A vida inteira de Antônio Francisco Alves de Sousa, de tão espremida, coube dentro de um quarto de paredes verdes. E ainda assim o quarto, com cama, guarda-roupa, fogão, geladeira, dois sofás pequenos e uma televisão, ficou grande. É ali, naquele espaço alugado numa casa da Vila Planalto, que ele busca o passado que lhe pertence, mas nunca conseguiu tocar.
Tudo o que sabe é o que ouviu falar, o pouco que lhe contaram - com frases curtas, reticências e muito silêncio em meio a lágrimas. Tudo que viu encontrou em duas fotos antigas e desbotadas. E foi assim, sempre pela metade, que ele construiu um presente cheio de buracos.
Esta é a história deste piauiense de 47 anos, que há mais de 27 luta sozinho para encontrar - literalmente - sua outra metade. Antônio busca o irmão gêmeo (idêntico) de quem foi separado assim que nasceu. Para que tudo isso se torne mais claro, é preciso voltar a 4 de outubro de 1962, em Teresina, capital do Piauí.
Naquele dia, na Maternidade São Vicente de Paulo (hoje Miguelina Rosa), dois meninos iguaizinhos nasceram. A mãe, moça jovem (contava pouco mais que 20 anos), solteira, deu à luz gêmeos. Sem condições de criar os filhos, Isabel Lopes de Oliveira - conhecida como Belita - decidiu que daria os bebês.
E assim o fez. Com duas semanas de vida, Antônio Francisco foi parar na casa de outra mulher, a lavradora Isabel Alves Cardoso, então com 34 anos. Essa mulher, casada, mãe de uma menina mais velha, recebeu Antônio como se filho fosse. Teve festa na casa humilde no dia em que chegou. Os pais adotivos moravam em Espírito Santo, currutela de Benerval Lobão, cidadezinha a 30 minutos da capital.
Teve festa na casa sem luz feita de taipa. A vizinhança correu para ver o menino de Isabel e José, o Zezão. Aliás, na casa de Zezão, quando a festa começava, não tinha hora para parar. O tocador tocava até o dia raiar. A vida seguiu. O menino cresceu. Aprendeu, como os pais, a lidar com a terra. Mas algo o inquietava. Ele se achava fisicamente diferente dos pais.
E começou a ouvir comentários. "Diziam que eu não era filho dos meus pais. Isso me deixava triste, eu chorava. Perguntava pra minha mãe e ela desconversava, dizia que era conversa do povo", ele conta. O tempo insistiu em correr. Um dia, num festejo do Menino Jesus, numa cidadezinha vizinha, o menino que contava 12 anos ouviu uma mulher perguntar à mãe dele: "É esse o menino que vocês criaram?".
No meio da rua
Antônio Francisco não teve mais dúvida: "Naquele dia, eu tive a verdade". De volta ao lugar onde morava, indagou à mãe sobre sua história. Isabel teimava em não contar. "Hoje, entendo que ela me escondeu por medo de me perder." Mesmo com todas as negativas de Isabel e de Zezão, Antônio sabia que não era filho biológico. "Eu só queria saber onde tava o começo de tudo, qual era a minha história."
Aos 18 anos, Antônio Francisco teve uma conversa definitiva com Isabel. "Foi quando ela começou a me contar aos poucos. Disse onde eu tinha nascido, que minha mãe biológica era solteira, já tinha outros filhos e me deu porque não podia me criar", ele diz. Mas o mais revelador ainda estava por vir. Isabel também lhe disse que ele era gêmeo. "E que o outro, igualzinho a mim, tinha ido para uma família de gente de posse em Teresina. O nome dele era Antônio Maria."
Procura incessante
O mundo de Antônio Francisco desabou. Nem mais pelo fato de ter a certeza do que já desconfiava havia anos. Mas pela revelação de ser igual a uma pessoa. Naquele dia, ele decidiu que ia atrás do irmão gêmeo e de todo o começo da existência de ambos. "Mas só procurei de verdade quando completei 20 anos, saí de casa e tive liberdade de ir atrás sem que minha mãe ficasse magoada."
Para sustentar a família, Antônio Francisco foi trabalhar na capital. Ali, fez buscas pela cidade. Nada. Foi ao hospital onde nascera. Os registros não mais existiam. Isabel contou até onde sabia. "Muita coisa ela também não sabia me responder." Do Piauí, com a morte do pai, ele foi morar em Manaus. Lá, arrumou emprego como mensageiro de um hotel. "Em Manaus, a busca continuou", diz. Viveu ali por cinco anos, sustentando a família.
Antônio pulou do Amazonas para São Paulo. Virou cozinheiro de restaurante. Em outubro de 1996, chegou a Brasília. Desde que aqui pisou, mora na Vila Planalto. É garçom, por meio de empresa terceirizada, lotado no Conselho Nacional de Justiça. Anos atrás, fuçando o passado que não conhece, achou uma prima biológica - filha de uma irmã de Belita, sua mãe.
A prima lhe contou que Belita, a tia, teria morado em Brasília, nos anos 1980. E que depois voltou para o Nordeste e nunca mais teria dado notícia. Pode haver irmãos dele por aqui. E, se ainda estiver viva, em torno de 70 anos. Essa prima contou mais: provavelmente o irmão dele, Antônio Maria (se é que esse nome ainda permanece), seria médico no Piauí. E que haveria pelo menos mais três irmãos, um deles chamado Emanuel de Jesus. Foi tudo que soube.
Com Antônio Francisco, a prima deixou uma única foto amarelada de Belita, ainda jovem. É o passado que ele tenta costurar e entender. E que a cada dia parece mais passado. "Tenho vontade de conhecer ela (a mãe biológica), mas meu maior desejo é ver meu irmão gêmeo. Eu amo ele. Preciso saber como ele é, o que faz, onde vive. Eu preciso desse momento", diz, com a voz embargada.
Tormento e lágrimas
Hoje, naquele quarto alugado da Vila Planalto, Antônio Francisco vive uma vida pela metade. "Falta exatamente a outra metade de mim", avalia. E assume que a adoção lhe deixou cicatrizes. Aos 47 anos, o devoto de Nossa Senhora de Fátima não se casou nem teve filhos. "Fui abandonado uma vez. Não daria conta de ser de novo", diz, explicando o motivo de ser sozinho. E fala do irmão: "Me olho no espelho e vejo o rosto dele. Perco noites de sono assim".
Disfarçando as lágrimas, ele revela: "Às vezes, acordo bem e sem mais nem menos fico triste. Meu pensamento vai direto nele. É como se sentisse a presença dele perto de mim. Se eu morrer e não conhecer ele, vou morrer triste". E, num sonho recorrente, o irmão idêntico aparece sempre numa estrada de terra. "Ele tá nela (na estrada), mas não consigo ver o rosto."
Pelas ruas, Antônio Francisco procura pelo irmão. "Em todos os lugares aonde vou, vejo se ele tá." Na verdade, é uma busca pela própria imagem. Por um igual. Assim, os dias e as noites dele têm sido de busca e espera incessantes. "Tenho muitos amigos, no trabalho sou muito querido, passeio, mas falta alguma coisa. Falta ver meu passado."
Lá em Teresina, vive Isabel, hoje com 80 anos, a mãe adotiva. É Antônio Francisco quem a mantém. "Ela é tudo pra mim. Ano passado, passou nove meses comigo aqui. Saía pro trabalho e deixava o almoço pronto em cima do fogão. Não queria que ela fizesse nada", conta. Naquele quarto onde Antônio Francisco espremeu sua vida, cabem Isabel e seu amor incondicional ao filho adotivo, as lembranças do irmão que nunca viu e a vontade de mudar o começo dessa história ou pelo menos fazer um fim diferente.
Hoje, Antônio Francisco tem certeza de que a mãe sempre o amou. Com medo de perdê-lo, Isabel silenciou, não teve coragem de lhe contar a história a que tinha direito de saber. Deixou que ele tivesse, no meio da rua, a certeza da adoção. "Mas eu sei que ela só não queria que eu sofresse", reflete.
Para amenizar a dor da procura, o homem que carrega bandejas escreve cartas que ninguém lerá. "Geralmente, faço isso nas madrugadas, quando perco o sono. Escrevo e depois rasgo." E ouve música. E chora, principalmente se a canção fala de mãe e filho. "Vou procurar pelo meu irmão até o fim. Meu coração pede. Se não, vou ter vivido pela metade", diz. Naquele quarto cheio de passado aprisionado, um homem tenta dar sentido ao que vive hoje. E, quem sabe, ser de fato livre.
Solidariedade
Quem, de verdade, tiver uma pista que possa levar Antônio Francisco a encontrar a família pode ligar prar 9989-9581.