isso ocorre na asas Sul e Norte e no Sudoeste. No Bloco E da SQSW 504, no Sudoeste, a cerca viva tem cerca de 1,5m e reserva aos moradores uma área verde considerável, transformada em uma espécie de parquinho infantil privativo. O acesso à portaria só é possível por três aberturas entre as árvores. A reportagem tentou contato com a síndica e com a sub-síndica mas não obteve retorno.

Piauiense de nascimento e brasiliense de coração, a costureira Teresa Onofre da Silva, 66 anos, mudou-se para Brasília num tempo em que as passagens entre os blocos eram livres. ;Morava na 708 Sul e só andava a pé. Cortava caminho debaixo dos prédios até chegar à 202 Sul. Agora, a gente precisa ficar arrodiando (contornando) as plantas e as grades. Para quem anda é muito ruim;, comenta.

Na visão da arquiteta, urbanista e integrante do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal Vera Ramos, essas são distorções pontuais do projeto de Lucio Costa que, juntas, comprometem a paisagem. ;O conceito de unidade de vizinhança está comprometido. Os comércios locais se expandiram além da conta e, quando o governo aprovou uma lei permitindo que 50% das entrequadras tivessem atividade comercial, apenas os comércios proliferaram e não se fez nada para coibir. Qual atividade cultural foi instalada nas 200? Só tem comércio ali. Onde estão os clubes de vizinhança? Só o da 108 Sul foi construído;, lamenta.

"A escala residencial, com a proposta inovadora da Superquadra, a serenidade urbana assegurada pelo gabarito uniforme de seis pavimentos, o chão livre e accessível a todos através do uso generalizado dos pilotis e o franco predomínio do verde, trouxe consigo o embrião de uma nova maneira de viver, própria de Brasília e inteiramente diversa da das demais cidades brasileiras"
Brasília Revisitada


Artigos

DE TOMBAMENTOS... E TOMBAMENTOS
Oscar Niemeyer, arquiteto


O tombamento de Brasília, confesso, é um assunto que não me entusiasma muito. Acredito, mesmo, que uma reflexão mais profunda sobre a matéria poderia ser mais amplamente desenvolvida, com o necessário rigor, por especialistas de áreas como urbanismo, sociologia urbana e políticas de preservação do patrimônio cultural.

Já me posicionei sobre a questão não apenas em entrevista bastante recente que concedi à Folha de S.Paulo, como também em diferentes textos meus escritos quando da polêmica criada em torno da Praça da Soberania por mim criada para Brasília, reunidos com os de outros arquitetos na revista Nosso Caminho (a de n;4, dada à luz em fevereiro de 2009).

De um lado, sempre achei uma besteira promover-se o tombamento integral de Brasília ou de qualquer outra cidade. Por outro lado, nunca deixei de apreciar o esforço de entidades como o Iphan de salvaguardar a memória arquitetônica do nosso país, onde não raro não se tomam as providências necessárias para se evitar degradar edificações importantes, do momento em que se liberam as suas cercanias mais próximas para a realização de feiras, shows de música ou outros espetáculos considerados ;populares;, que abrem espaço para verdadeiras depredações.

Caberiam também providências no sentido de não se ocuparem de forma excessiva os espaços vazios que se encontram no entorno de certos prédios ou conjuntos arquitetônicos, e que fazem parte da arquitetura. Aliás, conforme reconheceu o crítico italiano Gillo Dorfles, o homem contemporâneo parece detestar os espaços vazios. Brasília foi tombada pela Unesco e pelo Iphan, mas tendo-se em vista que correspondia a um conjunto urbanístico incompleto, que se fazia indispensável concluir os setores culturais ; o que, a bem da verdade, eu tenho procurado fazer, num total respeito ao Plano Piloto de Lúcio Costa.

Tampouco se deve esquecer que Brasília não foi tombada como sítio histórico; na perspectiva daqueles que propuseram o tombamento de uma capital moderna como Brasília, tal medida, tomada em atenção estrita ao que foi disciplinado pelo Plano Piloto, preserva não só o sistema de circulação, os eixos monumental e residencial, a esplanada dos Ministérios e a praça do Governo, mas sobre tudo as diferentes escalas (monumental, residencial, gregária e bucólica) que, no modo de ver de Lúcio, definem e caracterizam a nova capital.

É evidente que mesmo aquelas cidades tombadas como sítios históricos ; a exemplo de Ouro Preto ; não estão condenadas ao congelamento. Em tais cidades admite-se que construções novas sejam realizadas em áreas bastante específicas, observando-se os parâmetros reguladores, ou, ainda, que modernos equipamentos urbanos visando ao conforto dos moradores possam ser ajustados a suas infraestruturas. Esse é o ponto de vista que tenho defendido, na boa companhia de colegas muito queridos como o arquiteto Glauco Campello e Ítalo Campofiorito.

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