Cidades

Morador de rua que transportava mulher em carrinho perde a companheira

"Tenho que me acostumar"

postado em 01/09/2010 08:03
Quem transita com frequência pelo centro de Brasília, entre o Setor Comercial Sul e o Setor Hospitalar Sul, já viu pelo menos uma vez um casal de moradores de rua. Há neles algo inesquecível: o homem transporta a mulher dentro de um carrinho de mão de madeira. Havia. Faz 46 dias que Ernani Fernandes da Silva, 80 anos, está sozinho. Mariana Ribeiro Sobrinho, 75 anos, morreu em 16 de julho passado, depois de mais de um mês internada no Hospital Regional da Asa Norte. Tentava se recuperar de uma pneumonia.

O corpo de Mariana ficou no Instituto de Medicina Legal durante sete dias até ser sepultado no Cemitério do Gama. A mineira de Pirajuba que gostava de vestidos bonitos e limpos não queria ser enterrada como indigente. Para dar a ela o funeral desejado, foi preciso a interferência de um amigo do casal, o comerciante Miguel Artur de Lima, dono de um quiosque na calçada do Eixinho Leste, em frente ao Hospital de Base. Miguel conhece Ernani e Mariana há quase 40 anos, desde que vendia água num carrinho de mão, no mesmo lugar. O casal já vivia na rua.

Quando o funcionário do Cemitério do Gama viu apenas três pessoas no velório de Mariana, e era chegada a hora de proceder ao sepultamento, perguntou pelos demais parentes. ;Somos só nós;, respondeu Celeste de Lima, 20 anos, filha de Miguel. Ernani estava quieto, emburrado, como de hábito. Não acreditou na morte da mulher, quando Celeste recebeu o telefonema do hospital comunicando o fim. ;Vou lá.; E foi conferir se a companheira de mais de 40 anos, dos dias e das noites, do sol e das chuvas, das fomes e dos medos, tinha mesmo ido embora. E, se não havia mais vida no corpo frágil de Mariana, que ficasse por lá. Ernani não quis saber de enterro.

Mariana queria saber. Ela havia pedido a Celeste que não fosse sepultada na vala comum dos indigentes. Os dois comerciantes, pai e filha, decidiram cumprir a promessa feita, mas as dificuldades foram maiores que as imaginadas. O corpo só poderia ser entregue a um parente. Nem Ernani nem Miguel nem Celeste tinham grau de parentesco com a senhora de olhos miúdos e lábios finos que passeava pelo Plano Piloto a bordo de um carro de madeira. Foi necessária autorização judicial assinada pelo juiz Ricardo Norio Daitoku para a liberação do corpo.

O carrinho de Ernani ficou vazio de patrimônio afetivo, mas ele continua cortando o SCS e SHS com todo o seu patrimônio material. Na quinta-feira da semana passada, o velho andarilho disse que já havia se habituado com a ausência de Mariana. ;Sinto falta, mas não posso fazer nada, tenho de me acostumar.; E mudou de assunto: queria falar da ;nova governadora do Brasil;. Que ele, como ;fundador; de Brasília, a conhecia ela há muito tempo e que ela havia lhe prometido uma casa. Ernani estava contente. Naquele dia, uma amiga de Celeste e Miguel havia conseguido a segunda via da sua Certidão de Nascimento. Depois que furtaram seus documentos pessoais, há mais de três meses, ele não está recebendo a aposentadoria. Com o documento, espera-se que o benefício volte a ser pago.

O amor possívelErnani carregando Mariana no carrinho de mão: 40 anos de amor sinalizados num tempo ido
Uma estrada juntou os caminhos de Ernani e Mariana. Aos 16 anos, ele começou a vida de andarilho, para fugir de um pai militar e alcoólatra. Vinte anos mais tarde, trilhando a Rodovia Presidente Dutra, sentido São Paulo/Rio de Janeiro, viu uma moça cambaleante, sozinha, de roupas andrajosas, vindo em sentido contrário ao seu. Já era adulta, mas tinha o porte e a fragilidade de uma menina. Quando a garota chegou bem perto, pôde ver sangue descendo pelas suas pernas. Pediu ajuda: ;Me arruma o que comer;.

Daí em diante, Mariana nunca mais comeu sozinha nem sangrou sem que Ernani estivesse por perto para ajudá-la a estancar o sangue e o que mais escorresse de seu corpo e sua alma. Depois de alimentar a moça, os dois seguiram juntos em direção ao Rio. Ela contou ao novo amigo que saíra de casa porque jogava pedra nas pessoas. Tinha surtos de raiva que, estranhamente, desapareciam quando Ernani estava por perto. Articulava palavras com alguma dificuldade e costumava repetir o fim das frases do companheiro. Se ele, por exemplo, dizia: ;Está seco demais, vamos embora mais cedo;, ela reforçava: ;Vamos embora mais cedo;. O homem de rosto anguloso, ombros largos, queixo quadrado aplacava as perturbações da garota de rosto fino e voz infantil.

O casal continuou perambulando até chegar a Brasília, a nova capital, há mais ou menos 45 anos. Aqui tiveram um filho, Sebastião, condenado a 22 anos de prisão por latrocínio. Solto, praticou outro crime e voltou para a Papuda. Celeste conta que ele soube da morte da mãe num saidão recente. ;Sempre que ele sai, vem aqui ter notícia dos pais;, conta Celeste, a moça do quiosque. O pai dela olha para Ernani e comenta: ;Você vê assim e diz que é um mendigo fedorento. Mas esse homem não bebe, não fuma e é honesto. Pode deixar o que for com ele que ele não mexe;.

O carrinho-casa de Mariana passa boa parte do dia estacionado debaixo de uma árvore na calçada do Eixinho Leste. Dentro dele ainda estão as suas roupas e documentos pessoais. Ernani percorre as redondezas, mas sempre volta para o lugar de onde partiu. Agora, ele transporta a saudade.

A história de amor de Ernani e Mariana foi contada na série Amores possíveis, edição de 3 de julho de 2006 do Correio Braziliense. Em tempo: equivocadamente, à época o nome dele saiu como Ernandes.

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