postado em 24/08/2010 08:03
Uma moça que nunca andou, fala com dificuldade extrema e tem comprometimento de todo o aparelho locomotor. Um homem cuja última lembrança na vida foi a de ter visto o jaleco branco do médico que o operou. Ele contava 8 anos. Está com 53. A professora de artes que um dia conheceu esse homem, depois essa moça. Uma mãe que, ao saber que a filha tinha paralisia cerebral, demorou três dias para ter coragem e perguntar à médica o que aquilo queria dizer para o resto da vida. E uma produtora cultural que viu toda essa história e escreveu um projeto. E o projeto virou arte. Juntou pintura e música. A melhor de todas.História danada de boa essa. A moça que não anda e vive cheia de limitações é uma pintora. Das melhores. O homem que não enxerga é compositor, arranjador e instrumentista. No violão, ninguém o detém. A professora de artes que um dia conheceu ambos virou curadora. A mãe que não sabia o que fazer com aquela sentença nunca mais perguntou por que aquilo havia acontecido com sua filha. A produtora cultural é autora de um projeto de sucesso, há um ano e meio correndo estrada.
E hoje, às 15h, no Salão Branco do Senado Federal, a pintora de sorriso encantador e o tímido músico mineiro estarão juntos, inaugurando a exposição Arte superando barreiras. Kátia Santana mostrará 11 pinturas abstratas, em acrílico sobre tela. Evaldo Leoni cantará músicas de própria autoria e de compositores consagrados da Música Popular Brasileira. Enquanto Evaldo estiver cantando, Kátia pintará mais uma obra.
Ivana Andrés, 59 anos, a professora de artes, que há sete anos acreditou que essa moça poderia pintar de verdade, vai estar ao lado da aluna. Simone Senra, 41, a produtora cultural, verá seu projeto, mais uma vez, ganhando espaço e elogios rasgados do público. E Izabel Nedina, 48, cabeleireira, a mãe, certamente chorará em algum canto daquele salão do Senado Federal. E toda lágrima que derramar não terá sido em vão.
Na tarde de ontem, o Correio foi ao encontro de Kátia e Evaldo, que haviam acabado de desembarcar de Belo Horizonte (MG), onde moram. Ela, aos 29 anos, é pura alegria. A primeira vez em Brasília. Ele, aos 53, é mineirinho de tudo: fala baixo e tem no violão o melhor confidente. Ela, de cabelos pintados de loiro, com uma borboleta tatuada no ombro esquerdo e piercing discreto no nariz, diz, num esforço sobre-humano: ;É com a arte que expresso a minha alegria e minha tristeza;. Ele, sentadinho, com o violão no colo, declara, com sinceridade comovente: ;A música é toda minha vida;.
Izabel olha para a filha, para os quadros da artista que começavam a ser colocados na exposição e reconhece: ;Ela é o meu maior orgulho. Meu maior aprendizado;. Ivana, também pintora consagrada, filha da mestra Maria Helena Andrés, admite: ;Para pintar, é preciso ter coragem. E Kátia não tem medo de perder um quadro e refazê-lo, transformá-lo;. Sobre a dificuldade motora da aluna em pegar o pincel, a professora é categórica: ;O olho é mais importante que a mão;. Evaldo, que não enxerga, usa as mãos ágeis para fazer mágica com as cordas do seu violão. A pintora com paralisia cerebral e o músico que nada vê se completam. E se entendem nas suas diferenças.
Renascimento
E esse encontro é tão comovente quanto a própria arte que brota das mãos de ambos. ;Esse é um projeto de oportunidades. A inclusão é nossa. O preconceito é nosso. Esse foi um encontro de todos nós;, diz Simone, a produtora. O projeto Arte superando barreiras foi patrocinado pelo Ministério da Cultura, por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura (Rouanet). Teve também o apoio do jornal O Estado de Minas, pertencente aos Diários Associados, e de algumas empresas mineiras.
Durante um ano e meio, Kátia e Evaldo expuseram em Belo Horizonte, em Nova Lima (MG), em São Paulo, e agora chegaram a Brasília, para o encerramento do projeto que mudou a vida de ambos. ;Ela ficou mais confiante, mais feliz;, percebe a mãe. Kátia escreveu, em seu computador adaptado: ;Comecei a pintar há cerca de oito anos porque estava com depressão. Logo comecei a me sentir cada vez melhor e mais livre.... Penso que quando alguém desiste de sonhar desiste da vida;.
Evaldo, com o projeto, passou a apresentar semanalmente o programa A arte de superar barreiras, numa rádio comunitária de Belo Horizonte. No espaço, histórias de superação de pessoas com qualquer tipo de deficiência são abordadas. Ele canta e recita poesias ; de vários autores e também dos convidados entrevistados. E nunca tocou tanto quanto agora no Voz e Poesia, grupo musical do qual faz parte.
A pintura de Kátia tem muita cor e luz. Tem magia. É alegre e convida, pelo abstrato, para uma viagem. A artista sabe exatamente quais os caminhos aonde pretende chegar. ;Ela tem uma experiência autodidata. Às vezes, começa o quadro pelo meio. E, mesmo com toda limitação, é rápida. Pintou três telas grandes em menos de três horas;, exulta a professora de artes, embasbacada com sua primeira aluna tão especial.
A música de Evaldo tem cheiro das Minas Gerais. É suave, baixa e tem um quê de Clube da Esquina. O compositor é fã de carteirinha de Milton Nascimento e de toda aquela turma que se formou naquela época. Gosta do verso, da poesia dita com honestidade. E foi essa música, estudada à exaustão, que fez o menino que perdeu a visão aos 8 anos, em decorrência de um glaucoma avassalador, acreditar a que a escuridão não seria o fim. ;Aconteceram tantas coisas boas na minha vida que não penso mais na cegueira;, diz o homem que se casou pela terceira vez e tem dois filhos, um deles também músico.
Acessibilidade
Sessão de fotos para a matéria. Kátia, sorrindo riso de felicidade, pergunta ao fotógrafo: ;O Evaldo aparece também?;. Ela enxerga pra ele. Ele caminha pra ela. ;Ela é linda, espetacular;, diz o músico. Ela ouve e ri. Ele não vê, mas sente. Ela fala, de novo fazendo um esforço danado para ser entendida: ;Quando pinto, sinto que tô livre, fora da cadeira de rodas;.
E é no Senado Federal, lugar onde o país se reconhece, se espanta e de quando em vez ainda se enche de esperança, que a exposição terá seu desfecho. Mônica de Araújo Freitas, presidenta do Programa de Acessibilidade do Senado Inclusivo, elogia o trabalho da dupla.
Ela conta que a Casa, há seis anos, passou a tratar como prioridade o direito de ir e vir dos que têm limitações. ;Fizemos reformas e adaptações estruturais, compramos equipamentos, temos intérprete de Libras e realizamos um censo para saber quantos funcionários são portadores de necessidades especiais. Todo ano, em dezembro, realizamos a Semana do Senado Inclusivo. Virou um sucesso, nosso compromisso.;
Kátia olha os quadros sendo colocados nos painéis. Dá palpite. Quer ver sua obra mais bonita. Sentadinho, Evaldo afina as cordas do seu instrumento. É hoje, daqui a pouco, a abertura da exposição da pintora e do músico. Pergunto a ela como está a emoção. Ela responde: ;Tô muito feliz, o coração tá batendo cada vez mais forte;. Ele só quer fazer o que mais gosta: tocar, tocar e tocar. Em seu computador, Kátia escreve páginas do livro que vai lançar, Um sonho de vida: ;Sou assim, livre. presa, triste, alegre, segura do que faço e firme nas decisões. Desejo aprender sempre mais e acreditar que tenho forças para continuar. Sinto a luz de Deus dentro de mim;. Não há mais o que perguntar. Deixa a música de Evaldo seguir.
Essa história é boa demais. Boa pra contar. Melhor ainda pra ver e ouvir. E sentir.
Confira o vídeo com os trabalhos de Kátia Santana e Evaldo Leoni.
Não perca
Exposição Arte superando barreiras ; Abertura hoje, às 15h, no Salão Branco do Senado Federal. Haverá performance dos artistas ; ela pintará uma tela; ele cantará. Encerra sexta-feira. Blog da pintora: artistakatiasantana.blogspot. com. E-mail: katiaapolo@hotmail.com.