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A família de Valdemar Neves da Silva chegou ao DF muito antes de Brasília ser construída

postado em 21/08/2010 07:05 / atualizado em 14/10/2020 11:20


Zuleika de Souza/CB/D.A Press/Reprodução  Cena do casamento de Valdemar: tempos de uma Brasília por desbravarMuito antes de a cidade ser construída, Goiás já esperava por ela. Tanto acreditava que os goianos se moviam para mais perto da promessa de prosperidade. Assim foi com o pai de Valdemar Neves da Silva, fazendeiro de Ipameri que cavalgou 260km até demarcar a nova terra onde viveria, a 65km de Brasília. Assentou-se debaixo de uma árvore da Fazenda Bom Sucesso, que havia comprado, e disse então aos filhos: ;Vai vir uma capital para cá. Eu não vou conhecer, não;. E fez um pedido: ;Não vendam isso aqui, não. Essa terra ainda vai valer muito dinheiro;.

O pai de Valdemar não sabia ler nem escrever, ;mas via longe, era muito inteligente;, diz o único dos 11 filhos a nunca ter saído da terra prometida. ;É uma relíquia do meu pai.; Exceto ele e uma irmã, os demais venderam suas frações para políticos e empresários de Brasília. A irmã saiu da área por um tempo e depois voltou. O que o pai não sabia era que em uma ponta da fazenda havia uma formação calcária cobiçada por fábricas de cimento, apreciada por ambientalistas e procurada por praticantes de esportes radicais. O Morro da Pedreira fica a menos de 200 metros da sede da fazenda, na divisa com a Sítio do Mato, propriedade do cunhado de Valdemar.

Com pedras pontiagudas, eternamente habitadas por hordas de urubus, a pedreira está protegida por uma vegetação altiva, de árvores adultas, densos arbustos e pedrinhas soltas em colchão de folhas secas. Quando ergueu um boteco de palha amarrada quase no sopé do morro, o adolescente Valdemar, 16 anos, não deu nenhuma importância ao morro de pedra. Nem ele nem os irmãos. O pai, João, havia morrido sete anos antes, aos 53 anos. Estava conduzindo carro de boi quando teve um mal súbito. Sofria de Chagas e de saudade da mulher, Elvídia. Entre a morte do pai e a da mãe, passaram-se apenas seis meses.

Divisão da família
A pedreira na região da fazenda: monumento natural procurado para esportes radicaisO ano era 1954. Grávida, Elvídia sentiu as dores do parto, acompanhadas de complicações que impediam o nascimento do bebê. O pai então foi buscar, a cavalo, a enfermeira da cidade mais próxima à fazenda, Planaltina. Quando mãe e bebê morreram, o socorro estava a cinco quilômetros da casa. Valdemar, 65 anos, conta essa história com silêncios entrecortados. Mortos pai e mãe, a família Neves da Silva foi reorganizada: cada filho casado pegou um irmão pequeno para criar. O de 9 anos ficou com o padrinho, também irmão, de quem guarda tristes lembranças. ;Eles brigavam muito comigo, me batiam muito e eu pensava que não tinha valor. Eu falava: ;Ainda vou ser alguém na vida, vou trabalhar, vou sair dessa. Com 16 anos, não aguentei mais aquela vida, não gosto muito de falar disso;, diz Valdemar, diminuindo o tom de voz até ela quase desaparecer. Em seguida, recuperado, comenta: ;Foi até bom. Talvez, se não fosse isso, eu não seria quem sou;.

Quando os irmãos dividiram a fazenda entre si, Valdemar ficou com o cantinho que ninguém queria. Ergueu o boteco perto da pedreira e começou a nova vida. Nem se deu conta de que, não muito longe dali, a capital de que o pai falava estava sendo inaugurada. ;A gente nem sabia o que era isso, capital.; Valdemar guarda na memória a mudança no ritmo de vida de seus irmãos mais velhos, que, com a construção de Brasília, passaram a levar ;queijo, galinha, capado; para vender no Torto. O lugar onde hoje é a Granja do Torto era o início da estrada que levava à Cidade Livre para quem vinha de Formosa e Planaltina. ;A gente não ia, e se ia era só até o Torto.;

Valdemar no balcão do boteco que montou: O jovem fazendeiro de 16 anos não deu muita importância para a capital. Preocupou-se em cuidar da própria vida. O boteco de palha servia de entreposto para a rarefeita e isolada população de um Distrito Federal de topografia bastante distinta, de relevos sinuosos, de morros, depressões e riachos revestidos de pedras, região que mais tarde passou a compor a APA (Área de Proteção Ambiental) do Cafuringa. O Instituto Brasília de Proteção Ambiental (Ibram) quer transformar o morro em um monumento natural. ;Nunca arranquei um pau daí nem quando se vendia muita madeira por aqui. Quando preciso de madeira, trago de fora;, diz Valdemar.

O boteco de palha onde ele vendia sal e cachaça, chapéu e querosene, funciona até hoje, agora em construção de adobe. Uma das prateleiras é inteiramente dedicada a destilados, cachaças, conhaques, raízes, amargosos em geral. ;Povo da roça bebe muito, mas o da cidade anda bebendo muito mais.;

O botequim do Valdemar é ponto de apoio para praticantes de esportes radicais, jipeiros e motociclistas que se aventuram pelo sobe e desce da topografia da região. O contato com habitantes de Brasília não convence o velho morador do sertão goiano a trocar a fazenda pela vida urbana. ;Cidade não foi feita pra mim. Vou lá, resolvo o que tenho que resolver e venho embora, nem que eu chegue à meia-noite.; Ele tem uma casa em Sobradinho, que comprou para que os filhos pudessem continuar os estudos. ;Minha mulher ficou lá e eu fiquei aqui sozinho.;

Na fazenda
Se a ;capital;, como dizia o pai, chegou e trouxe melhorias para os moradores das regiões isoladas, a mudança não foi tanta assim. ;Brasília tem muita importância, ruins são os governantes.; Valdemar conhece de cor e salteado a lenga-lenga dos políticos. Há mais de duas décadas espera pela pavimentação da DF-205. ;A verba chega, desaparece e o asfalto, nada.; A sede da fazenda Ribeirão fica no entrocamento de duas rodovias, a 205 e a DF-002, dos fios de terra, pedra e poeira esbranquiçada. No tempo da seca, o tráfego de carros, especialmente nos fins de semana, deixa uma nuvem contínua de pó na casa e no boteco de Valdemar.

A sede da Fazenda Ribeirão acolhe Valdemar, a mulher, Coraci, três filhos e mais de meia dúzia de cachorros. São cães que vêm de muitas léguas de distância, acompanhando seus donos em longas caminhadas até o Morro da Pedreira. ;Eles pedem pra deixar os bichos aqui e depois não voltam pra buscar.; São moradores do sertão mais profundo que vão a Sobradinho ou Planaltina e abandonam os animais pelo caminho.

Valdemar Neves da Silva tem cinco filhos, nove netos e uma certeza: não importa o quanto Brasília seja uma cidade boa para se morar, ele jamais vai viver num ambiente urbano. ;Preciso da cidade, mas morar nela, nunca.;

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