Cidades

A capital que o candango inventou

Nascida para ser polinucleada, com cidades separadas por grandes vazios, Brasília já tem território urbano inteiriço. A migração contínua mudou, desde o início, o projeto de centro administrativo e fez surgir uma metrópole, como constatou pesquisa da arquiteta Jusselma Duarte de Brito

postado em 25/07/2010 07:44
Nascida para ser polinucleada, com cidades separadas por grandes vazios, Brasília já tem território urbano inteiriço. A migração contínua mudou, desde o início, o projeto de centro administrativo e fez surgir uma metrópole, como constatou pesquisa da arquiteta Jusselma Duarte de BritoO senso comum, dentro e fora de Brasília, diz que o Distrito Federal é composto por um Plano Piloto e vários aglomerados urbanos ao largo, muito distantes uns dos outros, compondo uma grande cidade polinucleada. Até foi assim, mas, há pelo menos quatro décadas, a mancha urbana da capital é uma só, como ocorre em qualquer outra metrópole. Guardadas preciosas diferenças, as do Plano Piloto, Brasília está se transformando numa cidade como outra qualquer.

Foi essa a constatação mais importante da tese de doutorado da arquiteta Jusselma Duarte de Brito, transformada no livro De Plano Piloto a metrópole, a mancha urbana de Brasília, lançado durante as comemorações dos 50 anos da capital. Depois de escarafunchar os arquivos da Caesb, do DER, do Arquivo Público, da Terracap, da Novacap e da Secretaria de Planejamento, Jusselma reconstruiu, em mapas, o surgimento de Brasília a partir dos primeiros movimentos de terra e de tratores em 1955 até 2006.

A pesquisadora reconstituiu passo a passo as obras de infraestrutura, desde a chegada dos primeiros caminhões pela Estrada de Corumbá, hoje BR-070, desde Anápolis até o Sítio Castanho, onde a nova capital começava a surgir. Muito antes de se fazer o cruzamento do Eixo Monumental com o Eixo Rodoviário (o Eixão), a cidade já surgia em obras esparsas ; estradas, hidrelétricas, aeroporto, Palácio da Alvorada, Brasília Palace Hotel.

Para acompanhar a ocupação urbana do Distrito Federal desde o início, Jusselma Brito foi buscar pistas nos arquivos das empresas responsáveis pela infraestrutura da capital ; os projetos de rodovias e vias, de fornecimento de água e de luz, de acampamentos, olarias, barragem, granjas-modelos. Pontos onde surgia uma Brasília desobediente, contra a vontade da maquete planejada. Jusselma seguiu essa pista levada por um princípio comum às cidades, inclusive a Brasília: elas crescem na correnteza do asfalto e das redes de água e de luz. Onde há um poste, logo haverá um barraco.

Foi essa a lógica da leva inesperada de migrantes que começou a chegar a Brasília desde 1956, muito maior do que previam os planejadores. Mas era preciso barrar a entrada dos paus-de-arara. Para isso, se construiu um posto do Instituto Nacional de Imigração e Colonização (Inic) num lugar que, algum tempo depois, seria a região mais habitada do Distrito Federal. O centro de recepção do Inic foi montado à margem da Estrada de Corumbá, porque era por ela que chegava o maior número de migrantes. ;Passados apenas seis meses do lançamento do edital para o concurso do plano urbanístico da cidade, o território de Brasília já comportava população próxima dos 30 mil habitantes;, escreve Jusselma Brito.

Foi ao lado do posto do Inic que, em 1958, surgiria a primeira nova cidade-satélite de Brasília, Taguatinga (a Cidade Livre estava, até então, destinada a ser dissolvida tão logo Brasília fosse inaugurada. Planaltina e Brazlândia já existiam antes do começo das obras). A localização do novo aglomerado urbano era estratégica: ficava às margens da Estrada Parque Contorno (EPCT), a DF-001, rodovia que contorna, num círculo completo, a área do Plano Piloto, seguindo o divisor de águas da Bacia do Paranoá. Em seguida, surgiram Sobradinho e Gama, em 1960. Importante citar que todas elas foram criadas a distância regulamentar do Plano Piloto (entre 25km e 30km para a Rodoviária). Até então, Brasília era uma cidade polinucleada ; vários núcleos em redor de um núcleo central, como rezava o urbanismo moderno.

Com o fim do mandato de Juscelino, em janeiro de 1961, Brasília entrou num túnel de instabilidade política ; entre 1960 e 1964, a cidade teve sete prefeitos nomeados, criaram-se CPIs (Comissões Parlamentares de Inquérito) para investigar as obras e nesse contexto cresceu o movimento para levar de volta ao Rio de Janeiro a máquina do Estado brasileiro. Ainda assim, constatou a pesquisadora, a migração continuou torrencial ; dos 140 mil habitantes do fim de 1960, eles já eram quase o dobro em 1964, ano do golpe.

Instalado, o regime militar gostou da ideia de fazer de Brasília o seu quartel-general. Surgiu, então, uma política de consolidação da cidade acompanhada de forte repressão aos movimentos pela fixação dos assentamento. Na democracia e na ditadura, as ondas migratórias continuavam forçando as fronteiras do Plano Piloto. Com o surgimento do Guará, em 1969, colado ao Setor de Indústria e Abastecimento, estava definitivamente rompida a ideia de que Brasília era um arquipélago. Além de estar situado bem próximo ao Plano Piloto, o Guará também está encostado no SIA. A mancha urbana começava a tomar uma forma contínua.

Especulação
O surgimento do transporte de massa ligando Núcleo Bandeirante, Guará, Taguatinga e Ceilândia ao Plano Piloto, em meados da década de 1970 (Ceilândia havia surgido em 1971), aproximou as cidades e as margens das vias de ligação passaram a ser sedutores espaços para a construção de mais aglomerados urbanos. Ao mesmo tempo, a Estrada Parque Contorno facilitou o surgimento dos condomínios do Lago Sul, como ocorreu nas bordas da BR-020, da Estrutural e da Estrada Parque Taguatinga (EPTG).

A explosão urbana deu-se nos anos 80, quando o Distrito Federal já abrigava mais de 1 milhão de habitantes, com a criação de Samambaia, Riacho Fundo, Quadras Lucio Costa, Santa Maria, Recanto das Emas. Ao mesmo tempo, houve acentuada expansão urbana das cidades-satélites já existentes.

A pesquisadora registrou: ;O comando local nas mãos de um só governante entre os anos de 1988 e 1994 [Joaquim Roriz] possibilitou a atuação de um insuperável fundador de assentamentos urbanos, criados na intenção de promoverem farta distribuição de lotes a famílias carentes, visando à formação de um curral eleitoral no âmbito da capital.;

A essa altura, o Plano Piloto já não mantinha a pureza de seu formato de avião. Espraiava-se ;com a urbanização das grandes áreas circundantes, se alinhavando ao Setor de Indústria e Abastecimento e, a partir dele, integrando-se ao Guará I e II;, escreve Jusselma Duarte de Brito. As bordas da Estrada Parque Dom Bosco (EPDB) já alcançavam as margens da EPCT com o aparecimento transbordante dos condomínios. A pesquisadora observou que a mancha urbana registrada em 1986 ;não ultrapassou as fronteiras externas do seu registro anterior. Cresceu por dentro, nos interstícios de assentamentos já estabelecidos;. Eram as cidades dizendo que queriam ficar mais próximas umas das outras.

; ENTREVISTA - JUSSELMA DUARTE DE BRITO

Se Brasília não é mais uma cidade polinucleada, o que, afinal, diferencia a capital do país das outras cidades nascidas ao modo tradicional?
O modelo de ocupação da cidade foi originalmente polinucleado e, nesse sentido, fugiu, intencionalmente, à lógica da cidade tradicional. O caminho de retorno que nos levou à configuração atual, muito mais próxima do modelo urbano conhecido, levou décadas para interligar a grande distância mantida entre o centro e a periferia.O que diferencia Brasília é que, na origem desse tecido rarefeito e polinucleado, herdado da urbanística inicial, está a intenção de manter sob controle rígido a ocupação da ;cidade central;, o que gerou uma dinâmica particular de crescimento, adequadamente aclamada como representante de um urbanismo segregacionista. Se pensarmos na cidade como um todo, uma peculiaridade que podemos apontar em Brasília é o seu centro, o Plano Piloto, bastante diferente daquela localização que na maioria das cidades é tipicamente densa e verticalizada. Fora isso, o aglomerado vem se tornando cada vez mais interligado, bem diferente do que foi há pouco mais de 10 anos e mais distante ainda da cidade polinucleada dos anos inaugurais. Embora, do ponto de vista espacial, seu território espraiado ainda cause algum estranhamento aos habituados a urbanizações mais antigas, a tendência é que seu tecido se integre cada vez mais.

Brasília é cantada pelo seu planejamento urbano e arquitetura, mas o que se viu, ao longo do tempo, foi que ela se formou pela ação contínua da migração e da ocupação espontânea ou planejada. Teria sido esse o grande motor de consolidação da nova capital? É esse, afinal, o seu grande mérito?
Sem dúvida, a mudança da capital para o interior e sua capacidade urbanizadora superaram expectativas. Em meados do século 20, o centro do país registrava baixo índice de concentração urbana, totalmente alterado com a implantação de Brasília. E nada mais justo, e necessário, que dimensionar o papel daqueles que construíram de fato a cidade e aqui se instalaram (mesmo que nem tão bem recebidos assim). Ao tratarmos da evolução da ocupação de Brasília, é necessário promover uma leitura social do processo e entender que a cidade (como conceito, não somente Brasília) possui, essencialmente, uma dimensão política. A outra face do controle da ocupação informal em Brasília, que permeou de extremo a extremo a história urbanística da capital, deu origem a maior parte das cidades-satélites do aglomerado, ou seja, os movimentos sociais foram o motor da ocupação. E o que é Brasília hoje? O Plano Piloto (este, sim, objeto de plano urbanístico)? Não, a cidade real é uma metrópole.

Quando se esgotou o crescimento em arquipélago? Foi na década de 1970? É possível identificar a razão desse esgotamento?
Como concepção de modelagem de ocupação, o crescimento em arquipélago se esgotou após a escolha do sítio do Gama, ou seja, junto à inauguração de Brasília. A partir daí, guardando algumas particularidades de cada caso, todas as novas áreas urbanizadas surgiram próximas ou mesmo em tecido contínuo aos núcleos existentes. Não é difícil entender a razão disso. O que ocorreu em Brasília pertence à lógica urbana. O crescimento das cidades tende a se orientar pela rede de caminhos existentes e a se polarizar pela presença de infraestrutura. Entre outras questões, isso ocorre por razões técnicas; por outro lado, porque o crescimento contínuo sai mais em conta, permite a criação de corredores de transporte e uma melhor organização das atividades. Além disso, o tecido urbano já infraestruturado é atraente também para ocupações espontâneas. Áreas urbanizadas oferecem possibilidades de ligações clandestinas às redes de energia elétrica e água, e são mais permeadas por caminhos. Também em Brasília os assentamentos populares se entranharam em tecidos formais ou bordejaram caminhos para o centro urbano.

Os vazios de Brasília são um forte componente de seu urbanismo, ao mesmo tempo em que sugerem qualidade de vida e respeito ao meio ambiente. A senhora é contra eles?
Os vazios e as áreas verdes que você cita são típicos do projeto urbanístico do Plano Piloto e, nesse caso, não vejo risco de mudança drástica após o tombamento. A ocupação de interstícios da metrópole é outra questão e, nesse caso, acredito ser este o melhor viés. Pior seria alastrar os limites da cidade, distanciar ainda mais sua população do centro urbano (e de empregos) e tornar o processo de urbanização ainda mais caro e impactante.

Como lidar com a feroz especulação imobiliária?
Essa questão é bastante complexa e não é peculiar a Brasília. Quanto mais os domínios das cidades são disputados, mais complicada é a questão e o papel do Estado nesse controle. No caso de Brasília, vejo duas particularidades: por um lado, uma grave sobreposição entre a atividade política e a posse das terras da capital não foi nada saudável para a cidade. Por outro, e agravando-se pelas razões citadas, o acesso ao seu território e à sua infraestrutura não foi, historicamente, nem um pouco democrático. Brasília continuará crescendo e sendo objeto de pressão, e o caminho menos adequado é desconsiderar as demandas reais. Caso as respostas não venham a tempo pelos meios oficiais, além dos valores imobiliários inalcançáveis pela maior parte da população que testemunhamos, os parcelamentos informais continuarão ocorrendo e, para evitar a fiscalização, serão ainda mais distantes dos fronteiras urbanas que conhecemos hoje.

Por que a senhora diz que Brasília não é uma cidade planejada e sim desenhada?
O Plano Piloto ; e vamos considerar que ele hoje representa apenas uma pequena parcela da metrópole ; foi objeto de projeto urbanístico, ou seja, desenho estabelecendo o ordenamento físico de suas funções e que muito bem representa o pensamento modernista dominante na década de 1950. No caso de Brasília, não é adequado falarmos em processo de urbanização planejado. Planejamento urbano envolve várias disciplinas, lida com aspectos técnicos e políticos relacionados ao uso do espaço, estratégias de desenvolvimento, em escala regional, inclusive.

Dentro e fora

A década de 1990 é forçada a prestar atenção a uma demanda imobiliária represada: a da classe média. O crescimento desse mercado deu-se com a ajuda da Estrada Parque Contorno. Quem tinha carro podia morar longe, bastava pegar a EPCT para ter acesso ao percurso casa-trabalho-trabalho-casa. A ocupação planejada e a espontânea cresciam simultaneamente. Ao mesmo tempo, a região do Entorno registrava crescimento ainda maior que Brasília. Entre o fim dos anos 90 e o começo de 2000, surgiram expansões no Guará, em Ceilândia e em Samambaia.

As duas últimas décadas do século 20 ;foram suficientes para mais que duplicar o total de terras ocupadas do quadrilátero de Brasília, transformadas em novas cidades por ocupações conduzidas pelo governo local ou em loteamentos privados.; O crescimento foi, ao mesmo tempo, para dentro e para fora e fortemente inclinado para o Sudoeste. Onde, afinal, Brasília nasceu ; na Fazenda do Gama, na Cidade Livre, em Taguatinga. De pouco adiantou a guerra à ocupação desarvorada, movimento que ganhou força a partir de 1995, tanto na opinião pública quanto nas ações de fiscalização e regularização fundiária. ;A mancha urbana seguiu crescendo com incrível velocidade também pelo arranjo fortuito de loteamentos privados.;

Ao chegar às conclusões de sua extensa e minuciosa pesquisa, a pesquisadora Jusselma Brito destacou um trecho de um texto de Oscar Niemeyer, publicado no Correio Braziliense de 27 de agosto de 2008. Diz o arquiteto: ;Minha ideia era voltar um pouco ao passado, lamentar que a proposta de uma cidade menor não tivesse sido adotada, e, para ser coerente, reclamar dos que pretendem aumentá-la ainda mais, multiplicando os problemas dessa cidade que, a meu ver, podia ser mais simples, como uma flor pousada naquela terra agreste e abandonada;;.

Jusselma faz parte do time de arquitetos que considera a capital do país muito mais que um Plano Piloto, sendo preciso adensá-la para facilitar a vida de quem não pode morar perto da área central. ;A sede da capital brasileira não pode ser entendida apenas como palco das decisões políticas e administrativas do país;, avalia. Se, diz a arquiteta, o descomunal crescimento de Brasília ;é símbolo de concentração de riquezas;, ele, ao mesmo tempo, se traduz em ;grande pressão demográfica sobre serviços públicos e terra;.

De nada vale, defende a arquiteta, ;o controle acirrado do solo urbano se não forem oferecidas opções adequadas de expansão.; É preciso, destaca, ;democratizar o acesso à cidade e solucionar problemas acumulados, o que inclui uma expansão mais igualitária da infraestrutura urbana.;

Na internet

; Para acompanhar a apresentação em power point da da tese do doutorado, basta acessar
http://stat.correioweb.com.br/cbonline/ 2010_07/PLANO. ppt

De Plano Piloto a metrópole, a mancha urbana de Brasília %u2014 Jusselma Duarte de Brito, editado pelo Sindicato da Indústria da Construção Civil do Distrito Federal e pelo Senai. O livro faz parte da coleção Brasília Histórica 50 anos, organizada pela Faculdade de Arquitetura da Universidade de Brasília.

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