postado em 02/08/2010 08:22
A história de Miluse Nerádil, 90 anos, daria um filme. Daqueles cheios de suspense, tensão e até momentos de horror. Mas com final feliz. Quem vê a senhora de personalidade forte, porém sossegada, cabelos brancos como nuvens e olhos de um azul-mineral em sua casa em Taguatinga não imagina os segredos de seu passado. Mas essa história começa bem antes dali. Aos 31 anos, Miluse fugiu da República Tcheca ; em seu tempo, ainda Tchecoslováquia ;, onde nasceu, após sobreviver à Segunda Guerra Mundial.Ao fim das batalhas, em 1939, ela e o marido, Frantisek ; à época, professor universitário ;, acreditavam na renovação do país. Mas, nos anos 40, veio o golpe comunista. O sistema no qual ;o homem é escravo do governo;, como ela mesma descreve, não combinava com os sonhos e personalidades do casal. Era pouco demais para quem tinha esperança de voltar a ser feliz depois da devastação das bombas e tanques de batalha.
O país ainda estava destruído, havia fome e frio quando o comunismo chegou. Em um período de guerra, quando ainda era solteira, Miluse passara três dias dentro de um buraco ao lado de pai, mãe e os irmãos. Não havia água ou comida. Certo dia, os barulhos de explosões pararam. A mãe acreditou que era tempo de paz.. Saiu do esconderijo em busca de água para a família. Enganou-se.
Ao chegar a um poço, uma bomba que estava dentro de um balde explodiu. A mãe de Miluse morreu depois de passar dias em um hospital. De tão triste, isso tudo parecia ficção. Mas era real. Três meses depois, o pai de Miluse faleceu. A família suspeita que o motivo tenha sido o desgosto. Anos depois, Miluse casou-se com Frantisek, um homem 24 anos mais velho e divorciado. Teve um filho, que herdou o nome do pai. Moravam todos em uma fazenda de horizonte largo e macieiras. O regime socialista abalou novamente a rotina.
Fuga
Quando estava grávida pela segunda vez, ela lembra, o regime opressor ficou ainda mais insuportável. ;Os comunistas entraram na nossa fazenda e cortaram as árvores. Queriam que a gente trabalhasse na nossa terra, mas como escravos do governo. Jamais aceitaríamos;, relatou, com sotaque ainda carregado. Com uma filha na barriga e um menino de cinco anos nos braços, Miluse fugiu com o marido e outras oito pessoas. ;Deixamos toda a nossa vida para trás. Nossa casa, a fazenda, amigos, parentes. Uma tristeza sem fim.;
Todo um esquema teve de ser preparado com a ajuda de um ;atravessador; de pessoas para chegar à fronteira com a Alemanha. Lá eles embarcariam em um navio rumo a um destino novo, onde quer que fosse. ;A gente não podia levar nada. Nem uma mala. Porque os comunistas revistavam as pessoas nas ruas. Se você fugia, ficava marcado;, lembrou, deixando transparecer desconforto em reviver tais momentos.
O filho foi carregado nas costas do pai, dentro de um matagal de pinheiros, no escuro. Enquanto isso, Miluse tentava proteger os próprios olhos e os da criança dos galhos secos. Quase foram pegos várias vezes. Sofreram também assaltos durante revistas de policiais. ;Ficamos sem nenhum dinheiro. Eles pegavam tudo nas revistas.; Mas durante a noite conseguiram entrar na Alemanha. Dali, pegaram um barco rumo ao Rio de Janeiro. ;Entre os destinos que podíamos escolher, o Brasil era o mais quente. Como meu marido sofria com uma doença nos rins, podia piorar no frio;, explicou.
Vida nova
A família encontrou solidariedade no Brasil. ;Tínhamos direito a três dias de hotel, pelo que pagamos ao homem que nos guiou na fuga. Depois disso, não saberíamos o que fazer. Mas demos sorte. Encontramos um outro tcheco, que tinha terras no Paraná e nos doou um pedaço de terra para plantar uma vida nova;, relatou. Foram três anos naquele estado do Sul, onde, nos primeiros meses de estada, a filha, Vera, nasceu. Miluse aprendeu rápido o idioma, mas estranhava a tradição de comer arroz e feijão todos os dias. ;Hoje em dia já me acostumei.;
Frantisek e Miluse transformaram-se em agricultores. Viviam felizes, apesar das dificuldades para criar os filhos, mas almejavam um pouco mais. O marido queria estar mais perto do governo do país. Precisava lutar por patrocínio para construir uma máquina agrícola que havia inventado para regar o solo. Vieram parar em Sobradinho. ;Plantamos muito e fomos felizes. Nossas verduras eram levadas para o Plano Piloto e eram expostas em vitrines;, lembrou. Mas a casa onde a família vivia era emprestada. ;Tivemos que devolver a casa e mudamos para Taguatinga. Nossos filhos já estavam grandes e nos ajudaram com o sustento, como fazem ainda hoje;, afirmou Miluse.
Mudanças
Em 1977, Miluse ficou viúva. Teve de reaprender a viver novamente. Mesmo saudável e bonita, com mais ou menos 50 anos (ela não se lembra bem), não quis mais namorar. ;Deus me livre de amarrar outro homem no meu pescoço!”, declarou, em meio a gargalhadas. Ela passou a morar com o filho e com a esposa dele, também em Taguatinga. Sem o marido e com os anos passando cada vez mais rápido, Miluse precisava se ocupar. ;Não gosto de desperdiçar meus dias. Aproveito o tempo todo. Se não tivesse um problema de artrose, estaria semeando, plantando e colhendo até hoje.;
Mas o crochê e as horas de televisão ; Miluse adora programas que falam sobre o universo, as estrelas ; não bastavam para instigar a mente. Ela contou à sogra de seu neto, Irenice Nascente, 66 anos, que havia começado a aprender violino, aos 10 anos, com um saudoso tio, na República Tcheca. ;Eu não pensava que ainda podia aprender, mas a Irenice me incentivou tanto que eu me matriculei na Escola de Música de Brasília, quando eu tinha mais de 60 anos;, contou.
Diva
Miluse descobriu um talento. Parecia segurar o universo que ela tanto admira nas mãos quando empunhou pela primeira vez o violino. ;Essa foi a melhor parte de toda a minha vida. Sinto uma paz imensa quando toco. Uma alegria sem tamanho. Descobri um prazer sem igual. Parecia que minha vida toda tinha voltado a outros tempos;, descreveu. Depois de muito treinar com um instrumento musical emprestado, um neto lhe deu um violino. ;Parecia que ele tinha me dado o mundo de presente.;
Miluse fez parte da Orquestra Art Brasília, da Escola de Música de Brasília. Apresentou-se em diversas ocasiões. Sentiu-se importante, talentosa, uma diva! As lições musicais, porém, tiveram de ser interrompidas, há cinco anos, porque ela desenvolveu artrose e não consegue mais andar de ônibus sozinha. Mais um golpe do destino. Dia 29 último, ela completou 90 anos.
No sábado, teve festa, com direito a música, salgadinhos, doces e muito carinho da família e de amigos. ;É um prazer estar perto dela. É uma heroína, sem dúvidas;, disse Irenice, a sogra do neto e incentivadora. A filha de Miluse, Vera, hoje aos 59 anos, se emociona ao falar do que aprendeu com a mãe. ;Ela tem uma paciência enorme, apesar de tudo que passou. Encara a vida com serenidade e pensa que é sempre tempo de aprender. É o que mais admiro nela.; Miluse já sabe a maior herança que deixará aos filhos: um DVD com imagens dela, tocando violino. A heroína quer ser lembrada como merece: em sua plenitude.