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Acervo de Athos Bulcão está quase no olho da rua

Entidade que cuida das obras do maior artista plástico de Brasília está acuada entre a pressão da Justiça, que determinou despejo do imóvel ocupado, e a lentidão do Governo do Distrito Federal para concluir a doação do terreno destinado à construção da sede definitiva

postado em 17/08/2010 07:00
De todos os criadores de Brasília, ele foi o único que veio e ficou para sempre. Tem mais obras no Plano Piloto que Oscar Niemeyer. São mais de 260 azulejos e painéis colados em espaços públicos e privados. Um dos mais importantes artistas plásticos brasileiros está quase no olho da rua. Não ele propriamente dito, que morreu em 31 de julho de 2008, mas a fundação que guarda parte de seu acervo, protege suas obras, preserva sua memória, divulga sua importância e ensina crianças e adolescentes a conhecê-la e admirá-la.

Projeto da nova Fundação Athos Bulcão, que originalmente é prevista para o Eixo MonumentalA situação é dramática, mas não deixa de ser patética: ameaçada de despejo (1) em 29 de junho último, a Fundação Athos Bulcão não tinha para onde ir até terça-feira da semana passada. A solução de emergência ; a transferência da instituição para um anexo da antiga sede do Touring Clube do Brasil, em frente ao Conic ; gorou. O prédio é propriedade privada e está alugado para a Secretaria de Segurança Pública, que se negou a ceder parte do edifício à fundação alegando ser ;inviável manter uma instituição privada dentro de um prédio público;, conforme informou a assessoria de imprensa. Mas o Touring não é um prédio público, pertence a um empresário da cidade e está em processo de tombamento, segundo informou o superintendente do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Alfredo Gastal.

Com o relógio da Justiça correndo implacavelmente, a Fundação saiu à procura de um lugar onde pudesse se abrigar. Encontrou acolhida em outra entidade de direito privado ; a Fundação Brasileira de Teatro (FBT), que cedeu cerca de 100m2 do subsolo do Teatro Dulcina para a obra de Athos Bulcão. Mas é preciso lutar contra o tempo: o novo prazo termina em 26 próximo. ;Impossível fazer a mudança nesse período, precisamos de mais 60 dias e estamos lutando na Justiça para conseguir isso;, informa Valéria Cabral, secretária-executiva da Fundação, que, nos últimos dias, esteve à beira do desespero.

Quando soube que a fundação não poderia mais se mudar para os boxes do Touring, Valéria ficou no limite da aflição. ;A cada dia aparece uma nova dificuldade. Será que o Athos não foi bom o suficiente para esta cidade? O que fazem os políticos, os envolvidos com a cultura do país e principalmente os da cidade, que não ajudam uma instituição que trabalha preservando a obra de um grande artista brasileiro?; Não era pouca a indignação da secretária-executiva da fundação: ;Não sei mais o que fazer e nem a quem recorrer. Já falei com tanta gente e ninguém ajuda! Que país é este? Que capital do Brasil é esta?;

No dia seguinte ao desse desabafo, Valéria Cabral esteve com o secretário executivo da FBT, Augusto Brandão, a quem revelou seu drama e perguntou se ele tinha um cantinho para Athos. ;Não tenho espaço sobrando, tenho limitações, mas algum jeito a gente dá pra não deixar vocês na rua;, respondeu Brandão. Na mesma semana, acompanhada do arquiteto da instituição, Valéria visitou o Teatro Dulcina e encontrou, debaixo do palco, uma área onde pode instalar, temporariamente, o acervo, a equipe e os projetos. ;Em casa de pobre sempre cabe mais um;, resume o secretário-executivo do Dulcina. Serão necessárias, porém, adaptações emergenciais.

1 - Falta de recursos
A primeira vez que a Fundação Athos Bulcão recebeu notificação de reintegração de posse foi em abril de 2008. A Justiça considerou que ela não havia cumprido sua parte num convênio no qual se comprometia, 10 anos antes, a fazer a reforma de uma parte do imóvel ocupado no Setor de Autarquias Norte. Valéria Cabral diz que a instituição não cumpriu o assinado porque não conseguiu recursos.

Etapas do descompasso

25 de abril de 2008 ; A Fundação Athos Bulcão recebe a primeira notificação para desocupar o prédio da Secretaria de Cultura, onde estava desde 1994.

31 de julho de 2008 ; Morte de Athos Bulcão.

2 de julho de 2009 ; Assinatura de termo de concessão de terreno para a sede da Fundação, no Lote 12 do Setor de Divulgação Cultural.

21 de março de 2010 ; Começo da campanha de doação para construção da sede.

22 de abril de 2010 ; Seduma informa que aguarda pronunciamento da Subsecretaria de Planejamento Urbano.

29 de junho de 2010 ; Fundação Athos Bulcão recebe notificação do Tribunal de Justiça determinando a desocupação em 10 dias. Prazo é prorrogado para 26 de julho.

14 de julho de 2010 ; A secretária executiva da Fundação, Valéria Cabral, visita o Edifício Touring, para onde o acervo de Athos seria transferido até a construção da sede.

9 de agosto de 2010 ; Valéria Cabral é informada de que o secretário de Segurança Pública do DF recusa-se a ceder uma parte do prédio do Touring para a Fundação.

10 de agosto de 2010 ; O Teatro Dulcina cede um pedaço do subsolo para receber a Fundação Athos Bulcão.


Confusão na burocracia

A construção da sede definitiva da fundação depende da conclusão do processo de concessão de uso do Lote 12 do Setor de Divulgação Cultural, no canteiro central do Eixo Monumental, ao lado da Sala Cássia Eller. Esse é cipoal ainda mais emaranhado. Tudo começou com uma solenidade pomposa, realizada em 2 de julho de 2009, com a participação do então vice-governador Paulo Octávio e da então administradora de Brasília, Ivelise Longhi, na qual se anunciava, sob os acordes do quarteto da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional, a assinatura do termo de concessão de uso do lote pela fundação. Parecia a garantia da preservação da memória do mais importante artista da cidade.

Muito longe disso. Mais de um ano depois, o processo se movimenta a passos claudicantes na Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente (Seduma). Só recentemente foi concluído o levantamento da vegetação do terreno para conferir se ali não há nenhuma espécie tombada ou em risco de extinção. Não há. Mas ainda faltam outras tramitações: uma se encontra no Conselho de Planejamento Territorial e Urbano do DF (Conplan), e em seguida o documento terá de ser transformado em projeto de lei para ser encaminhado a votação na Câmara Legislativa. Pelas estimativas da Seduma, o processo só entrará na pauta do Conplan em 26 de setembro. Ou seja: só em 2011, com nova legislatura, chegará aos distritais.

Fosse só isso, ainda era possível se tentar entender o emaranhado processo de concessão de uso de um lote para a Fundação Athos Bulcão. Mas ainda há muito mais confusão. No entendimento do diretor-técnico da Terracap, Luiz Antônio Reis, o processo estava concluído desde que a companhia registrou em cartório a doação do Lote 12 do SDC para o Governo do Distrito Federal ; procedimento necessário, tendo em vista que a Terracap não pode fazer doação de lotes para entidades privadas. Depois desse procedimento legal, houve a cerimônia em julho de 2009. ;Não sei por que precisa de lei, mas se precisa, que se faça a lei;, diz Reis.

Campanha
O secretário de Cultura, Silvestre Gorgulho, lembra que o procedimento para a concessão de uso do lote para a Athos Bulcão se assemelha ao que foi adotado para o terreno do Clube do Choro, também entidade privada. Ele se propõe fazer o convênio com a fundação para que, finalmente, a sede possa ser construída. Enquanto isso, na Seduma, o processo de concessão do terreno segue rumo à Câmara Legislativa. Um governo, vários governantes.

Tentando não perder o prumo e seguir adiante com a mudança para o subsolo do Teatro Dulcina, Valéria Cabral tenta assimilar o espanto: ;Não é justo que a cidade não tenha sensibilidade para com esse homem que nos deixou tanta beleza;. O assombro vem de longe: a campanha de doação realizada entre abril e maio deste ano para a construção da sede, com farta veiculação em emissoras de tevê, resultou em R$ 350, que, somados às doações via internet, chegaram a R$ 3.350. O valor da execução do projeto do arquiteto João Filgueiras Lima, o Lelé, para a sede, está estimado em R$ 4 milhões. Ou seja: faltam R$ 3.996.650.

A essa altura, esse é um problema desejado. A Fundação pretende obter os recursos por intermédio dos fundos de fomento cultural. Há duas providências urgentes. Uma é fazer a mudança para o Teatro Dulcina antes que o juiz Arnaldo Correa Silva, da 4; Vara da Fazenda Pública do DF, decida determinar a reintegração de posse do imóvel onde hoje está a Fundação Athos Bulcão. Outra é conseguir assegurar a concessão de uso do Lote L2 do Setor de Divulgação Cultural para que lá possa ser construída a nova sede da instituição.

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