postado em 18/08/2010 08:10
A vida pra Geralda Barbosa tem a intensidade do amor. E de como se é capaz de amar e refazer a vida. Aos 18 anos, foi chamada para ser miss Ipameri. Não aceitou por vergonha: ;Ia ser chamada para responder as perguntas e não sabia as respostas porque não tinha estudo;. Bela, aos 20 anos, casou-se pela primeira vez, por insistência da família.Mas ela fizera planos de moça que sonha com príncipe encantado. Mesmo sem amar aquele homem, viveu por 18 anos com o pai de suas quatro filhas. Mas o casamento não deu certo. Geralda não foi feliz com ele. Cada um seguiu sua vida. Separada, anos depois, teve mais um relacionamento. Dele, nasceu sua filha caçula.
Aos 34 anos, em 1961, Geralda deixou Ipameri e se mudou para Brasília carregando as filhas e várias bagagens de esperança. Queria descobrir a capital que se iniciava e as oportunidades da terra de JK. Aqui, para sustentar a família, virou doméstica. Depois, arrumou emprego como agente de portaria num órgão público.
Virou pai e mãe. A dona da casa que nunca deixou de prover a família. ;Ganhava salário mínimo, mas nunca faltou nada na geladeira;, orgulha-se. Formou todos os filhos. Entre uma folga e outra do trabalho no Incra, gostava de rabiscar poesia. Pela dificuldade que tem com a palavra escrita (;só estudei até o terceiro livro;, diz, com simplicidade comovente), ela escrevia, mas escondia. ;Era um chamado de Deus, uma coisa que nem sei explicar, como se fosse do além. Vinha no momento;, conta. A mulher que tem dificuldade em escrever e ler nem desconfiava que fazia poesia. E era poetisa.
Filhas crescidas, Geralda, sempre movida pela emoção, decidiu que seria hora de se permitir amar de novo. Aos 52 anos, encontrou um novo companheiro, um italiano que lhe chamava de amor como ninguém nunca havia chamado. E lhe fazia sentir princesa. Mulher, desejada. Viveram felizes por 28 anos. Um dia, o companheiro morreu. Geralda chorou a morte do homem que amara mais do que os pais de todas as suas cinco filhas. E veio a viuvez. A vida dividida entre o Guará, onde sempre morou desde que chegou a Brasília, e Caldas Novas (GO), lugar onde comprou uma casinha para passar temporadas.
Solidão nunca foi o forte da mulher que agarrou a vida com força de leoa. Numa dessas estadas em Caldas Novas, no clube que frequentava, conheceu um homem tímido, pensativo, num cantinho dele. Mineiro, o homem parecia sumir, tamanha timidez. Espevitada, ela mirou aquele homem e lhe indagou, do nada: ;Você tá apaixonado?;, O homem tímido se espantou: ;Eu, por quê?;. Geralda insistiu: ;Porque quem fica quietinho assim só pode estar apaixonado;.
O homem tímido se permitiu dar um sorriso. Papo vai, papo vem, ele lhe contou que era divorciado. Ela disse que era viúva ; pela segunda vez. A prosa continuou. Dois dias depois, Geralda chamou o ;novo amigo; para um cafezinho na casa dela. Ele prontamente aceitou. Uma semana depois, o homem tímido estava morando com a mulher que lhe fez rir. ;Conheço a pessoa por dentro. E vi que ele era um homem bom;, diz. E continua: ;Eu precisava dele, e ele precisava de mim;. Casaram-se. A lua de mel? Sete dias em Porto Seguro (BA).
Nasce a poetisa
Geralda, então com 81 anos, arrumou um novo companheiro. Paulo Marcelino dos Santos tinha 57 anos. ;Não fez a menor diferença;, ele comprova. Hoje, quatro anos depois ; ela tem 85; ele, 61 ;, Geralda namora com entusiasmo de uma adolescente. ;Faço tudo que uma moça de 15 anos faz.; E brinca: ;A parte sexual é a mesma coisa. E melhor: sem medo de ficar grávida;. Ao ouvir a frase, nesta hora, vermelhinho de vergonha, Paulo Marcelino quase some do lugar. Geralda é pura verdade.
Em 1966, quando ainda era agente de portaria, Geralda rabiscou com tudo que aprendera ;até o terceiro livro;. Guardou tudo num baú. Há cinco anos, a neta Carla Medeiros Calheiros, advogada de 41 anos, descobriu o tesouro da avó. Uma tarde, ela foi para casa de Geralda, no Guará. Sentadas na cama, as duas começaram a falar da vida. ;Ela me contou a vida inteira e me mostrou pastas e caixas com todas as poesias escritas, muito judiadas pelo tempo que guardava. Choramos a tarde toda. Foi um bálsamo pra mim. Minha avó é minha incentivadora, meu maior orgulho;, diz Carla.
A neta decidiu naquela tarde que aquilo viraria um livro. Catou tudo que encontrou. Juntou, organizou por datas. Chamou a filha, Rebeca, 20, bisneta de Geralda, para fazer as ilustrações. Datilografaram. Fizeram revisão. E o livro, com recursos da família, foi lançado.
Na noite da última sexta-feira, Geralda chegou à Livraria Cultura, no Shopping Iguatemi. Estava impecável. Cabelos feitos no salão, unhas pintadas e maquiada. Autografou para mais de 200 convidados, entre familares, amigos e autoridades. A mulher de 85 anos entrou e saiu como menina debutante. Segurou o choro para não borrar a maquiagem. Paulo Marcelino, que passou a vida inteira cortando cabelos, engoliu a emoção ao ver a companheira poetisa autografando livros.
Na manhã de ontem, na casa da neta Carla, na QI 15 do Lago Norte, o marido era só elogios: ;Ela escreve umas coisas muito bonitas;. Geralda comove-se quando ouve que é poetisa: ;Não tenho estudo. Foi tudo inspiração de Deus e da ajuda da minha família;.
E foi assim, olhando a vida, aprendendo com as experiências, que Geralda rascunhou versos simples, bem simplesinhos, com gosto de vida. Em Além do mar, o infinito, ela escreveu: ;O mar tem todo o nosso amor. É um lençol que nos envolve. Nossa vida passa pelo mar. A água leva e volta nosso amor. Suas ondas refletem o azul do céu. Nascem ao longe e morrem na praia. Percorrem o universo num vem e vai...;
Ou quando fala do primeiro beijo: ;Saudade! Aventura ausente de um bem que de longe não se vê. Uma dor que o peito sente, sem saber como é ou o porquê. Gostaria de poder esconder e não deixar ninguém ver todo esse amor que eu guardo no meu peito por você. É amizade, ternura e carinho, confiança e juras de amor. É lembrança de um tempo lindo que só saudade ficou...;
E quando se declara para Brasília, a cidade a que chegou e de onde nunca mais saiu: ;Brasília! Terra e mãe querida. Por ti muita gente deu a vida, para uns tu tiraste a liberdade. Para mim, deste tudo que sonhei um dia... Quando eu for embora daqui, meu coração irá partido...;.
Elegância de artista
Para o lançamento de sua primeira obra, Geralda não se fez de rogada. Do Guará, pegou ônibus e foi de casa em casa dos amigos e parentes. Elegante, nunca deixou o salto alto e o batom. ;Se ela não passar, volta imediatamente para se pintar;, entrega o marido, 24 anos mais jovem. Ela aproveita a deixa: ;Minha sogra tem três anos a menos que eu. Somos muito amigas. Ela gosta de mim;.
Cabeleireiro a vida toda, é Paulo Marcelino quem corta o cabelo da amada. ;Ele corta e ainda pinta. Não me deixa andar desarrumada;, diz ela. E rasga elogios ainda mais: ;Ele é perfeito: não bebe, não fuma, é tranquilo, humano, trabalhador, religioso, amoroso e gosta de mim;. Ufa! Ele? Apenas ri, como bom mineirinho de Patos de Minas. Uma mulher de 85 anos vive uma grande história de amor com um homem de 61. Ficou viúva duas vezes. Venceu um derrame, dois infartos e a luta contra um glaucoma. Casou-se aos 81 anos, quando era improvável viver mais esse momento. Viu seu livro, escrito em papéis avulsos há mais de quatro décadas, ser lançado numa noite mágica, ao lado do homem amado.
Pergunto à poetisa o que leva duas pessoas a ficarem juntas, depois de uma determinada idade. Sabiamente, a mulher que ;estudou só até o terceiro livro; responde: ;É o destino, a experiência e o tempo certo;. Geralda beija o companheiro. Ele se derrete. Ela recita as poesias de cor. Ele escuta e se emociona. Futuro? ;Viver mais um pouco porque vale muito a pena;, ela deseja.
De rabisco em rabisco, Geralda escreveu a vida e sua poesia. Chamou sua obra de Verdade sobre Verdades. Nada mais oportuno. A grande verdade de Geralda foi ter assumido sua vida com pulso de leoa.
Pensamentos da poetisa
É na renúncia
que se revela o amor.
É na raiz dos erros
que nasce a verdade.
Auxílio ao próximo com amor,
só é bondade verdadeira.
Que vale o amparo à rosa
atropelando a roseira.
Traga fechado no coração
um pedaço do mundo.
O amor de Cristo
tem reflexo profundo.
O silêncio do segredo
é de ouro,
e deixa escapar, durante a vida,
um grande tesouro.
É de uma alma amiga
que te deseja,
não o mundo,
mas sim o céu.
Caldas Novas, 30 de abril de 2005
Sem gramática
Eu escrevo, não sei gramática.
O tempo passou e eu não consegui nada fazer.
Tenho muito amor, não sei quem quer receber.
O que eu escrevo não é muito simpático.
Por isso, não sei porque consigo tanto escrever.
Se tiver um outro motivo, quem sabe, é você.
Você terá que saber o que eu trago no peito.
Os esforços que fiz para me recuperar.
E deixar aparecer a beleza reluzente da alma
procurando o amor em toda gente.
Nem tudo posso falar e compor.
Sinto que o tempo sugou a minha face
deixando a marca da decepção de uma murcha flor;
Um dia, quando eu já não estiver mais aqui;
Todos que lerem estas mensagens singelas
hão de ter um aperto no coração, porque são sinceras.
Quem me vê, não é capaz de avaliar as lutas que travei.
Quando chegar a hora de partir, pressa não terei.
Brasília, 28 de outubro de 1975