postado em 16/08/2010 08:39
;Nos Emirados Árabes, está sendo construída uma cidade sem veículos. Uma cidade totalmente artificial, climatizada e mecanizada. Caríssima. Em contrapartida, nós temos a maior cidade do mundo ambientalmente criada para o pedestre, sustentável e pagável.; A cidade brasileira em questão é a capital federal e a análise é da arquiteta e pesquisadora da Universidade de Brasília Marilene Menezes. Ela é autora do estudo O lugar do pedestre no Plano Piloto de Brasília, defensor da tese de que o aspecto humano do projeto do urbanista Lucio Costa para o Plano Piloto, que previa vias autônomas e independentes para pedestres, vem sendo destruído pela falta de planejamento e pelo crescimento desordenado. ;A cidade mais moderna do mundo está se tornando uma cidade absurda porque desconsidera o trânsito a pé;, diz Marilene.Parte dos problemas, argumenta a pesquisadora, deve-se ao fato de que Lucio Costa concebeu as quadras abertas e amplas nas quais todo o espaço poderia ser trilhado por pedestres, mas não o desenhou. Entre 1960 e meados de 1970, centenas de quilômetros de passeios foram construídos pela Novacap no contorno das superquadras da Asa Sul, mas a ação foi interrompida, comprometendo a malha ortogonal ; rotas próprias para pedestres ; de Brasília. Sem infraestrutura, os caminhantes passaram a trilhar caminhos sobre o gramado e se espremer nas vias de automóveis.
;Mesmo assim, o pedestre apreendeu a lógica do desenho da cidade e estabeleceu os seus percursos no Plano Piloto caminhando nos espaços livres dos setores funcionais e entre os prédios;, explica a pesquisadora. Os usuários são moradores das quadras e, principalmente, pessoas que vivem em outras cidades do DF e trabalham no Plano Piloto.
O senso comum costuma pregar que Brasília foi feita para o motorista ; segundo o Departamento de Trânsito, existe um carro para cada 2,2 habitantes no DF. No entanto, a arquiteta acredita que a capital federal não foi criada para os carros, mas para ser usada democraticamente. Em muitos casos, fazer o percurso em duas pernas é mais perto do que sobre quatro rodas. Quem sai a pé da quadra 600 e vai até as 900 seguindo as fitas de passeio anda cerca de 2 quilômetros. ;De carro, como o caminho é sinuoso, a distância pode até dobrar;, calcula. A consolidação da malha ganhou força quando as faixas de pedestre e a campanha de priorização do trânsito de pedestre foram instituídas em Brasília.
Caso dos estudantes Danielle Ferreira, Hallisson de Castro, ambos com 15 anos, e Lara Islaine, 13. Os três jovens moram no Jardim Ingá, entorno do DF, e estudam na Asa Sul. Quando chegam a Brasília, saltam na W3 Sul, onde ficam os colégios. Para retornar ao Jardim Ingá, precisam descer da W3 até o Eixinho de baixo. Os três afirmam que sempre recorrem ao percurso em linha reta. ;O trecho mais difícil é entre as 900 e as 500. Muitas vezes não há faixas. Depois dali, sempre usamos o passeio que liga as 300 às 200;, conta Halisson. As fitas são conectadas por faixas de pedrestres. Para eles, no entanto, a movimentação do pedestre é pouco guiada por informações. ;Não há placas para quem está a pé. Elas são todas viradas para as pistas. Uma pessoa que não conhece direito o lugar tem muito mais trabalho para se encontrar;, acredita Danielle.
Erros comuns
Entretanto, há falhas também na implementação das faixas. Algumas estão fora das rotas do pedestre e na ponta das comerciais das 300, ocupadas geralmente por supermercados. Muitas vezes a faixa foi pintada em um sentido da via e ignorada no outro. Para completar, as lojas costumam invadir a área do pedestre colocando escadas ou acesso à garagem.
Originalmente, as fachadas do comércio de entrequadras deveriam ser voltadas para a área residencial e não para a via como é atualmente. Isso porque um pedestre tem tempo e pode parar para prestar atenção nas lojas. Um motorista, não. O pedestre é prejudicado duas vezes, ressalta a pesquisadora. Ela aponta a estrutura de entrada e saída de supermercados, por exemplo, como inimigas do trânsito livre. ;Quase todos são elevados e é preciso subir escadas. Não estou pensando só em pessoas que têm dificuldades de locomoção e usam cadeiras de roda. Falta a linearidade, continuidade do piso para o pedestre;, aponta.
Enquanto a Asa Sul apresenta problemas mesmo sendo amplamente urbanizada, na Asa Norte a desconsideração com quem caminha é mais explícita. As fitas de passeio são incompletas ou sequer existem ao redor de inúmeras quadras, como nas SQN 214 e 213. A primeira é apontada pela pesquisadora como ;a pior de todas;. A superquadra viola os preceitos de nivelamento como item essencial da acessibilidade: diversos prédios residenciais elevaram seus terrenos, tornando impossível a passagem a pé por entre os pilotis.
A parte norte do Plano Piloto tem outro agravante: a maioria dos edifícios das comerciais têm degraus. Marilene interpreta a escolha como um retrocesso. A barreira dos degraus, segundo ela, atrapalha mais do que um simples pedestre. ;Como uma mãe com um carrinho de bebê chega às lojas? E um cadeirante? A Asa Norte foi tão deturpada que voltou ao passado.;
Marilene precisa de apenas alguns minutos para se lembrar de outro mau exemplo, desta vez na Asa Sul. O prédio do Centro Clínico Via Brasil, na 910 Sul, é dono de um lance generoso de escadas. ;É um enorme contrasenso, já que pessoas doentes, muitas com dificuldades de locomoção, vão ao centro buscar tratamento;, diz. Tudo isso, advoga a pesquisadora, vai contra a concepção inicial da capital do país.