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Estudante de medicina passou 22 dias trabalhando em hospital de uma pequena cidade do Quênia

Jovem aluno viveu uma experiência que faculdade nenhuma lhe daria: voluntário de uma organização que atua em causas humanitárias, ele trabalhou durante quase todo o mês em um hospital de urgências e aprendeu muito com um povo para o qual a dor é insignificante diante da cruel realidade daquele país

postado em 27/07/2010 08:18
Em ação, no hospital: precariedade é a marca maior da instituiçãoDurante 22 dias, o estudante do sexto semestre de medicina da Universidade Católica de Brasília (UCB) Matheus Beleza, 20 anos, esqueceu o que era conforto. Abriu mão do banho quente, do amplo apartamento que divide com os pais na Asa Sul, dos vários amigos e das noitadas de Brasília. Trocou o cenário cômodo do Plano Piloto por uma casa com paredes de barro na África, em uma pequena cidade do Quênia, Thika, a 40km de Nairóbi, a capital. Sob o risco de contrair malária, cólera ou qualquer outra doença grave, Matheus substituiu as tardes de estudo em uma faculdade particular pelo aprendizado na emergência de um hospital público cuja situação faz a rede de saúde do Distrito Federal parecer o paraíso.

A todo momento, o menino de sorriso largo da Asa Sul, filho de médico, acostumado com tudo que há de bom, tinha sua vocação profissional e valores testados. Precisava atender vítimas das demonstrações mais cruéis da violência. Elas pediam socorro enquanto sangravam com ferimentos considerados brutais até mesmo para a realidade brasileira mais crua. Matheus teve de ajudar a cuidar de pessoas com facadas na cabeça e de outras que haviam sido envenenadas para serem abusadas sexualmente ; entre outras situações críticas de abandono, como tumores que havia anos precisavam ser operados. ;Eu quis conhecer uma realidade nova e também levar a minha contribuição para um país que precisa de muita ajuda. É extremamente nobre fazer algo pelo outro;, resumiu Matheus.

Tudo isso em um centro de saúde sem condições mínimas de higiene e com falta de material e aparelhos. A princípio, é possível mentalizar uma comparação com os hospitais do DF, mas os problemas no Quênia são ainda mais expostos. O estudante participou do projeto de voluntários das organizações não governamentais Fadhili e Internacional Volunteers. Soube do programa de intercâmbio por um amigo.

Jovem aluno viveu uma experiência que faculdade nenhuma lhe daria: voluntário de uma organização que atua em causas humanitárias, ele trabalhou durante quase todo o mês em um hospital de urgências e aprendeu muito com um povo para o qual a dor é insignificante diante da cruel realidade daquele paísEle desembarcou na África em 1; de julho, após percorrer um longo caminho até chegar ao continente distante. Para realizar a empreitada, era preciso dinheiro. Era época de Copa do Mundo no continente. E o Quênia tem praias e safáris concorridos. ;Eu achei que seria fácil, que meus pais poderiam ajudar. Mas os custos de uma viagem como essa são elevados. Gastei mais de R$ 12 mil. Tive de tomar muitas vacinas, comprar luvas, gaze, coisas que eu imaginava que não haveria lá. Só consegui com o apoio dos patrocinadores;, explicou. Três empresas de Brasília ajudaram Matheus.

Caos
Ao desembarcar no Quênia, ele percebeu: os desafios se mostraram ainda maiores. Matheus pôde escolher em que setor queria atuar. Optou pelo atendimento na emergência. ;Eu queria atuar em uma área em que pudesse praticar muito, aprender e ensinar ao mesmo tempo. Sabia que não ia mudar nada sozinho, mas queria contribuir. Vi médicos formados que não sabiam dar determinados tipos de ponto e eu mostrei a eles como fazer;, orgulha-se. ;Eu estava acostumado a ver muita coisa ruim aqui em Brasília. O Hospital Regional de Ceilândia (HRC) é onde os alunos da Católica aprendem a prática. Mas no Quênia é muito diferente, tudo é ainda mais precário.;

Na mesma maca em que se sentava um doente grave, um outro deitava-se para receber apenas pontos em um ferimento leve, com o risco de contrair enfermidades incontáveis. O sistema ali ainda é tribal. ;Se chegava alguém de uma tribo diferente da do médico, o tratamento entre doutor e paciente era, quase sempre, o pior possível. Eles tratam o doente como um animal;, conta. Em Thika, os pacientes não devem tocar nos médicos. ;Eles (médicos) são considerados superiores. Uma mulher tocou em mim, com muita dor, e brigaram demais com ela. Fiquei constrangido. Lá os usuários não têm informação, não pensam em processar quem erra. Foi muito difícil ver isso. Se um médico do DF passasse um dia lá, ia achar aqui o paraíso;, compara.

Matheus, entre alguns quenianos: pobreza, resignação e solidariedadeA precariedade da estrutura assustou o estudante. ;Eu levei óculos para me proteger do contágio do HIV e de hepatite, por exemplo, durante os procedimentos. Também usava duas luvas em cada mão. Por isso levei vários pares meus e não usei só do hospital para não acabar. Os médicos riam de mim. Eles iam dando os pontos no paciente e o sangue respingava muitas vezes nos olhos dos médicos. Ninguém ligava;, lembrou. Matheus diz nunca ter pensado em desistir.

Em meio à dureza da realidade, Matheus também viu e treinou a própria sensibilidade. ;Encontrei muita gente boa. Apesar dos problemas do sistema de saúde, todos ali têm boa vontade em atender. De um jeito ou de outro, eles não deixam o paciente sair sem socorro. Aproveitei as diferenças culturais para dar sugestões sobre higiene e como tratar melhor quem procura ajuda.; Uma lição Matheus jamais vai esquecer: o modo como os quenianos suportam a dor. ;Eles chegam em um estado terrível e não choram. Nem mesmo as crianças. Parecem ter sido treinados para suportar a dor. Diante da realidade na qual os quenianos vivem, aquele é o problema menor.;

Nas ruas
Fora do hospital, Matheus também aprendeu muito. Sentiu na pele branca o que é ser vítima de preconceito, sensação nunca antes experimentada por ele. ;Eu andava na rua e o pessoal me chamava de ;gringo;. Me olhava como se eu fosse um ET. Eles são gente boa, riem muito. Mas eu ficava incomodado em ser o diferente. Muitos deles nunca tinham visto um branco na vida. Quando alguém me olhava estranho, eu pensava em correr. Mas como eu ia disputar corrida com um queniano?;, brincou. A violência nas ruas, porém, é coisa séria. ;Um dia, vi um homem agonizando. O povo parava, olhava, mas não chamava a polícia. Lá não existe bombeiro. Tinha que esperar alguém passar e colocar no próprio carro.;

Longe, mas em casa
Matheus foi recebido por uma família simples e afetuosa de Thika. Dividiu a casa com outras 11 pessoas, entre elas, nove voluntários estrangeiros. Recebeu amor de mãe de Ann Waniga, 47 anos. ;Ela me chamava de filho, me dava comida boa, limpa e cuidava de mim. Eu passava dias difíceis, mas, quando voltava para aquela casa simples e via ;minha mãe; com uma energia muito boa, um sorriso enorme, parecia estar em um castelo;, descreveu. A cama na qual Matheus dormia precisava ser cercada de cortina, para evitar os perigosos mosquitos. Ele tinha de comprar garrafinhas de água para beber, afinal o sistema de tratamento de água de Thika não era dos mais confiáveis. ;Diferentemente de outras cidades, dava para lavar o rosto, mas beber, jamais;, relatou.

O sorriso dos quenianos, porém, contrastava com a pobreza. Parecia amenizar os problemas. ;Eles são incrivelmente felizes;, constatou Matheus. Mais que a medicina, o hospital em si e a rotina naquela cidade ensinaram o rapaz a viver. A dar valor ao próprio país e aos privilégios que tem nas mãos. A experiência aumentou ainda mais a vontade de ajudar quem não teve a mesma sorte que ele. Mais do que nunca, a frase de Mahatma Gandhi estampada no perfil do Orkut de Matheus faz sentido: ;Quem não vive para servir não serve para viver;.

"Eu quis conhecer uma realidade nova e também levar a minha contribuição para um país que precisa de muita ajuda. É extremamente nobre fazer algo pelo outro"
Matheus Beleza

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