postado em 01/08/2010 08:52
Além das limitações, Fabiana Amaral Almeida, a Fafá, 30 anos, Alessandro Silva Cruz, 32, e Ariano Nóbrega, 43, têm em comum o amor à escola. É no colégio que eles interagem com o mundo, ficam felizes, desenvolvem habilidades: sentem-se vivos. A manutenção deles nesse ambiente favorável só é possível graças à insistência de familiares. A Constituição não garante atendimento educacional especializado sem restrições etárias às pessoas com deficiências - o trio tem deficit cognitivo. Os sistemas de ensino do país interpretam que, ao completar 18 anos, elas não têm mais direito legal à rede regular de ensino, e dificultam a permanência delas em sala de aula. Em Brasília, a terminalidade se dá aos 21 anos. Mas um grupo luta para mudar essa realidade. E conseguiu emplacar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC 347/2009) que visa proporcionar a esses seres humanos educação integral irrestrita: em qualquer idade e nível de instrução. O texto está em análise no Congresso Nacional.
A iniciativa partiu de familiares que sentem na pele as barreiras impostas pela rede de ensino do Distrito Federal para abrigar adultos com deficiências - assim como ocorre em todo o país. Eles conseguiram sensibilizar a deputada federal Rita Camata (PSDB - ES), que assinou a proposta. A expectativa das famílias é de que os parlamentares promulguem a PEC no segundo semestre, que começa nesta semana. No último dia 13, a proposta avançou na Câmara dos Deputados. O deputado Paulo Delgado (PT-MG), relator da proposta em Comissão Especial, deu parecer favorável à alteração constitucional.
Luta
"A aprovação da PEC é a única forma de garantir educação às pessoas com deficiências. Assim, não vamos mais correr o risco de chegar à porta da escola e ouvir que o adulto com deficiência não tem direito de estudar e está roubando o lugar de outra pessoa", afirma a pensionista Maria do Socorro Nery da Silva Cruz, 51 anos, tia de Alessandro. Em outubro de 2007, Socorro se surpreendeu com o bilhete enviado pela direção da escola onde o rapaz estuda, no Guará. O documento de renovação de matrícula informava que Alessandro migraria para a educação profissionalizante. Em vez de frequentar as aulas regularmente, passaria a participar de oficinas pedagógicas, uma ou duas vezes por semana. "Não é que as oficinas sejam ruins, o problema é reduzir o contato dele com o ambiente acadêmico. Ele é louco pela escola. Quando chegam as férias, ele já pergunta que dia vão acabar", relata Socorro.
Alessandro sofreu uma lesão cerebral durante o parto, que comprometeu o desenvolvimento do rapaz. A mãe não resistiu às complicações da operação e morreu. "O Estado errou com ele duas vezes. Primeiro com a negligência médica que ocasionou a lesão (os médicos protelaram para realizar o parto de Alessandro, que por isso precisou ser forçado) e, depois, negando a ele a permanência na escola", reclama Socorro. Mesmo com o documento em mãos, a tia, que também é mãe, não entregou os pontos. Mobilizou a classe política em busca de amparo. E conseguiu acesso ao então secretário de Educação, José Valente, que manteve Alessandro na escola. O episódio serviu para a família do rapaz perceber que não lutava sozinha. "Vimos que milhares de pessoas aqui no DF também sofrem com essa falta de amparo. A gente não tem a quem recorrer."
O pai de Fafá também está na briga pela permanência da filha em um colégio especializado, na Asa Sul, durante cinco dias da semana. "Fabiana é uma pessoa fácil de lidar, mas ela precisa de escola para seguir a vida. A legislação fala, num certo momento, na terminalidade da educação, só que a educação não acaba para ninguém", acredita o empresário Fernando Almeida, 62 anos. O diagnóstico de Fafá não é fechado. A única coisa que os médicos afirmam é que a moça tem paralisia cerebral. Às vezes, ela aparenta idade mental de uma criança de um ano e meio, por ter dificuldade na fala. Por outro lado, sabe nadar, montar a cavalo e até dançar sozinha, habilidades desenvolvidas graças ao apoio pedagógico escolar. "Ela sabe brincar com as pessoas, sabe ser carinhosa, sabe ser feliz no mundinho dela. Quem disse que ela precisa ter um currículo? A grande questão é: será que isso é tão importante para o Estado? Se a pessoa não é produtiva, não serve para a sociedade?", questiona o pai, que adotou a moça quando ela tinha uma semana de vida.
Para a psicológica e educadora Arabela Nobrega, 50 anos, nunca é tarde para a educação. "O Ariano começou a ser alfabetizado há 4 anos. Depois de décadas acumulando estímulos e maturidade", relata. Arabela é irmã de Ariano Nóbrega. O terceiro personagem desta história. Ele possui uma síndrome rara, que comprometeu o sistema neurológico e afetou a visão e a audição do rapaz. Ele começou a estudar aos 13 anos. Frequentou escolas especializadas e inclusivas. E agora parte outra etapa. Vai aprender a ler em braile. "É um processo pedagógico que não pode ser interrompido por conta da idade", complementa a irmã.
Resistência
Assim como Alessandro, Fafá e Ariano, milhares de famílias no DF lutam para manter parentes com deficiências cognitivas em sala de aula. O gerente de Educação Especial da Secretaria de Educação, Délcio Ferreira Batalha, explica que o Conselho de Educação do DF determinou o limite de 21 anos para prestar atendimento na rede regular. "Na verdade, o aluno não é excluído, passa a ter um outro atendimento, que não é de segunda a sexta. Após o certificado, o aluno com deficiência é transferido para o Ensino de Jovens e Adultos (EJA) ou para oficinas no Serviço de Orientação de Trabalho", explica Délcio. Segundo ele, o serviço de orientação é fornecido em apenas dois dos 13 Centros de Ensinos Especiais do DF.
"A Constituição não foi totalmente explícita ao garantir o direito a educação às pessoas com debilidades mentais e o Estado coloca resistência para que elas não venham mais a frequentar o ensino. Esses adolescentes e adultos ficam descriminados", explica Sérgio Domingos, defensor público da Vara da Infância e da Juventude do DF.
Ele conta que já tentou mover na Justiça várias ações em favor de pessoas que o procuraram com esse problema. "O Judiciário sustenta que falta previsibilidade legal para mantê-los na escola. Hoje, precisamos buscar subterfúgios para que o Estado venha a cumprir essa demanda", alerta o defensor. Foi ele quem elaborou a minuta da PEC apresentada pela deputada Rita Camata na Câmara dos Deputados. Estima-se que, no Brasil, existam mais de 25 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência. Mais de 600 mil frequentam a escola. Cerca de 375 mil são atendidos em escolas especializadas. E mais de 260 mil em instituições regulares. A maioria (60%) está inserida na rede pública de ensino.
A saga de um grupo especial de brasilienses pode trazer uma mudança significativa para pessoas com deficiências do Brasil inteiro. "A ideia é que a normatização torne explícito o direito à continuidade da educação", espera Sérgio.
O que diz a lei
O palavra terminalidade é utilizada no inciso II do artigo 59 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). De acordo com a redação, os sistemas de ensino assegurarão terminalidade específica para aqueles alunos que não puderem atingir o nível exigido para a conclusão do ensino fundamental, em virtude de suas deficiências, e aceleração para concluir em menor tempo o programa escolar. No DF, a terminalidade na rede regular de ensino se dá aos 21 anos.
Modificação proposta:
Constituição Federal
"Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:
I
II
III (texto atual) atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino. "
A PEC (347/2009) sugere o seguinte complemento ao texto: %u201Cem qualquer faixa etária e nível de instrução%u201D. A nova redação ficaria dessa forma:
"Art. 208. dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:
I
II
III (modificado pela PEC) atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino, em qualquer faixa etária e nível de instrução."
Trâmites:
Por trás da promulgação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), há um trâmite exigente. Primeiro, sua forma é julgada constitucional ou inconstitucional pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Vencida essa etapa, cria-se uma comissão especial para avaliar a proposta. Se o texto for aprovado nessa comissão específica, segue para apreciação em Plenário. Ela é votada em dois turnos. Em cada um deles é preciso que três quintos dos parlamentares (308) votem a favor da emenda. Depois de passar pela Câmara dos Deputados, a PEC é encaminhada ao Senado Federal. Os senadores apreciam a PEC em dois turnos. Para o texto ser incluído na Carta Magna, é preciso que ele seja aprovado em cada seção por três quintos dos senadores. A PEC não precisa ser sancionada pelo presidente da República. Desde a promulgação da constituinte, em 1988, até hoje foram feitas 63 emendas à Constituição. Atualmente, 37 PECs estão sendo analisadas em comissões especiais.