postado em 31/07/2010 08:55
Brasília, moderna e mística, acolhe desde 1959 uma mineira neta do escravo que fundou a Irmandade Nossa Senhora do Rosário em Carmo do Cajuru, Minas Gerais. A brava candanga Doralice de Oliveira Barbosa, 73 anos, é orientadora espiritual de uma comunidade de aproximadamente 70 pessoas que se reúne ao primeiro sábado de cada mês para reverenciar Nossa Senhora do Rosário (ou Iemanjá Oguté) e pedir a proteção dos orixás. Tudo no mesmo terreno. Capela e centro espírita erguem-se lado a lado numa chácara no Setor de Transportes Rodoviários e Cargas, atrás do Conjunto Lucio Costa.Neta de escravo, Doralice nasceu e cresceu numa comunidade negra de Carmo do Cajuru, a pouco mais de 100km de Belo Horizonte. Aos 13 anos, mudou-se para a capital mineira, seguindo o roteiro de duas irmãs mais velhas. Foi trabalhar de babá na casa do engenheiro Mário Meirelles, em BH. Convidado pelo presidente Juscelino Kubitschek para participar da construção de Brasília, Meirelles veio em 1956 e logo assumiu a chefia do Departamento de Organização e Administração Municipal (Doam), da Novacap. Mulher e filhos do engenheiro vieram em agosto de 1959 e, com eles, Doralice, a ex-babá que já se considerava e era considerada filha de criação.
A moça mineira não gostou nada do que viu. De um palacete em Belo Horizonte, a família Meirelles foi morar numa casa de madeira num acampamento próximo ao aeroporto. O engenheiro apontava para o local onde a Esplanada estava sendo construída, e tudo o que Dora via era cerrado. ;Olhávamos para o Plano Piloto durante o dia e eu não via nada. Olhávamos à noite e víamos uma cidade. Eram os esqueletos iluminados.; A capital que só existia na escuridão não acalmou a moça chorona. ;Por que você está chorando tanto?;, perguntou o pai de criação. ;Isso é lugar de se morar?;, ela respondeu. No dia seguinte, ele a levou para ver as obras de Brasília. ;Quase morri. Não existia prédio, era tudo esqueleto.;
Mediunidade
Com a mudança da família do engenheiro para a casa de Águas Claras, que mais tarde se transformaria na residência oficial do governador do Distrito Federal, Doralice começou a se acostumar às diferenças da nova capital. Ela diz que o nome Águas Claras foi escolhido pela mulher de Mário Meirelles, dona Helena, por conta dos muitos olhos d;água que havia no terreno. ;Um deles subia até quase meio metro acima do solo;, lembra-se Dora. A filha de criação só saiu da casa dos Meirelles para se casar, em 1966.
Apesar de nunca ter deixado de participar das festas do congado em Carmo do Cajuru, Doralice ainda não havia desenvolvido sua espiritualidade. Foi em Brasília que ela começou a ter visões e ouvir vozes. ;Achei que estava enlouquecendo.; Até que, numa tarde de sábado, na pensão que ela e o marido montaram na W-Sul, teve a primeira incorporação. ;Na minha família todos nós temos a mediunidade à flor da pele, mas ninguém via aquilo como uma religião.; Depois daquelas primeiras experiências de corporificar uma entidade, Doralice começou a pensar em se dedicar intensamente à espiritualidade. ;Eu precisava dar uma direção para o meu sangue.; A mineira-candanga quis recuperar a tradição criada pelo avô para que ficasse de herança para seus descendentes ; três filhos, dois netos e muitos sobrinhos.
No início dos anos 70, Doralice passou num concurso público para ser copeira da Câmara dos Deputados, onde trabalhou até a aposentadoria, em1999. Havia mais de 10 anos que ela morava na chácara do Setor de Cargas e mantinha a Tenda Afro Ax; Ylê ;gbonan para trabalhos espirituais, que se diferem de muitos outros do candomblé pela ausência de sacrifícios de animais, jogos de búzios ou de tarô e artes adivinhatórias do gênero. ;Não quero atrapalhar o que recebi da África. Nosso centro foge um pouco dos demais porque a nossa intenção é simplesmente resgatar o que recebemos de herança dos orixás, não fazemos magia. Desfazemos, quando há possibilidade. Meu centro está ligado à Igreja Católica, mais do que a qualquer outra coisa.; Dora recebe uma entidade, Vó Maria Ana, sua bisavó. É ela quem a conduz no seu propósito de levar ;paz e harmonia aos homens;.
Rituais
No terreno à margem de uma pista recém-aberta, na confluência do Conjunto Lucio Costa com a Estrada Parque Taguatinga (EPTG), Doralice conseguiu reproduzir a atmosfera comunitária da infância em Carmo do Cajuru. São três confortáveis casas de um pavimento, uma ao lado da outra, onde moram ela, o filho casado e a sogra. A pequena capela com telha de zinco se posiciona perpendicularmente à fileira de casas. No altar, Nossa Senhora do Rosário, Santa Efigênia, São Benedito e Nossa Senhora Aparecida. Uma nova capela, maior e mais bonita, está sendo construída ao lado.
Um pouco mais recuado está o centro espírita, salão para os rituais religiosos, com três salas ao fundo. Uma delas é quase uma instalação: sopeiras de louça branca contornam as paredes e em frente de cada uma delas há uma vela; algumas estão acesas, outras não. É o lugar em que cada iniciado deve agradecer ao anjo da guarda pela proteção obtida. Noutra sala, que Doralice considera a menina dos olhos, há duas macas destinadas ao atendimento espiritual e homeopático de doentes.
Ao centro do salão há um tronco de gameleira, o assentamento principal (o altar do candomblé) sobre o qual repousa Xangô, a cabeça de um belo homem negro, escultura comprada no Rio de Janeiro. No imenso terreno, uma reverência a Oxóssi num outro assentamento ao lado de um frondoso pé de aroeira. Pendurada na árvore, uma cobra de borracha com a bocarra aberta e a língua ameaçadora. Toda a árvore está enfeitada com fitas coloridas e espelhos quadradinhos, o que quebra um pouco a expressão brava (pupilas vermelhas flutuando em córnea amarela).
A cada outubro, Dora lidera uma excursão para Carmo do Cajuru. Perto de 70 pessoas vão participar da Congada de Nossa Senhora do Rosário. ;Digo que é um carnaval religioso.; O grupo também se apresenta em Brasília, quando convidado, como aconteceu nas comemorações dos 50 anos da cidade. Pelas fotografias, vê-se que é uma festa de tradição fortemente africana. A maioria dos participantes é negra. Quem comanda o ritual é Eli Benedito, 78 anos, irmão de Dora, o general da congada, também um bravo candango, morador do Guará. ;Não sou ninguém sem meu irmão, como ele não é ninguém sem mim.;
Quando menina, Doralice ouvia sua mãe dizer: ;Pra pessoa bater no peito e dizer que é feliz ela tem de possuir três qualidades que ela não compra, adquire no dia a dia: a fé em Deus, uma família unida e bons amigos;. A orientadora espiritual não gosta se ser chamada de ;mãe de santo;. E explica: ;Não posso ser mãe de um orixá, sou uma zeladora;. A brava candanga da cidade moderna que voltou às suas origens para recuperar a tradição religiosa da família parece ter se apropriado da sabedoria da mãe. Os olhos reluzem quando ela canta: ;Eu sou vó Maria Conga das sete ondas do mar. A Senhora do Rosário mandou me chamar para trazer o fundamento guardado no fundo do mar;. Doralice resgatou a tradição da congada, reencontrou a mediunidade ancestral e assim vai eternizar o seu sangue. E tudo isso numa cidade moderna.
A nossa intenção é simplesmente resgatar o que recebemos de herança dos orixás, não fazemos magia;
Doralice de Oliveira Barbosa, zeladora de orixás