Cidades

Doença em trabalhadores rurais de Goiás desperta interesse de cientistas

Renato Alves
postado em 01/09/2010 07:00
Faina (GO) ; Raro fenômeno genético revelado em reportagens publicadas pelo Correio em outubro do ano passado demonstra ser muito mais preocupante. Cientistas suspeitam ser três vezes maior o número de portadores de xeroderma pigmentoso nascidos ou morando em Araras, distrito de Faina (GO), a quase 500km de Brasília. A moléstia, transmitida de pai para filho, deixa a pessoa hipersensível à luz, causa câncer, mutila e mata. Até agora, existe a certeza de haver 21 doentes no povoado do noroeste goiano, além de dois parentes deles vivendo nos Estados Unidos. Mas os casos podem chegar a 60. A confirmação depende de exames em análise na Universidade de São Paulo (USP). Nas últimas cinco décadas, 20 pessoas com origem no lugarejo morreram em decorrência da doença. Mais de 60 perderam a vida com os mesmos sintomas, mas não tiveram diagnóstico médico. Em nenhuma outra parte do mundo houve registro de tamanha incidência dessa enfermidade.

Várias vezes ao dia, Gleice passa protetor solar no filho Alison Wendel, que só pode brincar durante a noite: Após a denúncia do Correio, mostrando em série de reportagens como viviam e sofriam os doentes do povoado em função do descaso do Estado, as autoridades goianas e a comunidade acadêmica decidiram investigar o fenômeno e socorrer os portadores de xeroderma. Geneticistas da Universidade de São Paulo (USP) e da Secretaria de Saúde de Goiás estudam o caso há seis meses. Além de examinar os 21 pacientes de Araras, coletaram material genético de todos os familiares dessas pessoas, gente sem manifestações da doença, mas que tem tudo para adquiri-la. A equipe médica pretende identificar casos suspeitos para realizar um trabalho preventivo a fim de evitar a disseminação do xeroderma na comunidade e minimizar os efeitos nos novos portadores.

Cerca de 200 famílias moram em Araras. A maioria é formada por casamento entre parentes, principalmente primos. E é justamente essa cultura que tem levado à perpetuação e proliferação do xeroderma na comunidade, pois trata-se de uma enfermidade recessiva, mais comum entre nascidos de casamentos consanguíneos (entre parentes), em que a chance de duas pessoas terem o mesmo erro genético é maior. ;A incidência média de casos no mundo é de um em cada grupo de 200 mil pessoas. Temos mais de 20 num só povoado. É a maior concentração da doença já registrada. O suficiente para merecer um estudo;, destaca o biomédico geneticista Rafael Souto, da Secretaria da Saúde, integrante da equipe que pesquisa o xeroderma em Araras.

Fenômeno com concentração semelhante à de Goiás ocorre em uma comunidade indígena da Guatemala. A maior diferença desses doentes da América Central é que eles não vivem mais de 10 anos. Os de Araras conseguem chegar à fase adulta, mesmo sendo corroídos pelo câncer ao longo do tempo. O grupo goiano tem pacientes de 7 a 77 anos. Esse fator leva os cientistas a imaginar que se trata de uma mutação leve, agravada por fatores ambientais, como a alta incidência solar. Sem aposentadoria por invalidez, instrução, dinheiro e acompanhamento médico ideal, os doentes de Araras passam a maior parte da vida expostos ao sol, pois sobrevivem da agricultura e da pecuária. A região registra temperaturas entre 20;C e 35;C. Este ano, enfrenta uma seca que já dura quase cinco meses.

Em março, um geneticista da USP mediu a radiação solar nas casas de Araras e coletou material para biópsia em seis pacientes. A ideia é mapear o gene defeituoso que provoca a doença. Por ter origem genética, o xeroderma não tem cura, mas há como frear o desenvolvimento da doença, revertendo o gene defeituoso das próximas gerações. ;O trabalho de mapeamento genético é demorado, e depois dele inicia-se a fase de investigação de amostras de sangue dos pacientes;, explica Rafael Souto. A mutação genética da família de Araras deve estar identificada dentro de um a dois anos.

Acompanhamento
O Correio publicou a primeira reportagem sobre a presença da xeroderma nas famílias de Araras em 4 de outubro de 2009. No entanto, somente quatro meses depois autoridades goianas começaram a tomar as primeiras providências para assistir os 21 moradores do vilarejo portadores do mal raro e mortal. Por iniciativa do Ministério Público estadual, representantes da área de saúde de Goiás organizaram uma força-tarefa para atender os doentes. Desde então, unidos em uma associação, a Apoderma, que reúne 30 doentes ; inclusive de outros estados ;, os pacientes de Araras têm conseguido maior atenção do Estado. A demora, no entanto, agravou o estado de boa parte do grupo.

A equipe do jornal reencontrou os moradores de Araras na última quinta-feira. Da primeira reunião realizada quase 10 meses antes, dois estavam ausentes por causa de internação em Goiânia devido às consequências dos cânceres gerados pelo xeroderma. ;Nós tivemos avanços, mas ainda falta muito a fazer por essa gente que ficou tanto tempo esquecida. Um exemplo? Ninguém conseguiu prótese. E os que tinham não conseguiram trocar as já vencidas;, comenta a presidenta da Apoderma, Gleice Francisca Machado, 34 anos. Um dos casos mais graves é o de José Cláudio Machado, 74 anos. Ele já enfrentou 41 cirurgias para retirada de tumores. A cada uma, perdeu parte da pele. Praticamente não tem mais rosto. Mas, no lugar de prótese, usa esparadrapos.

Gleice Machado lida com a doença há um ano, desde que o filho, Alisson Wendel, teve a doença diagnosticada. Nesse período, as manchas se espalharam pelo corpo do menino de 7 anos, mesmo ele trocando o dia pela noite. ;Essa doença já acabou com boa parte da minha família. Não quero que o meu filho tenha o mesmo destino de tantos primos e tios, por isso comprei essa luta;, ressalta Gleice. Apesar da pouca idade, o filho dela aprendeu a recusar os convites para brincar sob o sol escaldante de Araras. Vive de camisa de manga comprida e boné, passa filtro solar a cada duas horas e só sai de casa para andar de bicicleta, jogar futebol ou vôlei quando a luz natural está no fim.

Diferentemente de Wendel, o trabalhador rural Adegmar Freire de Andrade, 31 anos, começou a se cuidar apenas quando a doença estava em estado avançado. Quando, em meio às visitas médicas realizadas por ordem do Ministério Público, soube do que sofria e como se prevenir, passou a usar protetor solar regularmente e a vestir somente camisas de manga comprida. ;Muitos dos nossos tios sofreram ao longo de toda a vida e morreram sem saber o motivo. Agora, com a informação trazida pelos médicos, sei o que tenho de fazer para tornar a minha vida melhor e cuidar dos meus filhos caso eles também tenham xeroderma. Antes, tinha muito medo;, comenta, para em seguida acrescentar que pretende ficar cada vez mais distante do sol. ;Hoje sei que meu trabalho me faz mal.; Adegmar tem o rosto tomado por manchas e a visão prejudicada pelos efeitos da enfermidade diagnosticada desde os 7 anos.

Resistência
Nos primeiros meses após as reportagens do Correio, a Secretaria de Saúde de Goiás resistia em dar mais atenção aos doentes de Araras. Afirmava não poder fazer nada além das consultas e cirurgias para retirada de tumores dos pacientes. Negava até distribuição gratuita de protetor solar. Sob pressão do Ministério Público, o órgão criou um ambulatório só para os portadores de xeroderma, no HGG. Agora, os pacientes que esperavam até dois meses para um atendimento médico fazem consultas semanais.

Mas o estado de Goiás e a Prefeitura de Faina ainda apresentam muitas falhas. Os pacientes conseguiram o transporte gratuito, fornecido pelo município. Porém, ele contribui para o agravamento da doença. Na viagem de ida e volta para consultas, cirurgias e internações em Goiânia, os doentes chegam a passar oito horas em uma Kombi comum, sem ar-condicionado e vidros escuros. No calor goiano, que tem beirado os 40;C nessa época do ano, a perua se transforma num forno de micro-ondas. A prefeitura alega não ter dinheiro para a compra de outro carro.

Já o governo estadual, além de continuar sem doar filtro solar, também não fornece roupas nem óculos adequados aos doentes. Os quase mil frascos de filtro solar enviados a Araras foram doados por leitores do Correio e empresários sensibilizados com o drama dos doentes, que também convivem com sérios problemas de visão. ;Os oftalmologistas vieram, mostraram o problema e falaram que temos de usar óculos escuros, com grau e abas mais largas. Só esqueceram que o povo daqui não tem dinheiro para comprar isso;, observa Cláudia Sebastiana Jardim Cunha, 32 anos. Ela e a irmã Vanda Ernestina, 36, convivem com xeroderma desde crianças. Vanda sofreu mutilação por causa do câncer de pele.

Mapeamento
Os doentes de Araras são estudados pelo Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo (USP), o maior do país nesse segmento. Integra a equipe o maior conhecedor de xeroderma pigmentoso no Brasil, o biólogo Carlos Frederico Martins Menck. Ele, que estuda a doença desde 1976, esteve no povoado goiano para conversar e examinar pacientes. Os pesquisadores montaram o heredograma ; tipo de gráfico que representa a herança genética de determinada característica dos indivíduos representados ; dos pacientes. O gráfico retrata as famílias que possuem pessoas com suspeitas de xerodema pigmentos residentes em Araras.

Mal genético

O QUE É
; O xeroderma pigmentoso é uma doença hereditária caracterizada pela deficiência na capacidade de reverter (ou consertar) determinados danos no DNA (material genético), em especial aqueles provocados pela luz ultravioleta, presente na radiação solar.

OS SINAIS
; Lesões cutâneas estão presentes nos primeiros anos de vida, evoluindo de forma lenta e progressiva, e são diretamente relacionadas à exposição solar. Aos 18 meses, metade dos indivíduos afetados apresenta alguma lesão cutânea nas áreas de exposição solar; aos 4 anos, cerca de 75%; e aos 15, 95%.
; Os primeiros sinais clínicos iniciam-se em forma de eritema (vermelhidão da pele produzida pela congestão dos capilares), descamação, hiperpigmentação difusa e lesões cutâneas semelhantes a sardas.

OS DOENTES
; Por ser uma doença recessiva, o xeroderma é mais comum entre nascidos de casamentos consanguíneos ; em que o risco de duas pessoas terem o mesmo erro genético é maior.
; O xeroderma pigmentoso apresenta grande heterogeneidade genética, ou seja, diferentes famílias podem apresentar o mesmo quadro clínico, que pode ser causado por mutações em genes diferentes.
; A doença afeta ambos os sexos, apresentando maior prevalência nas populações com elevada taxa de consanguinidade, como japoneses, árabes e judeus.

OS EFEITOS
; Devido à deficiência no mecanismo de reparo do DNA, os pacientes com xeroderma apresentam elevada fotossensibilidade e desenvolvem precocemente lesões degenerativas na pele, como sardas, manchas e diversos cânceres epidérmicos.
; O risco de desenvolvimento de câncer de pele é aumentado em mil vezes, e a incidência de cânceres internos, em 15 vezes. Indivíduos com xeroderma podem apresentar anormalidades neurológicas progressivas (observadas em cerca de 20% dos casos) e alterações nos olhos.
; Aproximadamente 80% dos indivíduos com xeroderma apresentam alterações oftalmológicas que incluem fotofobia, conjuntivite, opacidade da córnea e desenvolvimento de tumores oculares.
; Cerca de 20% dos pacientes têm alterações neurológicas como microcefalia, ataxia (perda de coordenação dos movimentos musculares voluntários),surdez neurossensorial e retardo mental.
; Em pacientes com xeroderma há aumento do risco de outros tumores cerebrais, gástricos, pulmonares e leucemia.

A PREVENÇÃO
; A precaução mais importante para o doente é proteger-se da exposição à radiação ultravioleta. O paciente deve evitar atividades externas durante o dia, usar barreiras de proteção como roupas especiais, bloqueador solar, óculos escuros e chapéu.

Como ajudar
Quem quiser ajudar os doentes de Araras deve ligar para Gleice Francisca Machado, no telefone público do povoado:

(62) 3391-1174 ; ou enviar mensagem para gleice.araras@hotmail.com.

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