postado em 03/09/2010 08:12
Na confeitaria São José, na pequena Viseu, norte de Portugal, perto de Coimbra, a menininha fazia caixinhas de papel para colocar doces. Dobrava cuidadosamente os papéis e eles se transformavam em caixas. Era assim que ajudava o pai, José, homem que vendia quitutes como se vendem sonhos. Para a menina, aquilo era um como sonho. Aos 8 anos, com a ditadura de Salazar, o pai deixou a terra de Camões e seguiu para o Brasil. Trouxe a mulher, Isilda, o filho mais novo, também José, e Josefa, a menina que fazia caixinhas que guardavam doces.O desembarque foi no Rio de Janeiro, depois de mais de 14 horas de avião. Tudo era novo para Josefa. A nova cidade, o povo nas ruas e a língua. Engana-se quem pensa que o português de Portugal é igual ao que se fala no Brasil. ;Eu até que não tive muita dificuldade, mas meu irmão mais novo foi estudar com uma professora que não entendia o que ele dizia. Nem ele compreendia o que ela falava;, lembra.
Problemas linguísticos à parte, a família se estabeleceu em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. José montou uma padaria. A menina cresceu. Já não fazia mais as caixinhas de papel para enrolar doces. Estudou. Entendeu o Brasil e seus costumes. E que o estudo a levaria ainda mais longe. Formou-se em técnica em contabilidade e em direito. Deu aulas. Aos 24 anos, prestou concurso para a Receita Federal. Foi aprovada.
Depois de seis meses em Brasília, onde veio fazer o treinamento na Escola de Administração Fazendária (Esaf), o órgão mandou-a para Porto Alegre. Começaria ali a carreira profissional de Josefa, a menina que dobrava papéis, que viravam caixinhas em Portugal. Josefa ficou na capital gaúcha por pouco tempo. Aos 27 anos, mais uma mudança. Foi transferida para Brasília.
Aqui, ela assumiu a Coordenação de Sistema de Tributação da Receita. Com formação em direito, trabalhou sempre com interpretação da legislação. Casou-se, teve dois filhos. Chegou a ocupar o cargo de presidente de conselho. Em setembro passado, aposentou-se, depois de 28 anos dedicados ao serviço público.
Anos antes de se aposentar, em 1984, uma amiga lhe falou sobre um curso de origami (arte de dobrar papéis brancos ou coloridos para fazer objetos ou animais), na Universidade de Brasília (UnB). ;Sempre tive interesse, mas em Brasília não tinha quem ensinasse.;
O curso na UnB a deixou mais contente. Era aquilo que gostava de fazer. E descobriu que origami, em essência, é a arte de dobrar papéis. Mais que isso: é a arte de testar a paciência todos os dias. Josefa descobriu mais. Lembrou-se da sua infância em Viseu. ;Aquilo que eu fazia eram origamis. Só que eu nem sabia que o nome era esse.; Josefa não parou mais de ir atrás das novidades. Nuna época ainda sem internet, mandava buscar revistas em São Paulo, e também o papel, que era complicado encontrar aqui.
Participava de encontros. Foi a todos os eventos da cultura japonesa. ;Ia só pra ver se tinha origamis; ri. Isso tudo conciliando com o trabalho árduo, de horas e madrugadas adentro na Receita Federal. Veio a internet. Ninguém mais segurou Josefa. Ela passou a conhecer novas técnicas por meio do YouTube. Frequentou sites e, no Orkut, descobriu uma comunidade local. Há cinco anos, chegou ao Origamigos de Brasília, hoje um grupo de 26 homens e mulheres, de todas as idades, que se dedica à prática da arte milenar.
Exposição
Aposentada, aos 53 anos, Josefa decidiu que não ficaria em casa. Procurou um curso de artes plásticas. Foi à Faculdade Dulcina. Soube que, por ter curso superior, poderia conseguir uma vaga. Mas precisou submeter-se a uma prova de desenho. Aceitaram-na. E Josefa virou estudante novamente. ;Já comecei a fazer estágio numa escola pública do Lago Norte;, anima-se.
Paralelamente à faculdade, nunca mais parou de fazer seus origamis. Em sua casa, na QI 7 do Lago Norte, seus trabalhos ocupam todos os espaços. Usando o diagrama (modelo) de artistas famosos, ela faz a mesma obra. E especializou-se em kusudamas ; do japonês kusu (remédio) e dama (bola). É um origami modular, antigamente usado no Japão para colocar remédios ou ervas aromáticas. Era uma espécie de bola de cura. Hoje, é uma peça decorativa. Dizem os mais sábios que, além de embelezar o ambiente, transmite energia. Impossível passar sem notar. As formas geométricas saltam aos olhos. Fazem parar e admirar.
O grupo do qual ela faz parte descobriu que Tomoko Fuse, uma das maiores origamistas do mundo, com mais de 60 livros publicados, participaria de uma convenção internacional. Fizeram contato. Cotizaram-se com as despesas da viagem da Colômbia ao Brasil. E, em abril deste ano, a artista chegou a Brasília. Fez uma oficina de dias. ;Foi maravilhoso. Veio gente de todo o país para assistir. Na oficina, ela nos mostrou e ensinou dois kusudamas inéditos aos participantes;, conta Josefa, ainda maravilhada por ter conhecido a mestra.
Os origamigos cresceram. O espaço anterior que usavam, na Biblioteca Demonstrativa, na 506 Sul, ficou pequeno. Eles hoje se reúnem, a cada 15 dias, sempre aos sábados, na Escola Parque 307/308 sul. Lá, durante quatro horas, os participantes praticam novos diagramas (modelos que veem em livros, revistas e na internet), mostram novos trabalhos e se propõem, sempre, a encarar novos desafios. Fazer origamis é, também, uma superação de limites.
É com essa disposição que o grupo participará, na semana que vem, da exposição Primavera japonesa no ParkShopping, evento realizado em parceria com a embaixada daquele país. Haverá origamis, ikebanas e bonsais. O grupo Origamigos confeccionou mil borboletas, usando o diagrama de Akira Yoszawa, e três kusudamas. Pra isso, cada um dos 26 participantes trabalhou como nunca. Há meses, Josefa prepara sua parte. A casa dela virou o quartel-general das peças.
Calmaria na alma
Enquanto conversava, em menos de três minutos, Josefa produziu, ali mesmo, um tsuru ; o mais famoso dos origamis, uma ave sagrada do Japão, que lembra uma cegonha. A destreza da artista é impressionante. Segura de si, é como se ela já conhecesse as dobras do papel, mesmo sem vê-las. O trabalho fica pronto. E ela balança as asas da ;cegonha;. É de uma beleza quase poética.
Reza a lenda oriental que, se o origamista confeccionar mil tsurus, qualquer desejo é atendido, especialmente quando se trata de recuperação da saúde. Uma amiga, há algum tempo, enfrentou um câncer devastador. Josefa não perdeu tempo. Fez mil tsurus e os prendeu num fio, numa bela cortina. Entregou-os à amiga. ;Levei três meses pra acabar, mas consegui;, diz. A amiga? ;Fez o tratamento adequado e melhorou. Tá bem;, comemora.
Josefa continua contando suas histórias. Pergunto como era o nome da confeitaria do pai, em Viseu. Deu-lhe um branco. Ela se lembra com detalhes de todos os momentos em que fez as caixinhas que iriam guardar os doces. Mas o nome da padaria não vinha. Ela chama a mãe, que passa uma temporada aqui, outra no Rio de Janeiro, com o irmão: ;Mãe, vem cá. Me dá um help na memória lusitana;.
A mãe, Isilda Coelho Nogueira, 81 anos, aparece na varanda com um sorriso encantador. Responde, com um sotaque bem lusitano (mesmo depois de mais da metade da vida morando no Brasil), e com memória irretocável: ;Ora, pois, Josefa, era Confeitaria São José. O nome do teu pai é José, do teu irmão José também. Tu te chamas Josefa, a confeitaria só poderia ser José...;. Gargalhada geral. A portuguesa é um show!
Enquanto Josefa executa seus origamis, Isilda borda, faz crochê e admira o trabalho da filha. Mostra a decoração da sala. Aprecia uma a uma das peças. Mas admite: ;Não, não saberia fazer...;. Josefa comenta: ;Cada um dobra o papal de uma forma. Duas pessoas, executando o mesmo origami, farão peças diferentes. É muito particular, depende da técnica e da habilidade de quem faz;.
Sem, imaginar, aos 8 anos, a menina de Viseu dobrava papéis que se transformavam em caixinhas. Era o prenúncio do que a acompanharia pelo resto da vida. Mesmo que nem tomasse conhecimento disso. Das caixinhas, a menina atravessou o oceano. Cresceu. Formou-se em direito. Casou-se, teve dois filhos. Trabalhou com interpretação de leis fiscais a maior parte de sua vida. Descobriu-se origamista. Libertou-se. Aposentou-se do serviço público.
Voltou à faculdade, aos 53 anos. Estuda artes plásticas. Quer dar aula depois, dividir o que sabe. E deseja fazer, cada vez mais, borboletas, tsurus e kusudamas. ;O origami me deixa mais tranquila, me acalma;, confessa. Origamis podem, segundo os estudiosos da arte, salvar vidas. Essa gente que se especializou em dobrar papéis, com paciência de monge, sabe exatamente o que é isso.
"Duas pessoas, executando o mesmo origami, farão peças diferentes. É muito particular, depende da técnica e da habilidade de quem faz"
Josefa Marques, artista plástica
Josefa Marques, artista plástica
Confira
Mostra Primavera Japonesa no ParkShopping ; De 9 a 12 deste mês, na praça central. Abertura no dia 9, às 19h30, com demonstração da tradicional cerimônia do chá para as primeiras 100 pessoas que chegarem.
Blog do Grupo Origamigos ; http://origamigosbrasilia.blogspot.com
Blog de Josefa ; http:// origamisjosefa.blogspot.com