Cidades

Muitas pessoas ocupam irregularmente salas destinadas a escritórios e consultórios

Helena Mader
postado em 23/07/2010 07:22
No Plano Piloto, a altura dos prédios residenciais e a quantidade de edifícios em cada quadra são limitadas. O urbanista Lucio Costa criou esses parâmetros para o crescimento de Brasília buscando preservar suas características originais. Com isso, a cidade se expandiu em direção aos arredores da área tombada, onde a oferta de moradia era maior e os preços, mais baixos. Hoje, menos de 20% dos moradores do Distrito Federal vivem no Plano Piloto, mas 70% dos empregos ainda estão na zona central. Essa realidade transformou os imóveis da região tombada em bens cobiçados e despertou o setor da construção civil para um novo filão: o mercado das quitinetes.

Com a escassez de terrenos para edificação e a demanda por moradia no Plano Piloto em alta, a saída foi construir unidades imobiliárias com média de 30 metros quadrados. Mas o mercado aquecido fez com que os consumidores passassem a comprar imóveis com outras destinações para usá-los como quitinetes. Salas comerciais e escritórios se transformaram em residência para milhares de brasilienses que fazem questão de morar mais próximo do trabalho. E essa deturpação no uso dos imóveis trouxe inúmeros impactos para a área tombada de Brasília.

Diante disso, o Ministério Público do Distrito Federal está fiscalizando novas construções e exige que as construtoras divulguem para os consumidores quais são os usos permitidos para cada imóvel. Algumas empresas compram terrenos comerciais ou destinados a escolas e igrejas, por exemplo, para vender como apartamentos. A prática traz transtorno para os futuros moradores e donos de escritórios. Um dos riscos da deturpação de uso é colocar, lado a lado, uma quitinete residencial e uma clínica médica, por exemplo, que vão produzir lixo hospitalar e doméstico concomitantemente. Além de ser um perigo para a saúde, também representa uma fonte de conflitos entre a vizinhança.

Os prédios da Avenida Comercial do Sudoeste e os edifícios das entrequadras da Asa Norte são um exemplo desse problema. Os imóveis localizados no segundo piso das quadras comerciais deveriam ser escritórios, mas a maioria é usada como residência. O principal impacto disso está no trânsito, já que os estacionamentos são planejados com uma finalidade, mas recebem um fluxo muito maior do que o previsto. E o adensamento irregular do Plano Piloto desvirtua todo o planejamento da cidade, representando um risco para o projeto urbanístico.

No início de junho, a Promotoria de Defesa da Ordem Urbanística do Ministério Público do DF entrou com uma ação civil pública contra a Administração Regional do Sudoeste e contra a construtora Faenge por conta da construção de um empreendimento na quadra EQRSW 7/87/8, entre o Sudoeste e o Cruzeiro. As normas (1) de gabarito do terreno só permitem a edificação de imóveis para fins institucionais, ou seja, centros de saúde, escolas, igrejas ou entidades culturais e beneficentes. Mas os promotores receberam uma denúncia de que os imóveis estariam sendo vendidos como quitinetes residenciais.

;Pelo conteúdo do encarte publicitário juntado à representação, no qual se anuncia a alta valorização de imóveis ;compactos; localizados no Sudoeste, bem como a oferta de diversos serviços característicos de unidades residenciais, ficou configurado irregular desvio de finalidade, com empreendimento com destinação residencial;, detalha o MP.

O alvará de construção foi concedido em 16 de março deste ano pela Administração do Sudoeste. Depois de analisar os projetos e as plantas, a Agência de Fiscalização do Distrito Federal (Agefis) alertou que ;o projeto de arquitetura aprovado possui características de edificação de salas comerciais ou talvez unidades residenciais do tipo ;quitinete;;. ;As unidades imobiliárias têm entre 33m; e 50m;, típicas de quitinetes. A Administração do Sudoeste aprovou projeto em descumprimento ao planejamento urbano do local e se omitiu em fiscalizar a adequação da atividade aprovada;, diz outro trecho da denúncia da Promotoria de Defesa da Ordem Urbanística.

Em decisão proferida em 23 de junho, o juiz Carlos Alberto Silva, da Vara de Desenvolvimento Urbano e Fundiário, determinou que a Faenge paralisasse a venda de unidades institucionais como imóveis residenciais, sob pena de multa de R$ 50 mil para cada venda em desacordo com a legislação urbanística. O magistrado também obrigou a construtora a informar a todos os compradores de que os imóveis só podem ser usados para fins institucionais, ou seja, para a abertura de escolas, entidades religiosas ou culturais, jamais para o uso residencial. Mas ele autorizou a continuidade das obras.

O diretor da Faenge, Leonardo Ávila, já respondeu ao pedido de informação da Justiça e procurou o MP para assinar um Termo de Ajustamento de Conduta se comprometendo a adotar uma postura que o Ministério Público julgue correta. ;O alvará de construção foi emitido de forma totalmente legal, tanto que a Justiça não embargou as obras.;

A Assessoria de Imprensa da Administração do Sudoeste informou que a aprovação dos projetos se baseia nas plantas apresentadas pelas construtoras e que eventuais deturpações do uso não podem ser identificadas no momento da apresentação desses projetos. O vice-presidente do Conselho Comunitário do Sudoeste, Marco Aurélio de Andrade Barros, conta que o desvirtuamento do uso de imóveis complica ainda mais o trânsito da região. Ele destaca que a comunidade quer evitar que isso se repita. ;Isso é comum em Brasília, as pessoas se mudam para escritórios e depois tentam transformá-lo em imóvel residencial, até para pagar menos IPTU;, argumenta Marco Aurélio.


1 - Regras para a edificação
As normas de gabarito definem todas as regras para a edificação de um terreno. Essas normas determinam a altura máxima, o coeficiente de ocupação do terreno e a destinação da área, ou seja, se os imóveis a serem construídos devem ser para uso residencial, comercial, institucional ou se são destinados para atividades do poder público.


A BRASÍLIA DE LUCIO COSTA
"As extensas áreas livres, a serem densamente arborizadas ou guardando a cobertura vegetal nativa, diretamente contígua a áreas edificadas, marcam a presença da escala bucólica"
Brasília Revisitada


Verde ameaçado
>> Adriana Bernardes

A Brasília de Lucio Costa, com cada coisa em seu lugar e muito verde entre uma coisa e outra, frequentemente provoca estranhamento ao olhar destreinado dos forasteiros. Mas depois de compreendê-la, fica fácil adotá-la como o segundo lar. Pelo menos foi assim com o servidor público Wesley Fonseca, 35 anos, três deles morando na Asa Norte. ;A sensação que eu tinha era a de que esses espaços vazios deixavam tudo mais distante, frio, árido. Hoje, sinto justamente o contrário. O verde aproxima, não só as pessoas, como os diversos setores da cidade.;

O verde propositadamente preservado nos traços de Lucio Costa predominam no que ele batizou de escala bucólica, aquela que faz a conexão entre as áreas edificadas e não edificadas. Mas ao longo dos anos, esses espaços de domínio público vêm sendo sistematicamente privatizados por uma parcela da sociedade civil com omissão ou anuência dos governos.

De concessão em concessão, a paisagem se transforma. Moradores do Sudoeste decidiram dizer não a mais uma delas e travam uma batalha judicial para impedir que uma área de cerrado entre o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) e o Eixo Monumental dê lugar a 22 blocos com seis andares cada. Alegam que a quadra aprovada por órgãos do Governo do Distrito Federal e até pela superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) não está prevista no Brasília Revisitada, de Lucio Costa, documento no qual o urbanista discute a preservação, a correção e o avanço de áreas urbanas ao redor do Plano Piloto. ;Só conseguimos barrar a expansão na Justiça porque o Iphan e o Instituto Brasília Ambiental (Ibram) deram a permissão;, comenta Elber Barbosa, presidente do Conselho Comunitário do Sudoeste. ;Ali é uma área verde que pertence a escala bucólica e deve ser preservada do jeito que está;, diz.

Invasão de carros
Em maior ou menor grau, sobram exemplos de abusos. No comércio local da 207 Norte e na 713 Norte, as áreas verdes cederam lugar a amplos estacionamentos. Na 207, os veículos abriram caminho, destruíram a grama e agora levantam poeira no ir e vir. O comprador Silvio Ferreira, 60 anos, estacionou ali. ;Acho que as lojas deviam ter investido em estacionamento subterrâneo;, defende. Uma das administradoras do Bloco C, Silvia Viana diz que o improviso provoca descontentamento nos comerciantes por conta da poeira. ;Pedi à administração que tome providências: se é estacionamento regular, que eles pavimentem ou joguem uma brita. Se for clandestino, que tome as providências cabíveis;, exige Silvia.

Outro exemplo de invasão dos carros onde deveriam estar árvores ocorre entre os blocos das quadras 713/714 Norte. O espaço coberto de terra e de carros entristece a aposentada Walda Resende de Almeida, 75 anos, 15 deles na Asa Norte. ;Olhe só para isso, é um lugar triste. Se tivesse verde, seria muito diferente;, acredita. Já a comerciante Marília Medeiros, 57 anos, defende a regularização do estacionamento. ;Se plantar árvores e colocar banquinhos, os traficantes, os usuários de drogas e as prostitutas vão achar uma beleza. E depois, onde vai colocar tanto carro, na cabeça?. O melhor para nós é um estacionamento;, defende.

A SOLUÇÃO PARA A CIDADE
"É fundamental mitigar as ameaças que geralmente ocorrem em sítios localizados em espaços urbanos. Entretanto, o que vemos é ausência de planejamento estratégico do território. As decisões tomadas pelas diversas gestões de governo são míopes, protelatórias, improvisadas e descontínuas"
Mônica Veríssimo, geógrafa e presidente da Fundação Sustentabilidade e Desenvolvimento

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